Simão irrompe na sala. Os meus sentidos pêsames, diz, sem
clareza para os presentes. Olham-no com a curiosidade de perceber em que coisas
se perde aquela cabeça. Sentidos pêsames para todos, repete Simão, e parece
sair-lhe uma vénia com as palavras. E um sorriso. Simão sorri. Os presentes,
inseguros, acenam imperceptivelmente, o que deixa Simão inquieto, talvez não
tenha sido a melhor entrada da sua vida.
Se pudesse voltar atrás, faria as coisas de forma diferente.
Entrava em passo marcial, talvez, levantando bem os joelhos, estacava em frente
à mesa, batia os tacões um no outro e só então soltava a frase que escolhera.
Os meus sentidos pêsames.
Mas Simão não saberia como voltar atrás. A vida é um fluxo
irreversível, oh se é, não há volta atrás. A natureza e os seus defeitos são
uma coisa que irrita Simão, tanta complexidade, tanta beleza — perfeição,
diz-se — e não há como se retroceder, um ano, uma semana, meia hora, um minuto
que seja. Simão retrocederia, não tem dúvidas nenhumas, mais de um ano, olé,
talvez dois ou três, mas agora entrou na sala e as pessoas olham-no.
Não é bem um sorriso, aquilo, mas é, ainda assim, uma forma
de se mostrar amistoso. Ele sabe o que se diz: que tem a expressão de um tolo,
como aquelas vítimas de AVC, incapazes de imporem outras expressões aos
músculos da face. Mas as pessoas precipitam-se nas suas considerações. Uma
coisa é o Simão público; outra, aquilo que ele é em privado.
Este é o Simão público, acabado de irromper na sala com o
seu melhor ricto facial, a expressão de quem olha os outros como se eles,
predadores experientes, tivessem o sol pelas costas. Um ar de esforço, os
cantos da boca levantados quase dolorosamente e os olhos semicerrados, é isto
que as pessoas vêem. Sempre. Isto e os caracóis cinzentos descuidados,
enriçados. E a barba de uma semana, duas. E as roupas, bem, as roupas
desesperadas por um ferro de engomar e, num ponto ou noutro, por agulha e
linha.
Mas Simão irrompe amistosamente e logo saúda todos os
presentes. Os meus sentidos pêsames, diz, e pretende colher de imediato o
efeito da sua saudação, passeando os olhos ofuscados pela sala.
Devia ter treinado mais, percebe, sem desistir da sua
expressão de marca. À cabeceira da mesa, a irmã diz Simão e ele entende logo o
que ela quer dizer, falhou a entrada triunfal. Simão, e é uma voz que casa
ternura e raiva. Raiva ou uma tristeza profunda e revoltada. Simão, diz a irmã,
e ele percebe.
De qualquer modo, já que ali está, afunda as mãos numa
travessa e sai de lá com as asas de um frango. Ou de dois frangos: parecem
ambas asas esquerdas.
A irmã, Simão, e ele percebe, mas não recua. O ricto e os
olhos semicerrados. É um Simão amistoso, este que ele trouxe à sala. Os meus
sentidos pêsames, diz para a irmã, e ela percebe, mas não perdoa. Ou perdoa,
mas disfarça, estão pessoas em casa, na sala.
Simão quer dizer bom dia, diz a irmã, e ele acena. Isso.
Disfarça mana, não podemos embaraçar as pessoas, fazê-las perceber as suas
limitações no que se refere ao entendimento.
Ele está muito contente por nos ter aqui a todos, continua,
como se o interpretasse, a irmã, olhando-o com olhos de tutora.
Simão esconde as asas dos frangos atrás das costas. Foi
apanhado. Está, de facto, contente por ver aquela gente ali, na sala, mas não
havia necessidade desta exposição, a sua irmã sabe que ele detesta ser o centro
das atenções.
Bem, talvez não deteste assim tanto ser o centro das
atenções, o que ele detesta são manifestações de afecto, sobretudo
manifestações de afecto que o apanham com asas de frango nas mãos.
Agora as pessoas vão olhar para ele com complacência por ser
um tipo que se alegra com visitas e não com admiração por ser alguém que sabe
entrar com elegância numa sala.
Merda, mana, diz Simão, e as pessoas estremecem.
Ele olha em volta. Sim, agora colhe o impacto das suas
palavras. Merda, mana, repete. Depois quer desaparecer, sente-se enfastiado.
Mas toma com resignação o seu lugar na mesa e isso parece contentar toda a
gente.
Simão pousa os pedaços de frango no prato à sua frente e
levanta um pouco o nariz. Nota a fragrância: respira-se alívio na sala. A pouco
e pouco as pessoas ignoram-no, e isso permite-lhes sentir confiança,
empenharem-se nas conversas, agir com naturalidade. Talvez seja melhor assim,
pensa.
O seu olhar pousa agora no guardanapo com motivos
campestres, uma herança. Poderia ficar assim horas, costuma ficar assim horas,
sem que isso o incomode nem um pouco, mas sabe que não é altura de ceder. Hoje
é um dia importante e ele comprometeu-se, faria boa figura.
Depois de uma pausa, um momento de concentração, volta à
superfície, com aquele seu ar simpático. Vai inclinando a cabeça e o sorriso
para onde há mais fulgor nas conversas. Parece-lhe adequado este movimento algo
pendular, à esquerda e à direita. Como se estivesse num court de ténis. As conversas educadas são assim, oscilam entre
interlocutores. Pelo canto do olho espreita a irmã, Simonetta (irritante o
critério baptismal dos pais deles), quer ver se ela se orgulha da sua
capacidade de se interessar. Simonetta devolve-lhe um olhar cansado.
Na sua extrema cordialidade, Simão quase se esquece de
comer. Mas não seria natural ele não comer, sobretudo num almoço tão importante
quanto este. Interrompe, por isso, o acompanhamento dos diálogos, e durante
minutos ataca o frango assado, com verdadeiro apetite.
Talvez aproveitando a sua aparente distracção, no outro topo
da mesa um dos comensais aproveita para sussurrar para a orelha mais próxima. Isso
não é bonito nem justo. Simão está a esforçar-se, porque não podem os outros
imitá-lo? De qualquer modo, o seu compromisso é de ferro, não vai fazer um
escândalo, não hoje. Ele é capaz de aguentar, não há-de ser por sua causa,
mesmo que tenha razões para isso, que a harmonia se há-de quebrar.
Depois parece-lhe que o sussurro tem uma resposta, também
sussurrada, e isso começa a ser demais. Simão ergue o queixo e arrota — no
último momento limita-se a arrotar. A mesa estremece e os que segredaram
mostram um ar bem compungido. Simão fica contente por apenas ter arrotado,
seria uma pena deitar tudo a perder por uma precipitação sua. Pôr-se a chorar
baixinho agora não lhe traria as palavras ditas em surdina, e medidas um pouco
mais drásticas, como sair intempestivamente ou partir um prato, indisporiam a
irmã e desagregariam o grupo.
Ele não queria o grupo desfeito, ter as pessoas longe era
pior do que as ter a sussurrar ali ao lado. Desejava ouvir-lhes todos os dias
as vozes incessantes, tac tac tac tac, como bicos de cegonha. Ali por perto,
como agora, com as bocas visíveis, era quando mais se aproximavam do silêncio.
Quanto mais audíveis mais silenciosas. Inofensivas. Sussurros destes, considera
Simão, são ainda assim melhores do que todas as conversas de que os seus
ouvidos não alcançam nem o rumor, mesmo que ele saiba melhor do que ninguém
como ouvir atrás das portas, como entrar na casa das pessoas e ouvir as suas
conversas. O que não suporta é imaginar a quantidade de tempo que as pessoas
têm para falar longe dele. É nessas alturas que a sua cabeça se enche de outras
vozes, mais dolorosas.
Durante alguns segundos, Simão pensa numa frase que encoraje
os outros a manter conversas para toda a audiência. Sim, ele também pode fazer
um esforço. A irmã iria apreciar um novo gesto seu, algo que complementasse a
sua entrada quase-triunfal. A sua falhada-entrada-quase-triunfal.
Os enterros costumam ser bonitos ao domingo, diz, e a frase
soou-lhe bem. Tem dúvidas quanto à verdade da proposição, mas não rejeita a
ideia. A irmã diz baixinho Simão. Ok, não se fala de boca cheia, mana, retorque
Simão, como se falassem por códigos. Sim, não se fala de boca cheia, fica
contente por se entenderem a irmã. Mas Simão insiste: está um belo dia para um
enterro, não acham?
A inquietação regressa à mesa. Simonetta tem um gesto de
desespero, está cansada da franqueza do irmão. Se quiseres, podes comer na
cozinha, diz-lhe ela, naquele tom de desistência que ele odeia. Na cozinha pode
ouvir as vozes da sala e ser ele próprio, resmungar baixinho as suas
considerações, a irmã sabe disso. Mas hoje ele quer fazer um esforço e
conversar com as pessoas, conviver. E, na verdade, é domingo e está um belo dia
para um enterro, será ele o único a notá-lo?
De qualquer modo, os sussurros acabaram. Os comensais estão
silenciosos ou soltam algumas observações genéricas em tom perfeitamente
razoável. Parece que as coisas podem seguir novamente um rumo aprazível para
todos.
Há, no entanto, alguma rigidez na postura das pessoas. Simão
não deixa de notar isso, mas pode ser só porque elas não estão habituadas a um
almoço franco. As refeições em família ou entre amigos são hoje em dia raras e
quando ocorrem escolhem-se restaurantes muito frequentados ou acende-se a
televisão num programa ruidoso. Não há intimidade nem entrega.
Gostaria de partilhar estas considerações com Simonetta, mas
ela há um bocado que pousou os talheres e o fixa com aquele olhar. Oh, não, pensa Simão. Não agora, mana. Não em frente
às pessoas. Ele tinha-se retraído, não tinha? Não percas o controlo, mana.
Simonetta serve-se de novo de vinho, está um pouco
embriagada e gosta da sensação. Está também farta. Nem é que as coisas estejam
a correr mal (não estão), mas cansa-a que nunca corram bem, que sejam só suportáveis, que no fim todos sintam alívio por
não ter acontecido praticamente nada
e não prazer por terem passado um bom bocado. Que culpa tem ela que aquilo tivesse acontecido? Não foi
Simonetta que os juntou e muito menos foi ela que os separou. De resto, não
poderia jurar pela inocência do irmão. Inocência quanto às causas, bem
entendido, porque as consequências ocorreram todas pela mão dele.
O Simão gosta de pensar que é pintor, diz de forma sombria a
irmã, e Simão sente que alguns diques chegaram ao seu ponto máximo de
resistência. A pintura é uma tolice, uma tolice inofensiva, como aquele seu
sorriso pateta. Em volta todos guardam um silêncio vigilante. Na verdade,
prossegue Simonetta depois de uma curta reflexão, essas são as únicas coisas
inofensivas nele.
Não se fala de boca cheia, mana!, grita Simão do seu lado da
mesa, esperançado que os códigos ainda resultem. Os olhos enchem-se-lhe de água,
como os diques.
Tem jeito com as cores, o meu irmão, insiste com cinismo
Simonetta, sobretudo tem jeito para não as misturar. Já viram as telas dele?
São o máximo: cada uma de sua cor. Nem sei porque usa aqueles pincéis fininhos,
um rolo teria o mesmo resultado. Mas ele gosta de pensar que há técnica e arte
na forma como cobre minuciosamente uma tela de verde ou de azul. É hilariante.
E estúpido.
Simão revolve a comida no prato com os dois talheres, como
se misturasse cimento e areia numa obra. As suas bochechas estão inchadas ao
jeito de alguém que sopra para um balão ou de uma criança que se recusa a
respirar.
O meu irmão arranjou para si uma terapia ocupacional,
declara depois Simonetta, consistiu nisso o seu último acto ajuizado. Aliás,
custa perceber como ainda arranjou cabeça para decisão tão sensata.
E ri-se nervosamente.
Simão pousa os talheres e balanceia o corpo para trás e para
a frente. Algo está para acontecer e ele tenta ignorar a intuição. Chora
baixinho.
Mana, mana, diz, não passes para lá do arco-íris.
O arco-íris? Não é cómico o meu irmão?, solta uma gargalhada
cruel Simonetta. O que é que há depois do arco-íris? Simão não lhe sabe dizer
de momento, mas lembra-se que é algo mau, muito mau, porque ele já lá esteve e
tem a certeza de que só voltou por milagre.
A irmã esvazia outro copo de vinho e deixa-se ficar a
olhá-lo indecisa quanto aos sentimentos. De qualquer modo, não lhe apetece
parar, está farta de se conter, de ser o elemento lúcido e responsável.
Não precisas de te acanhar, maninho, diz ela, todos aqui
sabem o que te aconteceu. Loucura momentânea, determinou o juiz. Ela era uma
cabra, também sabemos isso, até a mim exasperava, mas não valia a pena
teres-lhe feito aquilo. Logo no dia em que te deixou. Inteligente era teres-lhe
agradecido, grandessíssimo tonto.
Oh, não, não o devias ter dito, mana. Não a devias ter
evocado. Tantas camadas de tinta que ele passou sobre aquele tempo, tela após
tela a recobrir o passado e agora ela é evocada e trazida à luz do dia num
almoço de amigos. Continuou a amá-la mesmo depois do último estremecimento
debaixo da almofada com que a sufocou.
Simão levanta-se. A irmã pensa que ele vai buscar outra asa
de frango para disfarçar o constrangimento, o imbecil. Mas é a faca de trinchar
que ele traz na mão e lhe passa de imediato na garganta com a subtileza de um
profissional. O sangue de Simonetta é escuro como o de um touro de liça e
mistura-se com o arroz no prato como se se misturasse com a areia da arena.
Os convidados à volta da mesa olham-no, imobilizados,
brancos de espanto e medo. Simão hesita mas depois despede-se, os meus sentidos
pêsames. Ninguém esboça um gesto, ninguém murmura uma palavra. Ele apercebe-se
de como finalmente conseguiu impressionar a audiência, mas o sabor do sucesso é
amargo. Ainda assim repete, os meus sentidos pêsames, e ocorre-lhe que estas
palavras poderiam agora estar a ser tomadas como uma piada, como se ele fosse
dado a brincadeiras. Tanto mais que não consegue deixar cair aquele sorriso
eterno.
Ao sair para o quintal das traseiras nota o sol de Verão
coado pela ramada antiga de morangueiro. Não evita dizer para si mesmo que está
um belo dia para um enterro. Mas depois lembra-se com incerta contrariedade que
os enterros raramente ocorrem no dia do decesso. Estala os lábios com pena e
mete pelo atalho da bouça, a pensar que se pudesse voltar atrás um ano ou dois
fazia as coisas de forma diferente.