A pentalogia de Edward St Aubyn e a teatralogia de Elena Ferrante que elogiei no post anterior deram séries de televisão. Vi críticas positivas e negativas e depois disso vi as séries. Com prazer.
Acho que nunca tinha pensado no assunto mas parece-me que as séries da HBO e da Netflix desempenham hoje, para uma vasta franja da classe média — a mais letrada, ou talvez apenas a mais urbana e por vezes a mais hipster — o mesmo papel que desempenhavam as novelas brasileiras quando a televisão se disseminou pelo país. Gabriela, O Casarão e Escrava Isaura eram o Game of Thrones de que toda a gente falava na segunda metade dos anos setenta, depois de famílias inteiras (em regra três gerações de humanos e várias de gatos) terem passado uma hora da noite anterior em frente a um ecrã ridiculamente pequeno e com poucos pixéis.
Na altura, pelo menos na minha parte do país, não havia assim tantas televisões e as antenas estavam sempre a dessintonizar-se, pelo que era frequente vizinhos juntarem-se nas casas uns dos outros para não perderem um capítulo. O início dos episódios vinha geralmente acompanhado de um berro alegre de alguém: o alerta de um muezim laico a congregar a família espalhada pelos cantos da casa. Por vezes, se o aparelho tinha um volume generoso, bastava como chamamento a música do genérico, uma melodia de Hamelin que toda a gente reconhecia e cantarolava de ouvido.
Se a dada altura no enredo das novelas alguma coisa de mais hilariante ou dramático acontecia, as conversas nacionais do dia seguinte mencionavam-na obrigatoriamente, de norte a sul, da mercearia de aldeia ao bar do Ritz, e o último episódio de cada uma das séries não gerava menos zunzum de que por estes dias a batalha final do já referido Game of Thrones.
Alguns dos actuais espectadores não gostarão da analogia, avessos a tudo o que seja antiquado ou pareça cafona, mas, se de lhes fosse dada a possibilidade de estudarem com irónica distância o seu comportamento, descobririam que são mesmo descendentes daqueles seres hirsutos (lembro que estávamos nos anos setenta) que se amontoavam em frente aos raios catódicos como Neandertais fascinados pelo fogo — e que, como eles, não passam sem ficção.
Francisco José Viegas escreveu na LER em 2018 que, embora o mercado editorial da ficção esteja em baixa, a ficção não está em crise, a julgar pelos investimentos da Netflix. Talvez porque, pelo menos desde Altamira, a ficção faz parte da estratégia de sobrevivência dos genes humanos. Suspeito que não se trata apenas de ocupar o tempo na caverna ou de inventar explicações para a trovoada, mas talvez de transcender a mais ou menos limitada experiência do mundo que cabe a cada indivíduo.
Outro dado interessante referido por Viegas naquele editorial é que «os filmes produzidos a partir de livros têm cerca de 30% de maior êxito do que os de argumentos originais». Somos assim testemunhas raras da estatística enquanto apologia dos livros. Mas o que está aqui implícito? Que o livro tende a garantir a qualidade dos filmes ou das séries, e que portanto os espectadores preferem qualidade? Ou que o livro ainda é uma mais-valia no que concerne à notoriedade e, consequentemente, ao êxito? Em ambos os casos, a estatística estaria a ser lisonjeira para os livros, se não pela indicação de que o que é literário é melhor e é preferido, pela revelação optimista de que a sociedade ainda dá importância aos livros.
Não sei se a aura mítica da trilogia de novelas brasileiras inaugurais da televisão portuguesa — as melhores jamais apresentadas, tendemos a dizer — se deve à habitual nostalgia que nos provoca o vivido em idades anteriores, se a uma tradição cultural ou a uma fisiologia mental que valorizam o pioneiro ou inédito em detrimento do sucedâneo, ou se, como seria conveniente à literatura, ao facto de terem sido realizadas a partir de romances (pelo menos duas delas).
Sei que vi as séries Patrick Melrose e A Amiga Genial com gosto, mesmo já tendo lido os livros, como vi outras que foram realizadas a partir de argumentos originais. E sei ainda que, em todo o caso, nenhuma destas experiências se sobrepôs à experiência de ler os livros, de ler livros. Talvez porque há geralmente nos livros mais espaço e estímulo para a mente do usuário, para a sua imaginação, e, mesmo que a afirmação pareça pomposa, isso o aproxima mais dos mecanismos do inefável, do grande mistério por detrás do Universo e da Vida.
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