terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Duetos



Todas as décadas têm os seus duetos felizes. Peter Gabriel abraçou-se a Kate Bush em “Don’t give up” (1986). Nick Cave, a PJ Harvey em “Henry Lee” (1996), tendo depois Polly Jean cometido infidelidade com Thom Yorke em “This mess we’re in”(2000).

“Strange weather” (2014), original de Keren Ann que junta Anna Calvi e David Byrne, tem a felicidade de fazer uma ponte entre os sixties e o século XXI, e não é pela participação de David Byrne (aliás, da geração de 70). Anna Calvi é uma excelente criadora também pelas reminiscências velvetundergroundianas da sua voz e da sua guitarra.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Tenho saudades do Alentejo — mas não é isso que faz de mim um mau transmontano.

Abduzido pela música

A música, como a literatura, transporta-nos. É um velho cliché e, como tantos velhos clichés, uma verdade. Mas em alguns momentos da minha vida a música foi para mim menos Ambrósio e mais Mr. Scott, não tanto por o meu imaginário permanecer intergaláctico mas porque a deslocação promovida pela música era do género teletransporte, sugava-me a alma e materializava-a através de um feixe numa realidade paralela. Só assim se compreende, por exemplo, que certa noite na alta adolescência eu subisse a rua e em vez de torcer o nariz ao rádio que a Maria da Luz sintonizara em volume de arraial no passeio desse por mim a dançar a “Billie Jean”, do Michael Jackson. É certo que tinha andado a tentar aprender a linha de baixo da canção, mas geralmente mantinha na intimidade esse tipo de desvio de personalidade. Era Verão e havia possivelmente lua cheia, mas não me lembro de nenhuma visão que quase me parasse o coração (caso contrário teria dançado o “Thriller”). Aquilo era abdução pura, um metafísico tabefe gaulês que de mim só deixava as sandálias em modo moonwalk no passeio. Era eu por interposta pop a convidar o Álvaro de Campos sensacionista que havia em mim a calçar os meus sapatos (sim, felizmente também me acontecia a ouvir Depeche Mode, mesmo antes de eles terem gravado a canção). Depois a música acabava — depressa demais, como sempre acontece com a pop/rock (que saudades tinha do Barroco) — e lá ficava eu aturdido a sacudir o pó da roupa como se tivesse acabado de fazer a Route 66 ou de acompanhar Bento de Góis na primeira viagem europeia terrestre da Índia para a China (e toda a gente sabe como ficamos cheios de pó se vamos a pé da Índia para a China). 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Brecht dos bons observadores

O Observador é uma bela ideia na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas. Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)

Numa das produções recentes daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes: 
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*

O parágrafo é todo um programa — e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo; por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora: Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente. Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas nas costas.

Jogou aliás tão pelo seguro que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vidaHaveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga impostos na Holanda, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente prémios a gestores, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço demasiado elevado a pagar.

Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).


*A prosa tem um contexto alegadamente racional que pode ser livremente aferido aqui: http://observador.pt/opiniao/quanto-vale-uma-vida/

João Miguel Tavares segrega pessoas de estatura mediana

Aborrecido com o hábito de ainda se confundir a direita com os ricos e a esquerda com os pobres (a quem ocorre tal coisa?), João Miguel Tavares resolveu introduzir um novo «eixo político» para separar as águas de forma mais democrática, digamos. Esse novo eixo dividiria o espectro político em «alto/baixo». Ouçamo-lo: 
«Neste novo “alto” poderíamos incluir tanto a habitual casta económica e política, como os detentores de privilégios corporativos, os burocratas que dificultam a livre iniciativa ou os especialistas na arte de fugir aos impostos; enquanto no novo “baixo” poderíamos colocar não só os pobres, mas também os reformados que se sentem espoliados, os jovens que nunca conseguiram um emprego, e todos aqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos.»

Ora, a não ser que JMT reconheça que todas as pessoas honestas e boas são pobres (o que se diria uma surpresa na sua mundividência), esta nova divisão acrescenta a um novo maniqueísmo uma omissão ou um estigma. Um tipo que mantenha um emprego conseguido por mérito e não passe fome ou não existe no Portugal tavaresco ou é detentor de um privilégio corporativo, um burocrata que dificulta a livre iniciativa, enfim, um especialista na arte de fugir aos impostos. Acreditando que JMT não se vê a si mesmo como uma destas pessoas, temos de concluir que faz parte da habitual casta económica e política. Ou então é um pobre, já que não parece um dos reformados que se sentem espoliados nem um dos jovens que nunca conseguiram um emprego. A não ser, claro, que Tavares se sinta como um daqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos e aí está tudo explicado, incluindo a sua divertida proposta taxonómica.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Objectos inúteis

Para elevar o ecrã do portátil ao nível dos olhos e tentar contrariar a marreca de horas a mais ao teclado, uso uma biografia de Mao Tsé-Tung, um volume sobre castelos e uma escalfeta velha. São três objectos que não me fazem falta. De crápulas sei já o suficiente. Para castelos deixei de ter posses. Contra o frio rasteiro calço uns eficazes peúgos de lã grossa e áspera. Este é, contudo, um pragmatismo diferente daquele que com alegria incauta erigiu a babélica torre sobre a secretária.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Densidade

Meio à procura de alienação fílmica, meio enganado pelas estrelinhas do Público (dois críticos, 4 estrelas, não li a sinopse), fui um destes dias ver Blackhat – Ameaça na Rede. Não é uma comédia, mas diverti-me como se estivesse a ver uma (o filme é mauzinho). A dada altura, numa homenagem ao mítico MacGyver, o protagonista improvisa armamento e equipamento de protecção pessoal. Para este fim, envolve os seus abdominais em revistas, e, num dos raros momentos sérios da noite, fiquei a pensar quão eficaz seria aquele colete improvisado contra balas e facas. Concluí que bastante, se se tratasse de revistas com artigos densos. Colectâneas de textos do Ministério da Educação, por exemplo. Impenetráveis.