Estava uma tarde boa para preparar o IRS ao ar livre e talvez por isso ela se tivesse instalado com a papelada na mesa de piqueniques do parque. A visão periférica do discreto observador da vida selvagem captou ao passar alguns apetrechos, mas não os identificou. Seria afinal uma iniciante a preparar sob a copa das árvores uma reunião de Tupperware? Uma debutante da Herbalife a rever as bulas das mezinhas? Uma revendedora de cosmética a organizar as paletas?
Censurando-se pela deriva preconceituosa e machista da especulação, o observador teve oportunidade de se redimir quando compreendeu que o ser observado manuseava um objecto de aparência metálica sobre o que poderia ser um diagrama de vectores e forças ou uma amostra cartográfica da galáxia. Era decerto — com a sua aparência bonita e cuidada sem exageros caricaturais, de uma elegância natural que dispensa suplementos — alguém que ensaiava as leis da física antecipando uma aula ou consultava, para as notas de uma conferência, as coordenadas do último exoplaneta a ser descoberto pelos astrónomos.
Contudo, enquanto girava entre o polegar e o indicador o que poderia ser um pêndulo de Foucault mas com excessiva força centrífuga, havia uma denúncia de expectativa na sua expressão que não era a de quem aguarda confirmar a rotação da Terra. O brilhozinho nos seus olhos mais se coadunava com um desejo de ver os astros saírem dos eixos — como se afinal dedicasse a boa e auspiciosa tarde de Primavera a sondar esotericamente as energias ou o devir em busca de respostas a questões existenciais, talvez amorosas, próprias ou alheias, espoletadas por anelos inocentes ou rancores de húbris e pathos clássicos.
Rebater esta nova hipótese estereotipada implicava agora virar a cabeça sobre os ombros, o que as regras da circunspecção impedem, pelo que ficou por fazer justiça à mulher que misteriosamente dispunha o sábado sobre a mesa de piquenique.
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