segunda-feira, 18 de abril de 2016

A luta de Churchill e a luta de Hitler

Nos tempos que correm, parece boa ideia revisitar as Memórias da II Guerra Mundial, de Winston Churchill. A direita, porém, que costumava andar de boca cheia com citações ou episódios churchillianos, parece não achar o mesmo. Veja-se que simpatias tem a direita, que líderes e discursos aplaude, que condescendência selectiva pratica, que cinismo cultiva — da Alemanha à Inglaterra, da América ao Brasil, passando pelas colunas do Observador. Se não houvesse hoje razões ideológicas para rejeitar a direita, haveria as companhias que ela escolhe.

Em 2016 cessaram os direitos autorais sobre Mein Kampf — que a Baviera assumira depois do final da guerra e da morte de Hitler — e o Instituto de História Contemporânea de Munique-Berlim editou uma versão crítica com 3.500 notas que é já um best-seller. Inúmeros países querem os direitos de tradução (para já negados).
Segundo os editores, o perfil do comprador é de pesquisadores e pessoas interessadas em História. Talvez seja assim, mas não custa imaginar a direita a contribuir para o sucesso de vendas do calhamaço apenas para questionar o rigor das notas. É, desconfio, uma ocupação intelectual que muitos preferirão a, por exemplo, reflexões sobre a mestria na descrição histórica e biográfica e sobre a brilhante oratória na defesa de elevados valores humanos que o comité do Nobel viu nos escritos de Churchill.
Se aquilo é democracia, João Baião — quando dá o microfone aos beijinhos para a Suiça e saudades para a Lourinhã — é, com a bênção do Deus que legámos ao Brasil, um estadista de primeira água.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Enologia da arte

A comédia ligeira autopromove-se em tempos de crise dizendo que as pessoas precisam de se distrair das dificuldades da vida. Por outro lado, se os dias vão soalheiros e fecundos, a comédia ligeira quer também ser dominante, porque num tal mundo de felicidade seria funesto ter outra atitude que não a do riso leve e fácil.
A comédia ligeira quer, enfim, ser como o vinho, que se bebe para esquecer e para celebrar, por depressão e alegria.

Não interessa à comédia ligeira que, tirando certo tipo irrecuperável de bêbados, as pessoas prefeririam um vinho bom e distinto — caso o pudessem provar, diferenciar e adquirir — à zurrapa corriqueira que por força consomem. Só bebe mau vinho quem não pode beber outro. Ou, por tradicional teimosia e orgulho besta, quem o produz. Unipessoal ou cooperativamente.

sexta-feira, 18 de março de 2016

E agora, já se pode comparar Trump a Hitler? Ou ainda é cedo, Mr Chamberlain?

quarta-feira, 2 de março de 2016

Considerações sobre a intifada

1. Há anos um jornalista espanhol em viagem que atravessou Portugal de norte a sul escreveu um livro com as suas impressões e calhou de considerar horrível a capela que, na sua de facto pouca lindeza, vigia do alto uma das terras onde vivi. Não era ainda o tempo das redes sociais, mas já havia indignação na paróquia contra o espanhol, e se ele tivesse a má ideia de voltar ali, dificilmente passaria sem uma reprimenda.
Em Portugal as pessoas orgulham-se de tudo e sobretudo de nada, e a circunstância, para a qual por definição nada contribuíram, de terem nascido em determinada província ou país, que com frequência execram ou desonram, consegue por vezes transformá-las em espantosos chauvinistas. Raramente ou nunca se unem para salvar um monumento, reconstruir uma escola ou homenagear quem realmente sobressaia da mediania, mas entrelaçam de imediato os braços numa frente tribal contra o infeliz que se dê ao trabalho de achar menos perfeito o habitat delas.

2. O cronista Henrique Raposo escreveu um livro onde decidiu separar-se da sua terra natal, o Alentejo. (Ninguém se devia admirar que Raposo mais cedo ou mais tarde levantasse um idiossincrático e repreensor dedo ao velho Alentejo vermelho. O complexo de Édipo que a todos nos pisca o olho não poderia deixar de ter nele e na sua ideológica condição uma particular influência.)
Henrique falou do livro numa entrevista, onde expôs mágoas, desilusões e ressentimentos que o livro desenvolve. Foi duro e teve reacções, como é natural. Só que as reacções, neste país de facções e claques e raciocínio hooligan que o futebol moldou, rapidamente se transformaram em urros, vontade de linchamento e desfalecimentos pirómanos. O autor foi ameaçado e o livro alvo de petições incineradoras. O direito e a civilização a ele associada, se tivessem de ser inventados agora e em Portugal, jamais veriam a existência, mas Fahrenheit 451 ou qualquer distopia que envolva fascistóides massas acéfalas e enfileiradas são ficção apenas por acaso e provisoriamente.


P.S.: Intifada à parte, parece-me compreensível mas noutro contexto deslocada a generosidade de evocar Com Os Holandeses, de Rentes de Carvalho, a propósito do livro de Henrique Raposo, como fez Bruno Vieira Amaral: há um tom irritante de cátedra e ciência ou moral certa em Raposo que não me lembro de ter notado em Rentes. 

terça-feira, 1 de março de 2016

Um drama social

A loja de conveniência é o seu ponto de encontro e os seus hábitos um drama social. Chegam e raspam com impaciente mestria, usando em gestos rápidos a moeda como o cartão de crédito de quem emparelha linhas para nasalar na superfície vidrada do balcão. A fúria com que rasgam o papelucho sem prémio é a mesma de quem despedaça as contumazes protecções das rolhas quando estas, pela sua resistência procrastinadora, obrigam a que a vital respiração do vinho se faça logo boca a boca.

São uns viciados, sim. E, porque alardeariam um milhão como alardeiam os 50 euros que às vezes lhes calham, não há esperança de que adiram voluntariamente a um grupo de milionários anónimos.