domingo, 25 de setembro de 2022

Compreendendo a mosca

A mosca cola-se ao vidro da janela não como um recluso a cobiçar nostalgicamente a liberdade e o ar puro mas com a melancolia abstracta de um amante sonhador ou preterido.
A esta luz consigo perceber que quando a mosca pousa em nós na piscina não o faz obedecendo a uma vocação para importunar, mas por uma carência dolorosa, um desejo erótico de pele nua.
A mosca é um amante ferido ou muiiito insatisfeito.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A maldição das variações cromáticas

Depois de ter sido «cínico» e «macabro» a propósito da fleuma de Isabel II, desconsiderando em simultâneo a obra de Andy Warhol, fui castigado com a maldição das variações cromáticas. A partir de amanhã, sou obrigado a escolher, não um tailleur, mas um tom de pele diferente em cada dia, exibindo uma paleta que vá da ira à icterícia, passado pela azia. Em caso de cumprimento, diz a maldição, habilito-me a ser pendurado nas paredes do MoMA — ou designado grão-mestre da Ordem da Jarreteira.



quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A fleuma real

Os comentadores falam da capacidade (e dever) que Isabel II tinha de não exprimir emoções, de não mostrar estados de espírito, de se manter absolutamente opaca e neutra perante os solavancos e as transformações do mundo. E falam desta vocação para a impassibilidade como de uma virtude. A fleuma extrema, não como característica étnica, mas requisito de estado.

Como se explica então que os súbditos a amassem e o mundo a admirasse? O que é que amavam e o que é que admiravam? O vazio? O deixa andar que não é nada comigo? (Conheço muita gente que cumpre lindamente estes critérios e ninguém, por enquanto, lhes pôs uma coroa na cabeça.)

Como se pode amar uma figura plana, sem dimensão emocional? Como se pode admirar um chefe de estado que não participa, nem como árbitro, nos processos políticos do seu país? Pelos filmes do James Bond em que entrou?

Diz-se que, quando o Reino Unido se preparava para referendar a sua permanência na UE, ou seja, se preparava para alterar uma parte da sua identidade e perturbar o xadrez político da Europa, a rainha apareceu num evento público trajada de azul-UE, o que alguns entenderam como uma subtileza política e outros apenas como resultado aleatório da pesca matinal no rainbow closet (o compartimento onde se guardavam os tailleurs da rainha, dispostos em pantone como nas lojas CIN). Não se lhe tendo conhecido um pronunciamento mais assertivo ou sequer um apelo à reflexão sobre o destino do seu próprio reino naquela encruzilhada, podemos deduzir que à rainha era indiferente a escolha política desde que pudesse continuar a sucessão dos dias com as suas alternâncias de cor e as transferências do orçamento de estado. Mais do que personificar uma nação ou um reino, parece-me que a rainha personificava (sem ironia, claro, que lhe estava vedada) as variações cromáticas de Andy Warhol. Era tão bidimensional e desinteressante quanto as telas em série que a representavam.

Os entendidos da monarquia ou os amantes de fatos de tecido e corte britânico (que são mais ou menos o mesmo grupo) dir-me-ão, zangados e paternalistas, que a rainha, mais do que um chefe de estado, é uma presença tutelar, uma figura que representa a linhagem, a continuidade e, naturalmente, a fibra de um povo. Desempenha mais ou menos o papel fantasmático dos retratos de tetravôs em paredes de tabique ou dos totens esculpidos e venerados de certas tribos, das estátuas de deuses orientais ou pagãos, o papel da Virgem Maria num muro de jardim católico ou da múmia de Lenine na Rússia. Por este prisma, creio que mandá-la embalsamar seria uma ideia mais coerente e eficaz do que passar a coroa ao filho. Não há nada de mais fleumático do que a obra de um taxidermista.

Mas talvez as pessoas a amassem como os patriotas e as crianças amam uma bandeira, fascinados com as cores e o drapejar. E assim, na impossibilidade legal e ética de prender o príncipe Carlos a um mastro pelo tempo do seu mandato, talvez os britânicos pudessem simplesmente arvorar um dos seus jaquetões vermelhos de cerimónia e aclamá-lo rei. Ao jaquetão.


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P.S.: Se a imperturbabilidade da rainha explica o sucesso da Inglaterra nos últimos setenta anos, proponho que em Portugal se eleve com urgência um bibelô a presidente da República. (A hipótese múmia revelou-se inadequada, sobrava-lhe em lata o que lhe faltava em fleuma.)

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Morreu Javier Marías, que tristeza.
(O cânone hodierno já deve estar a esfregar as mãos para o substituir por alguém que escreva frases curtas, despojadas, como gostam os tempos.)

Regressando às coisas sérias

«Se a sua vida tem uma música ela passa na M80», diz o slogan. Ora, a minha vida tem muitas músicas, algumas delas embaraçosas, mas de todas as vezes que nesta silly season dei o benefício da dúvida à estação não ouvi nada que se aproximasse da minha discoteca vital.
Diria que há um esforço (bem sucedido) de privar a rádio de qualquer elemento distintivo que a possa associar aos anos 80. O que ali se ouve não tem era; não porque é intemporal, mas porque é incaracterístico, de uma mediocridade sensaborona que atravessa os tempos.

domingo, 11 de setembro de 2022

Notícias da guerra

Do alto das minhas divisas de antigo furriel de morteiros, achei que as notícias insistentes de que a Ucrânia preparava uma ofensiva no sul só podiam traduzir duas coisas: inépcia (quem, numa guerra, mesmo na era da exposição sem filtros das redes sociais, pré-anuncia as operações militares?) ou engodo. Que o exército russo tenha mordido o isco só pode dever-se a má formação cinematográfica dos seus oficiais superiores ou à falta de espaço para pensamento estratégico num centro de comando militar sobrelotado com o ego e a obsessão do supremo comandante.
É francamente precipitado começarem a circular os memes com a cena do bunker de “A Queda”, mas se chegar a hora nem vale a pena engendrar novos diálogos.