No filme Groundhog
Day (O Feitiço do Tempo),
o protagonista vive todos os dias o mesmo dia, com os acontecimentos a
repetirem-se sem alterações.
No meu percurso diário para o trabalho, que, quando beneficio
da sorte de ter tempo, segue um traçado invariável e reiterado, há também repetições,
pessoas com quem me cruzo nos mesmos lugares (uma delas cortou o bigode mas não mudou mais nada), as mesmas infracções de trânsito (com
diferentes protagonistas mas nos sítios habituais) e o mesmo deslumbramento ao
atravessar o parque (apesar da vaga ameaça outonal agora a insinuar-se no alongar das
sombras).
Há variações de episódios sobre o mesmo cenário, variações que
só o são na cadência diária, já que repetem tendências e vícios humanos
intemporais e por isso não alteram o feitiço do tempo. Num dia, o restolhar das
folhas para lá da sebe deixa de ser o dos melros ou dos gaios para denunciar um
clássico voyeur, dos que adoptam a
camuflagem e o método de David Attenborough, mas para espiar através da
vegetação casais de namorados em plena urgência erótica. No dia seguinte, no mesmo
local, é resgatado da folhagem contra a sua vontade um idoso que se tresmalhara
do resto dos utentes do lar, ali em passeio, por vício logo censurado de querer
estar sozinho. Ao terceiro dia, o que a folhagem mal oculta é uma vulgar e não
muito preocupada transacção de estupefacientes, entre seres que se confundem no
exotismo com criaturas mitológicas do parque. Há o tímido casal homoerótico de
adolescentes a aprender tácticas de camuflagem social e noutro dia rapazes em cálculos de balística que procuram a bola pontapeada demasiado alto. Há a criançada de bonés
uniformizados em correria de ATL e, num sábado, os noivos ataviados que posam bucólicos
para o álbum em progresso.
No meu Groundhog Day,
desfilo quotidianamente por ali em passo lento, amando a minha rotina e com um
certo carinho distante pela humanidade. Não sinto o impulso de alterar nada ou
de intervir, excepto quando, no regresso à noite, um ouriço-cacheiro faz a sua
aparição na mesma álea e sinto então o dever de o admoestar pela insensatez de se expor
assim no palco da comédia humana e o conduzo com gestos ternos de regresso ao
matagal.
Obrigado, gostei muito.
ResponderEliminarObrigado eu.
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