A minha relação com a imprensa no último ano não tem contribuído nada
para a sua saúde económica. Deixei de comprar o Público quando me incutiram a sensatez de considerar um euro e sessenta
e cinco dinheiro a mais para um jogo de Sudoku (só comprava ao fim-de-semana, o
baixo nível de dificuldade dos jogos de segunda a quinta não era estimulante).
A única outra razão que me fazia (e faz) comprar o jornal era o suplemento Ípsilon. Há alguma possibilidade de
entusiasmo e fascínio nas artes que não encontro no quotidiano político e
social do país, na sua nefasta e maçadora previsibilidade. Sem me atrever a uma
reflexão como a da Alexandra Lucas Coelho, julgo que, se o jornal diminuísse
drasticamente o número de páginas e colunistas dedicados à vidinha e
transformasse em caderno diário o Ípsilon,
o número de compradores aumentava. Não subestimem a quantidade de pessoas que se
está nas tintas para o futuro de Paulo Portas e dispensa a redundância de quotidianamente
lhe darem as mesmas más notícias sobre o seu próprio futuro. Há, apesar de
tudo, mais efervescência e diversidade na literatura, no teatro ou na música do
que na vida da república. Desta, um resumo mensal dificilmente deixaria de fora
qualquer novidade. Aliás, um almanaque anual ao género do Borda d’Água, com as suas tabelas de ciclos e reiterações e os mesmos
provérbios e mezinhas, seria suficiente periódico nacional.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2015
Pirotecnia precoce
Às cinco da manhã houve fogo-de-artifício na rua ali atrás e não fui eu
que o lancei. Podia ter sido: partilho da mesma insónia e do mesmo desejo de adiantar
a pirotecnia e os ponteiros, da mesma pressa em sair deste ano velho e de maus-fígados.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
sábado, 12 de dezembro de 2015
Miasma
«Também havia a voz. A madrinha tinha uma daquelas
vozes afectadas de lady inglesa, oscilando
entre agudos e graves como um adolescente a amadurecer, mas com o sotaque
carregado, as vogais rudes e as interjeições dum lavrador. Agora que dedico
algum tempo a pensar nisso, não era com a nobreza britânica que a madrinha mais
se parecia, mas com as preceptoras da
nobreza britânica. Quando lhe ouvíamos a voz a progredir pelos corredores e
pelas divisões da casa, espécie de miasma que se infiltrava por qualquer
frincha e a qualquer hora, o nosso estremecimento não era de súbditos receosos
do alcance do poder real, mas de pupilos que odeiam e temem a velha ama
germânica que a família mantém como tradição orgulhosa nas folhas de pagamento mensais.
(Qualquer comparação com bruxas verrugosas e histéricas teria igualmente
cabimento: a madrinha parecia ter sido concebida ou treinada para ser prova de
verosimilhança de todos os clichés.)
Um verdadeiro fenómeno era a sua gargalhada. Já
imaginaram alguém dar sonoras gargalhadas sem que no seu rosto houvesse um
indício de riso ou divertimento? A madrinha não tinha humor (embora utilizasse
doses regulares de sarcasmo), mas isso não a impedia de acompanhar (e na
verdade suplantar) as reacções a certos comentários ou piadas que se produziam
à mesa. Ela gargalhava com a mesma força de quem expele um osso de frango da
garganta, percutindo as paredes da sala como o equipamento sobredimensionado de
uma discoteca ou fazendo drapejar os cortinados como um vento dos que activam
avisos da meteorologia, mas os seus olhos mantinham a mesma vigilância censória
e fria sobre os circunstantes, não traíam um único momento de cumplicidade ou empatia.
A madrinha zelava pela casa e pelas tradições com o
empenho exacerbado e anacrónico de aias e ministros de casas reais que na devida
altura advertiram os senhores para os perigos dos caminhos que trilhavam. Ela
tivera razão antes de tempo, mas não lhe cabia tomar as decisões (era uma
matriarca que reconhecia a legitimidade do poder patriarcal), e quando o pôde
fazer, demasiado tarde para evitar a queda em desgraça, já não conseguia deixar
de agir como o último dos miguelistas — o ódio, a frustração e o desejo de
vingança a dominarem cada segundo do dia.»
sexta-feira, 11 de dezembro de 2015
Sílvia
«Quando a Sílvia cresceu não o fez apenas em sentido
figurado, como acontece a tantas mulheres, cujo corpo de adolescente se
transforma e enche de curvas mas não se estende verdadeiramente em direcção aos
céus. Com Sílvia o crescimento ganhou expressão e significado, foi botânico, os seus membros cresceram como
troncos e ramos de árvores mas ao ritmo de pés de feijão, ávidos de sol,
competindo com os adultos pelo domínio do espaço aéreo. Nesse processo de
grande consumo energético, tornou-se magra, por vezes demasiado magra, e a
herança feminina da madrinha, sua avó, aqueles seios fartos mas rijos, parecia
um equívoco, uma perturbação no perfil longilíneo, um lastro à última hora
adicionado à sua anatomia para a impedir de se perder nas nuvens antes de a
hipófise determinar o fim do crescimento.
Ter um peito daqueles não lhe concedeu porém uma
silhueta recurvada; algo na sua estrutura óssea e muscular resistia à
gravidade, a Sílvia deslocava-se de nariz bem emproado e sentava-se num
perfeito ângulo recto que surpreendia. O primeiro bofetão que lhe dei, depois
de me ter deixado, foi também em paga
daquela perfeição ergonómica (talvez um ressentimento inconsciente da promessa
de corcunda que eu era). Há algo de irritante numa mulher que parece
quotidianamente a ilustração viva de um manual de etiqueta. Mesmo que na maior
parte do tempo nos encha de vaidade (e até desejo) o seu talento para a
elegância — expresso na materialidade das roupas e adereços que adquire sem interrupção,
assegurando um fluxo de aquisições permanente e vital como soro para
moribundos, e na imaterialidade da sua postura, fisionomia, gestos de
antebraços, pensamentos e locuções de profunda vacuidade —, mesmo que nos
sintamos envaidecidos e distintos por ter uma mulher assim, há sempre momentos
em que vivermos com a Ava Gardner ou a Audrey Hepburn nos cansa. Cansa
contracenar diariamente, sentir a obrigação de ser Gregory Peck das abluções
matinais ao último escovar de dentes do dia. Um bofetão é um grito de liberdade,
ainda que dado fora de tempo.»
quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Swamp Thing
«(...) Eu fazia isso em algumas noites, com o impulso
gótico de me vir enrodilhar depois nas algas ou nas ervas das águas menos
profundas, sentindo a repugnância da sua viscosidade, as suas carícias
arrepiantes de seres vivos asquerosos, a sujidade do lodo a levantar-se do
fundo e a procurar envolver-nos numa nuvem perceptível de sanguessugas. Eram
banhos de podridão com que eu procurava purgar-me, em noites de lua nova, da
benfazeja luz solar que no Douro nos faz sentir príncipes destinados ao ócio e
ao amor cortesão numa eternidade descomprometida, leve, a conjugar verbos
apenas no único tempo interessante, o presente.
Desci ao cais nessa noite com o mesmo propósito de mergulhar,
de me espolinhar nas águas rasas da margem e regressar ao quarto pingando lama,
para desespero do pessoal da limpeza no dia seguinte. Mas a lua estava agora muito
avançada no seu quarto crescente, iluminando com uma proficiência de lua cheia
aquele troço de rio ainda livre do excesso de iluminação pública que já se
verificava em tantas estradas desertas da região. A presença da Adèle, nos seus
habituais trajes etéreos, dedicando-se na beira do cais a seduzir o firmamento
nocturno com o mesmo ritual dervixe que lhe vira no primeiro dia, fez-me mudar
de planos. Inicialmente pensei que podia ficar apenas a observá-la, com aquele
deslumbramento juvenil de rapaz que pela primeira vez descobre os contornos de
um corpo feminino, mas depois agi como agem os homens adultos, se
suficientemente cheios de si, e fui meter conversa.
Não era uma surpresa que a Adèle estivesse receptiva
à conversa — não havia por ali muita gente com quem falar e eu ainda não estava
transformado como habitualmente no Swamp
Thing. As constelações, se formos competentes nisso e o céu estiver
descoberto, são um bom tema de conversa. Há outras possibilidades, além dessa
mostra extravagante de erudição cosmológica, como por exemplo a deriva para a
Antiguidade Clássica — com os seus deuses, os seus mitos, as suas metamorfoses,
os seus amores e a sua excitante promiscuidade — ou para assuntos de foro
místico, como os signos do Zodíaco, igualmente prenhes de insinuações amorosas
e preliminares sexuais.
A temática estelar interessou Adèle, seria aliás uma
surpresa que não interessasse a alguém tão eminentemente espiritual, mas ela
quis ver os astros do meio do rio. Que esse desejo tivesse uma plausibilidade geométrica,
digamos, assente no cálculo intuitivo de que no ponto mais equidistante de
ambas as margens arborizadas a cúpula celeste se revelaria de uma forma mais
ampla, não diminuiu o meu sentimento de que havia uma intenção romântica na
vontade dela. Tanto mais que me perguntou, delicadamente, se sabia remar.
Deslizámos em silêncio para o meio da corrente, que,
apesar de fraca, não permitia que o bote permanecesse estacionário como num
lago. Preocupei-me, por isso, em orientar a proa no sentido da corrente,
corrigindo o nosso avanço involuntário com ocasionais movimentos dos remos. A Adèle
reclinara-se na popa, com as pontas dos cabelos de nórdica submergidas no Douro
e oferecendo a sua garganta branca à Lua e ao meu olhar.
Esgotado o meu conhecimento sobre constelações, e
ainda com os contornos fantasiosos da casa da Quinta à vista, como se
estivéssemos no meio do Lago Léman, a rapariga belga, inspirada por essa mesma
divertida imagem nocturna de uma Suíça duriense, enveredou pela história de
Mary Shelley, de que parecia ter decorado longos parágrafos da Wikipédia. Falou
da mãe da escritora, a feminista Mary Wollstonecraft, e do seu pai, o filósofo
William Baldwin. A Adèle estava simplesmente a fruir um tema que a entusiasmava
e, com intenção ou não, a dar-me a conhecer a sua adesão a ideais de amor
livre, mas eu ficara retido umas passagens atrás, na entrada do seu dicionário
que falava dos escritos de Baldwin sobre o casamento enquanto «monopólio
repressivo».
A linhagem Wollstonecraft/Baldwin/Shelley era algo
mais do que eu poderia suportar. Toda aquela gente de espírito livre, tão
sensata e avançada quanto às relações entre homens e mulheres, parecia ter sido
convocada para me fazer enfrentar os meus fantasmas recentes. Se a Adèle
tencionava ter comigo o seu caso amoroso no Douro Superior dera um passo em
falso com aquela digressão de enciclopédia online.
Eu teria sido facilmente seduzido, naquele tão agudo estado de carência, mas,
pelo menos de momento, ocorria-me tudo menos ter sexo com ela no fundo
impermeabilizado do bote da Quinta de Pompeia. Antes que, de Shelley, me viesse
à inspiração Frankenstein, um ser de um
romantismo menos delicado, remei com furiosa urgência até ao cais, alegando
efeitos secundários do jantar, de costume tão saboroso e serenamente digerível.»
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