quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Breve história de uma carreira pop
Começou por cantar na missa levado pela mãe, uma senhora mística e sofridamente adúltera que lhe transmitiu o gosto pelo êxtase à la Teresa D’Ávila. Era famosa a sua (dele, todo rosado) boquinha de anjo. Na adolescência, nauseado por tanto apregoar sem resultados a virtude e a humildade, entrou à noite e às escondidas, de cerveja choca na mão, para uma banda de rock’n’roll. Quando começou a dominar a técnica, que, além da guitarra, implicava o lábio superior, a sobrancelha direita e um certo jogo de joelhos, chegou o punk e viu-se então obrigado a fingir que não sabia mais do que dois acordes e que desafinava por origem social. Para facilitar, fez-se baterista, posição em que lhe custava menos parecer genuinamente incapaz e onde o seu entusiasmo musical, a martelar com energia tambores e pratos, poderia facilmente confundir-se com um tique resultante de labor proletário, as contracções espasmódicas de um operário chaplinesco já fora do alcance da medicina no trabalho. Mas não chegou a aquecer o tamborete, porque logo logo se impôs o new romantic, um punk limpo e amaricado cujas cabeleiras barrocas e caras empoadas lhe lembravam, dos tempos de acólito, as gravuras que o obrigavam a ver sempre que lhe ensinavam um novo requiem ou quaisquer outras obras litúrgicas. Passou aí a ser o frontman porque, apesar de tudo, o encavalitar dos dentes após a velha e precipitada recusa revolucionária do aparelho e os inesperados e incipientes pêlos de uma barba dylanesca, bobdylanesca, não lhe perturbaram a natureza essencialmente angélica e aristocrata, o perfil quase helénico e petrificado de figura de proa de um veleiro. Ficou então famoso o seu apetite por microfones, que mordia criando uma imagem de marca (e deixando um registo odontológico) muito dirigida a teenagers leitoras da Bravo mas pouco apreciada pelos promotores de concertos e nada pelos vocalistas que, enojados, lhe sucediam no alinhamento dos festivais. Da new age à soul foi um passo natural, porque, naqueles anos, a quem não tinha atitude ou carisma suficiente não restava mais do que permanecer verdadeira e frustradamente cantor, tendo talento. Ninguém ignorava que ele teria preferido optar por uma carreira mais sexual e menos musical, mas não havia nada a fazer, só a voz lhe valia. Despediu então toda a banda, uma malta que entretanto se tinha tornado assaz competente, para contratar afro-descendentes. A soul pedia, achava ele, um balanço específico e mais fôlego, coros poderosos, predicados que o seu velho combo de não cantores movido a Super Bock e Macieira não tinha como providenciar. Foi-se ao bairro dos retornados e veio de lá com uma secção rítmica capaz e um coro de moças roliças que teria maravilhado a sua mãe, não fora o tom da pele delas não combinar com os reposteiros da família. Da velha banda que o acompanhara pela história da música sobrou, por polivalência e consequente direito próprio, o teclista, um Ray Manzarek que não raras vezes saía da madrugada do backstage, limpando os óculos de tartaruga, para a nave da sé, onde tinha a seu cargo o matutino órgão de tubos. E então a soul deu-lhe cabo da carreira. Quando se imaginava um George Michael nacional, como ele reinventado e introduzido numa respeitabilidade vocal e interpretativa a que a imprensa se haveria de render (embora no seu íntimo continuasse a lamentar-se por a voz ser o seu único predicado), começaram a acometê-lo pesadelos, terríveis pesadelos. Via-se no palco como no convés de uma nau quinhentista, uma nau negreira. O pálido Manzarek era o seu imediato e a banda mais o coro, todos negros ou mestiços, eram os escravos. Noite após noite durante a sua última digressão, baralhando épocas e tragédias históricas, não conseguia deixar de ver o baterista como o sonderkommando que marcava o ritmo nas galés e as coristas, nas suas coreografias de braços ondulantes, como os condenados remadores. Esgotado e dominado por um remorso de classe que uma carreira musical plebeia não conseguira desvanecer — ainda que aquela mesma carreira tivesse feito morrer de desgosto a mãe, já de si deprimida por haver na verdade pouco proveito prático no adultério sénior — resolveu à boa maneira maoista fazer um mea culpa público e abriu na baixa um centro de terapia com sinos tibetanos.
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