sexta-feira, 2 de maio de 2014

O retrato do escritor

Já escrevi sobre isto algumas vezes: é um erro que manuais escolares, jornais, revistas literárias, contracapas e badanas ou separadores televisivos (estes já só em dias de centenário) passem o tempo a mostrar imagens dos escritores clássicos enquanto velhos. A escrita literária não dispensa, geralmente, maturidade e sapiência, mas não é uma actividade reservada a anciãos, como a iconografia editorial sugere. Pedagogicamente, esta tradição ou inércia tem sido catastrófica. A juventude está por vezes disponível para a literatura, mas é sempre avessa a projectar-se a si própria na terceira idade. E o que a imagética institucional tem feito é dar à juventude a desculpa de que ela precisa para remeter os clássicos para a cave bafienta da paleontologia (sem que Hollywood tenha feito com os escribas jurássicos o mesmo marketing que fez com os dinossauros).
Somado o fosso geracional ao fosso histórico — tão fundamente cavados pela passagem do tempo, a invenção da cor, a evolução do trajar e do pentear, e pelas escolhas preguiçosas dos responsáveis gráficos —, é uma verdadeira surpresa que hoje alguém com menos de trinta anos se interesse por literatura com mais de vinte anos (quando já tão dificilmente se interessa por literatura tout court).
É certo que em alguns dos casos mais antigos não há retratos disponíveis do escritor enquanto jovem. Sobram uma estatuária amputada, umas gravuras que parecem de santinhos da igreja, de duvidosa correspondência ao modelo biológico. Mas, havendo pudor de fazer passar esta iconografia por um processo inverso ao da Maddie (um rejuvenescimento especulativo computadorizado), restavam duas soluções: assegurar-se que de autores mais recentes se publicavam sobretudo as fotos menos envelhecidas, para contrabalançar, ou optar-se por biografias em vez de imagens, biografias que insistissem particularmente no facto de os autores terem sido jovens e humanos como todas as outras pessoas.
Porque a verdade é que a maioria dos escritores e pensadores não teve de esperar pelos sessenta ou setenta anos para escrever as suas melhores obras — e é isso que a juventude em formação precisaria imediatamente de saber, se não por imagens, por palavras. Que, tirando José Rodrigues dos Santos, a literatura é coisa de gente interessante ou normal, viva ela em que século viva.
Para ser verdadeiramente pedagógico, um livro ou manual escolar deveria apresentar a imagem do escritor à época que escreveu o texto. Junto com o cadastro policial e político, testes de alcoolémia, testemunhos de rivais, resultados de análises às DST e cartas de ex-amantes ressentidos/as.

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