O Observador é uma bela ideia
na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas.
Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também
mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto
verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na
verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem
escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)
Numa das produções recentes
daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes:
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*
O parágrafo é todo um programa
— e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo;
por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora:
Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente.
Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em
frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão
longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os
clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o
voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da
juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas
nas costas.
Jogou aliás tão pelo seguro
que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance
teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação
da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro
que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve
ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis
para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Haveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda
mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga
impostos na Holanda, podemos estar
a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais
uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente
prémios a gestores, podemos estar
a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais
uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se
julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço
demasiado elevado a pagar.
Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons
conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente
já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).