sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Um mergulho ao crepúsculo


Se me pedirem uma definição de felicidade, digo um mergulho ao crepúsculo. Não é de agora, sempre me seduziu a ideia de nadar depois de se pôr o Sol e insinuar a noite. Quando era adolescente, ficava com dois ou três compinchas à espera que o porteiro da piscina se fosse finalmente embora para voltar à água, depois de saltar o gradeamento. Não nos convencia a convenção burguesa de horários de abertura e fecho de uma coisa tão essencial à vida quanto a piscina, e ao crepúsculo a temperatura do ar aproximava-se da da água, pelo que os dois ambientes pareciam extensão um do outro, como se regressássemos à condição primitiva de anfíbios, tão confortáveis dentro como fora da piscina, sem choques térmicos nem sobressaltos existenciais. Toda a gente se tinha ido embora para cumprir o hábito de jantar a horas pelo que se acumulavam sensações: emancipação, liberdade, posse, exclusividade, privilégio, intemporalidade, imortalidade.
Com o tempo deixei de ser um fanático dos banhos, incomodado pelas multidões, pela música idiota e aos berros das piscinas, mas também pelo sol agora inclemente, pelas beatas na areia da praia e mesmo pela areia sem beatas. Contudo, sempre que tive a oportunidade de chegar com bom tempo ao local dos banhos e depois de quase todos terem saído, aproveitei e fui feliz. Mas isso tornou-se cada vez mais raro, as piscinas fecham cedo e a vida tem-me deixado quase sempre longe de praias desertas, lagos ou rios navegáveis a crawl.
Por isso, há dias, quando dei por mim sem compromissos junto ao Douro num fim de tarde paradisíaco, pus-me a olhar para água e a cismar.
Lembrava-me da minha novelita duriense e de como tinha ficado cheio de inveja dos mergulhos do protagonista. (Escrever a novela tinha sido, aliás, em parte, uma tentativa de adivinhação ou de inoculação por via ficcional do prazer de nadar no Douro vinhateiro.)
Havia o inconveniente de estar desprevenido, sem calções de banho ou toalha; a água mostrava-se suja pelos barcos; ignorava as correntes e o fundo de um rio que nunca draguei. Mas havia uma urgência grande de sentir na pele a água e de ter a experiência. Assustou-me a ideia de passar os próximos tempos ou a vida com remorsos de ter recuado.
Os barcos acostaram longe, os últimos turistas já só passavam na estrada a caminho de sítios onde jantar, os peixes ficaram mais activos nas suas emersões para apanhar os mosquitos do ocaso e eu despi-me e entrei na água, suavemente, longamente, até ao eixo do rio e até ser noite…

No dia seguinte voltei, um pouco mais cedo e já com companhia vigilante, que tirou de mim a fotografia ali de cima, onde o autor imita a obra. A foto está lá não para satisfazer o impulso narcísico de me ver e rever nas águas, mas para activar as sinapses que guardam a memória de um mergulho ao crepúsculo. Para me recordar que fui feliz, em suma.



terça-feira, 4 de setembro de 2018

«Woodstock na Igreja»

Vendo-se incapaz de fazer desaparecer devoções e ritos populares dedicados a deuses pagãos, a Igreja Católica ancestral resolveu incorporá-los na sua própria caderneta hagiográfica e no seu calendário paralitúrgico. As festas populares dizem-se de devoção a este ou aquele santo católico, mas uma boa parte delas tem na sua origem e estrutura uma devoção e um costume pagãos.

A moeda de troca que a Igreja Católica aceitou pagar para que o povo não rejeitasse a apropriação foi a bênção mais ou menos tácita do lado profano das celebrações: a música, os bailes, as refeições pantagruélicas, a bebida a rodos, uma alegria desenfreada e por vezes debochada, pouco católica, em suma.

O corolário relativamente recente desta concordata plebeia foi o livre-trânsito para a brejeirice da música pimba. Conquanto um bom punhado de crentes não falte à missa e à procissão, a Igreja não vê qualquer inconveniente em que no adro, na madrugada anterior, se rocem os corpos e cantem letras libidinosas e frequentemente grosseiras, machistas, sexistas, atávicas e desafinadas.

É por isso curioso ler agora que um conjunto de católicos e o próprio bispo de Santarém se indignaram porque no festival Bons Sons (na aldeia de Cem Soldos) houve um concerto de música moderna portuguesa numa capela («Woodstock na igreja», disseram, escandalizados). O protagonista do concerto era essa figura mefistofélica que dá pelo nome artístico de Homem em Catarse (googlem, só correm o risco de gostar).
A notícia vem em vários órgãos de comunicação, alguns dos quais provavelmente nunca dedicaram uma linha ao festival e às actividades de Cem Soldos mas não hesitaram perante esta polémica.

Se tivesse pelo menos a inteligência táctica que demonstrou há séculos, a Igreja Católica estaria hoje a tentar seduzir o Bons Sons (e nós esperando que sem sucesso). Assim, limitou-se a demonstrar de novo uma estrutural estupidez e falta de gosto*.

(*Com a excepção do padre da paróquia.)

domingo, 2 de setembro de 2018

A invasão da joaninha

Na Polónia, se estivermos atentos, somos duma forma ou doutra alertados para os perigos de sermos permissivos em relação à ameaça de regimes fascistas ou totalitários como o nazi e o soviético, mas quando vemos a intensa disseminação de supermercados Biedronka (a ‘Joaninha’ da Jerónimo Martins) e de filiais do Millennium Bank (Millennium BCP) interrogamo-nos se não deveríamos nós alertar os polacos quanto aos perigos que correm com esta nova ocupação.

sábado, 1 de setembro de 2018

Auschwitz e Birkenau ou o castelo de Drácula


Auschwitz e Birkenau não deviam ser visitados de Verão. O Agosto polaco é demasiado benévolo, a paisagem verde demasiado bucólica, a arquitectura demasiado harmoniosa (perdoem-me a observação) e as pessoas, animadas pelo bom tempo, demasiado gentis para que possamos sentir na pele, nas entranhas, a experiência extrema e terrível da vida num campo de extermínio nazi.

A boa prestação da guia, assertiva no relato histórico e na sugestão de que ele nos deve manter em alerta permanente, não chega a arrepiar profundamente os visitantes, decerto condoídos mas temo que não muito mais do que o estariam se visitassem uma masmorra da Inquisição, essa entidade velha de séculos e anacrónica como calças à boca-de-sino, que ninguém acredita que voltem.

A escala desmesurada de Birkenau lá arranca os seus murmúrios de espanto, mas julgo que os turistas do Holocausto apenas interiorizariam a experiência se tivessem de se enterrar nas lamas do Outono ou da Primavera ou de bater os dentes nas neves de Dezembro. Num Agosto assim, receio que a visita a Auschwitz e Birkenau, com as suas latrinas limpas e a refulgente cerâmica dos fogões de aquecimento, se pareça a uma visita aos jardins do castelo de Drácula.