terça-feira, 19 de agosto de 2014

Deserção à hora do chá*

«Os escritores ingleses são todos snobs
«Pois eu queria ser um escritor inglês. Nem precisava, aliás, ser escritor. Inglês snob era suficiente. Ou apenas snob. Um snob convicto, sem escrúpulos nem clemência, em vez de português suave com filtro. Da próxima vez que der por mim com rosadas pretensões tugas, faço-me um ultimato britânico, juro. Antes a cor do sangue que o apelo do sangue, if you know what I mean


* Diálogo de uma novela por escrever.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Considerações sobre o bacalhau

Nunca, na minha vida civil, estou preparado para um aperto de mão. Quando se vive uma existência ensimesmada, o exuberante comércio social que é o aperto de mão surge inesperadamente, de súbito, como uma bala no campo de batalha (nunca estamos preparados para uma bala, nem num campo de batalha, há toneladas de bibliografia a asseverá-lo).
Resulta que a extremidade que estendo em reacção a um cumprimento, mesmo quando o faço de bom-grado, se apresenta geralmente frouxa, é apertada sem chegar a apertar. Nos melhores momentos, naqueles em que não dou choques eléctricos e consigo tempo para invocar o conceito de aperto de mão, estalam-me as falanges e os ossos do pulso no exercício de tentar que o destreinado conjunto se configure na posição correcta. Num ápice a minha mão direita é esmagada sem oposição (quando do outro lado está um culturista ou um operário) ou humilhada (quando acomodada num cumprimento competente, franco). Conheço pessoas assim, cujos bacalhaus me embaraçam, pela assertividade férrea ou pela afabilidade uterina com que acolhem os meus metacarpos. E invejo-as, sobretudo as segundas. Sim, invejo as afáveis. Um cumprimento triturador pode ser involuntário (num madeireiro habituado ao machado), mas é frequentemente exibicionista, uma pueril forma de cotejamento, não raro uma pré-declaração de guerra. Pelo contrário, um aperto de mão afável, acomodatício, ergonómico, envolvente e restaurador como uma massagem é gesto de quem vive em estado de graça. Ou é como a ironia em quem a sabe usar. Um gesto de verdadeira superioridade.
Ah, não ser um desses que levitam enquanto dão apertos de mão; dar mais cinco como quem unge Lázaro ou administra a extrema-unção. Ah, não ter sido bafejado com uma anatomia sociável, mãos como berços em vez de apêndices desajeitados, misantropos. Antes mãos de tesoura — e podia ganhar sossegadamente a vida a podar sebes. Afinal, ninguém estranha a soturnidade num jardineiro.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A constante da equação


Entre uma foto e outra passaram dois anos. Na primeira, de 2012, o livro era A Informação, de Martin Amis. Na segunda, actual, o livro é Os Velhos Diabos, de Kingsley Amis.
Há duas ordens de leitura possíveis para estes livros — por data de edição ou por idade dos autores e dos protagonistas —, mas só uma é cronologicamente correcta.
Há também inúmeras formas de os ler, mas só uma nos salva deles. É que ambos são divertidos, mas a matéria de que fazem uso (a vida) não o é assim tanto, se levada a sério. Não caia na asneira de os ler na cama ou no sofá lá de casa. É necessário descer ao sol promissor do Alentejo e enfiarmo-nos em calções curtos numa piscina infantil, se quisermos sair verdadeiramente risonhos de ler os Amis.

Publicado originalmente em 1995, quando Martin tinha 46 anos, A Informação trata de gente na casa dos quarenta. Os Velhos Diabos saiu antes, em 1986, tinha Kingsley 64, e fala de sexagenários. Martin, que tem agora 65 anos, há-de andar desesperado para não escrever um romance demasiado parecido a Os Velhos Diabos. Ser-lhe-á difícil. Não porque esteja condenado a imitar o estilo do pai — mas porque a vida (a tal matéria literária) não muda, verdadeiramente. Da minha relativa juventude, prevejo que não difere muito ser-se sexagenário em 1986, 2014 ou 2034. Daqui a vinte anos eu próprio estarei a ter as minhas dificuldades para não publicar uma imitação de Os Velhos Diabos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Rule, Britannia!


Ordenar cavaleiro um escritor era matá-lo. Aos meus olhos.
Sir Kingsley Amis soou-me sempre demasiado pomposo e isso manteve-me à distância. Não admira que os livros do filho tivessem degenerado, imaginava eu. Quem suporta um pai hierático, com assento no panteão? Um tipo torna-se pornógrafo ou bombista, algo que ofenda a moral paterna, se tem de viver à sombra de um pai destes.
Entretanto, deu-me para ler Os Velhos Diabos do Amis sénior e tive de reconsiderar. A luta de Martin com o pai, percebo agora, foi de outro cariz. Não teve de o afrontar — teve de o suplantar. Na prosa e na corrosão. Amis pai é Amis filho adiantado umas décadas e um pouco menos à-vontade com palavrões.
Kingsley Amis, descobri com espanto e embaraço, de sir (na acepção palaciana) só tinha o título, no resto era um de nós, disfuncionais e reles humanos. Alguém que vale a pena ler, portanto.

Ordenar cavaleiro um escritor é dar-lhe um lustro despropositado, afastar leitores avessos a salamaleques. Em alguns casos é mesmo ridículo. Ou então, ordenar cavaleiro um escritor é um gesto de uma civilização superior. Se calhar é isto e eu é que estou demasiado habituado a ser tuga.

P.S.: Sim, talvez haja algo a dizer sobre esta estranha propensão para ler os Amis numa piscina infantil.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ouroboros (ou Vai haver cachaporra!)

[Foto de Renato Roque]

Depois de uma conversa com o senhor da foto, em 2012, achei-me tolamente incumbido de escrever uma sinopse de uma peça. Duas semanas mais tarde, à falta de outra inspiração, fi-lo — e a seguir, encorajado, comecei a escrever o livro que o senhor lê. A peça tinha um bordão — «Vai haver cachaporra!» — que é capaz de se cumprir quando ele descobrir que roubei a foto para aqui expor. Mas ao tropeçar há um bocado nela pareceu-me inevitável publicá-la. A imagem é bonita e (para mim) perturbadora, como se o R. tivesse vindo ao futuro ler a obra que de algum modo começou a germinar na conversa que tivemos. Os gregos chamavam a isto ‘ouroboros’, a serpente que morde a própria cauda, ou coisa assim. Eu vou chamar-lhe o fim de um ciclo, forma ingénua de convocar de novo as musas. (É mais bonito do que ameaçar-me com uma cachaporra; duvido, porém, que mais eficaz.)