terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Uma história de violência

A história central de A Cicatriz, de Maria Francisca Gama, recordou-me uma passagem de Aranda. Esta com final feliz, por comparação.


«Joca — era ele que chegava — deixou tombar a bicicleta e subiu ao encontro do grupo, parando em frente a cada um como um oficial que vistoriasse as suas tropas. Inês sentiu como uma leve náusea a sensação de pertencer a um clube, uma associação, uma seita, com as suas praxes e cerimoniais. Temia que viesse a faltar a este encontro algum sentido do ridículo. Esperou que chegasse a sua vez de ser cumprimentada e quando levantou o rosto descobriu em Joca um olhar despeitado, um olhar incapaz de, por instantes, esconder a animosidade que alguma coisa em Inês lhe despertara.

Era uma sensação frequente. Ela não sabia se tinha o dom de causar aquele género de reacção nalguns homens ou se por alguma razão era particularmente perspicaz a descobrir-lhes um certo tipo de mágoa, de ressentimento. Eles reagiam assim e ela desvendava-lhes as emoções mais profundas ou instintivas.

Tinha vivido aquilo algumas vezes. Outras situações, outros intervenientes, mas a mesma inquietação, a mesma ameaça silenciosa, que por vezes se exteriorizava brutalmente. Como quando foi agredida numa rua da cidade onde morava por os seus olhos se terem cruzado com os de um rapaz. O que a sua memória evocou foi o primeiro episódio da sua saga, a saga de uma mulher bela demais.

 

Captara aquele olhar à primeira, captara-o e compreendera-o até ao limite do entendível, como se no instante que durou tivesse sido possível decompor o acto de observar nas suas múltiplas componentes e causas e intenções, desenhar mentalmente um diagrama que permitisse seguir os ramos da evolução que levou àquilo, perceber as bifurcações, as metamorfoses, o que falhou, onde tinha sido possível intervir.

Era um rapaz, não mais do que isso, dezassete ou dezoito anos, e não era feio — um corpo grosso mas sólido, sem a flacidez da obesidade nem as suas dobras e pregas pendentes, o cabelo encaracolado quase pelos ombros, como o de um guitarrista de grunge (a barba viria no ano seguinte ou pouco depois), a adequada camisa de xadrez por fora das calças, o queixo levantado, e os olhos cinzentos, semicerrados, líquidos, excessivamente eloquentes. Passou por Inês, que estava com o seu namorado da altura, no meio de um grupo de uns cinco ou seis rapazes, todos com o ar de quem tem uma rixa agendada para o minuto e esquina seguintes, braços arqueados, andar balanceado, decidido, agressivo, até, manada de elefantes pouco preparada para as minúcias da civilidade — embora fosse também manifesto que apenas se dirigiam ritualmente ao bar do fundo da rua.

Do grupo, só ele reparou no casal de namorados. Voltou-se no momento em que passava ao seu lado e Inês viu-o, aquele olhar, e era como uma sentença, um presságio, algo de que não se podia fugir. Muita coisa estava mal com o mundo para que aqueles rapazes se sentissem tão em baixo ao acordar e precisassem de construir personas assim. Ou talvez fosse apenas a má influência das revistas e da televisão. Provavelmente era a natureza humana — só à superfície deixáramos de ser guerreiros, ou seres instintivos. Uma parte de nós, pelo menos.

Inês tinha sido bonita toda a vida. Se houvesse protótipos para a beleza, ela era um, saída directamente das mãos do escultor mais dotado ao serviço da divindade. Não: a própria divindade se tinha encarregado de conceber as formas de Inês, de a moldar e proporcionar e de a colorir com os tons certos, sem recorrer à costela de ninguém, tudo material genuíno, imaginação pura. O cabelo de querubim era um capricho, um toque que denunciava a autoria. Como nascera numa família com posses, nunca fora necessário resgatar a sua formosura, ela não foi sequestrada pela indigência, não sofreu os ataques da má nutrição, da sujidade, das doenças, a sua beleza esteve sempre evidente. Talvez por isso fosse para Inês banal, supérflua, nada que a preocupasse nem a que se tivesse de dedicar particularmente. E, de resto, não era dela a culpa de ser bonita.

O rapaz pensava de forma diferente. Não teria por certo formação política ou ideológica, a não ser talvez uma réstia mal compreendida que passava através das gerações, ou que era já anterior a qualquer formulação teórica, aquela versão do marxismo que alimentava o ódio aos ricos e poderosos, mais tarde revista e aumentada com o ódio à beleza e à saúde e ao sucesso e à felicidade, a tudo o que permitisse aos outros sorrir enquanto nós lutávamos para respirar no lodaçal da nossa existência. Não tinha esse género de formação, mas não precisava. O que precisava era de apaziguar o ressentimento, de encontrar culpados para o que falhara consigo, para o seu permanente mau humor. Chegou à esquina e, como se se tivesse esquecido de alguma coisa, como se tivesse gastado os últimos passos a tentar lembrar-se de algo, voltou para trás e ela soube que o pressentimento era fundado.

Inês conseguiu que o namorado aceitasse sair daquele local mas cedo percebeu que tomaram a direcção errada. Ali havia luz e gente, mais acima os candeeiros rareavam e deixava de haver transeuntes. Ao fim de uns minutos de caminhada, e depois de terem mudado de passeio e de rua, não restavam dúvidas de que estavam a ser perseguidos.

O rapaz alcançou-os com uma última corrida, fazendo-os parar ao colocar-lhes as mãos nos ombros.

— Eu hoje estou fodido — disse ele, e era a sua melhor abertura.

Também estava drogado, achou Inês, tanto quanto podia ver para lá do oceano em que nadavam os olhos dele. Parecia chorar. A pose, a atitude, era a de um rufia, de um agressor, de alguém prestes a cometer um assalto ou uma violação, mas uma câmara que o focasse apenas do nariz para cima revelaria um tipo desesperado, o género de amigo ébrio que queria muito ser ouvido nas suas lamentações e no minuto seguinte nos vomitava os sapatos. Claro que Inês não era uma câmara de filmar num enquadramento apertado, tinha acesso ao retrato completo. Havia desespero, sim, mas não do género que se contentaria com um divã ou um ombro. O que aqueles olhos significavam era violência. Eram uns olhos acossados, mas de alguém que reage à desolação, ao desespero, à ameaça, à raiva com doses reforçadas de crueldade. O mundo, alegadamente, tinha feito mal àquele rapaz, fazia-lhe mal dia-a-dia, privava-o de coisas, humilhava-o, deixava-o sem saídas, dorido na sua presumida fealdade e impotência — e Inês sabia que ele queria vingança.

— Não faça nada de que se arrependa — gaguejou o namorado de Inês.

Continuavam de mão dada e ela sentiu-o tremer, mas de medo, não de fúria contida. A vantagem numérica significava pouco quando se tratava de um casal como eles, em que o elemento feminino não era dotado de relevante força muscular e em que ambos viviam longe de brigas e da disputa física.

— E do que é que eu me podia arrepender? — O rapaz limitava-se a olhar para Inês, com aquele ar de denúncia e lamento, olhos semicerrados, prestes a desfazerem-se em lágrimas, mas simultaneamente frios e acusadores. No corpo sentia-se a tensão de uma mola prestes a soltar-se.

Inês não sabia se era legítimo da sua parte esperar que o namorado agisse, que desse um passo em frente para mostrar que a protegeria, ou que pelo menos o iria tentar. Não se atrevia a solicitar o altruísmo alheio, mas certos códigos sociais não escritos, ou escritos muitas vezes sem nunca se referir a fonte original, determinavam que o homem protegesse a sua mulher. Ele não o fez. Não que não o desejasse, apenas não estava dotado de coragem física. O rapaz tocou a face de Inês e deixou que a mão descaísse e pousasse no ombro dela. O namorado esboçou um gesto irresoluto, vago, que foi logo repelido. Não voltou a tentar, embora numa parte do seu cérebro estivesse a adivinhar a humilhação, o remorso que o afrontaria o resto da vida.

Ela soube pela primeira vez o que era o medo, o medo profundo, medo absoluto. Não pela sua própria experiência (estava assustada, claro), mas indirectamente, pelo processo que sentia em ebulição no namorado. De certa maneira, não voltaria a estar ligada a nenhum homem como naquele momento esteve àquele. As suas mãos entrelaçadas eram como um feixe de nervos, a corrente eléctrica atravessava-os livremente e unia os dois cérebros. Ela estava a ter duas experiências em simultâneo, a sua e a do namorado. Vivia o seu próprio medo e o pânico que explodia nas sinapses do namorado.

O rapaz agarrou o queixo de Inês e hesitou no passo seguinte. Não era um violador nem tinha pensado em assaltar o casal. Na verdade, não tinha um plano. Tudo que sentia era vontade de esmagar aquele rosto, de apertar os dedos até sentir os ossos a estalar. Era ódio na sua forma mais pura e incondicional. A simples presença de Inês nas ruas era ofensiva para alguém como ele. A sua existência, a grande afronta. Sentia perante ela o que tantos sentem diante das serpentes, aquele automatismo que os faz olhar em volta e pegar no calhau adequado. Esmaga-se a cabeça de uma cobra porquê? Pelo medo do mal que ela possa fazer? Pela mera repulsa que olhá-la causa? Porque é um ritual imposto por Deus aos humanos? Ele estava a olhá-la e não conseguia parar de a odiar. Aquela beleza não era para ele erótica, não o excitava dessa maneira, não desejava vencer a beleza possuindo-a, mostrar a sua superioridade derramando sobre ela o seu sémen com o mesmo desprezo pelos espermatozóides que sentia ao ejacular encostado a uma parede. Não. O que ele sentiu naquela noite ao ver o rosto de Inês, o corpo de Inês, os seus caracóis e o seu ar de plenitude serena foi uma ânsia de extermínio, o impulso genocida, como se a sobrevivência da sua espécie dependesse do extermínio de outra.

No último instante, um qualquer lampejo de razão iluminou a mente perturbada do rapaz. Ela viu a dúvida instalar-se no seu semblante, já tão complexo, tão contraditório, como se ele agora lutasse consigo próprio, o diabo pendurado numa orelha e um anjo na outra.

Zangado agora também com a sua própria hesitação, o rapaz largou o rosto de Inês e, de mão aberta, desferiu-lhe uma bofetada tão forte que a fez rodar e estatelar-se no passeio.

— Foda-se! — ouviu-o ela gritar, meio ensurdecida com o golpe. Era como se ele e tudo o que a rodeava estivessem muito longe, sentia uma zoeira na cabeça e a visão turva. Quase perdeu os sentidos.

Aquilo não fora a grande catarse que o rapaz esperava, a redenção pela força, a ascensão a um novo estádio. No último momento contivera-se. Mas a pequena explosão libertou energia suficiente para que, no meio da sua frustração, ele aceitasse retirar como de uma batalha vitoriosa na grande guerra que travava.

Inês viu-o afastar-se com as mãos na cabeça, sacudindo os cabelos, o som dos seus passos inaudível, o mundo a regressar custosamente. Depois olhou para o namorado, lentíssimo a estender-lhe a mão para que ela se levantasse, lentíssimo a abraçá-la, ainda meio petrificado (embora tremesse furiosamente), à espera de que ela o acordasse daquele pesadelo terrível com um beijo, que o confortasse com as suas palavras meigas, lhe dissesse que estava tudo bem, ninguém poderia ter feito nada. Não saiu em perseguição do agressor, não pensou por um minuto em vingá-la, fosse de que forma fosse. O namorado não era de um tipo efeminado, nem frágil, mas não teve qualquer reacção. Ela não o culpou. Viria a desinteressar-se dele pouco tempo depois, talvez também por isso, mas não com ressentimento.»


In Aranda, RAA

terça-feira, 9 de julho de 2024

Hawk-Eye

Hawk-Eye é um sistema computadorizado presente em vários desportos que utiliza câmaras e sensores para rastrear visualmente a bola e exibir imagens em movimento da trajectória estatisticamente mais provável. Mandou para o desemprego os juízes de linha dos Open da Austrália e dos Estados Unidos. No torneio de Wimbledon, que agora decorre e ainda emprega olhos humanos, é usado em replay para tirar teimas — tornando por isso a tarefa dos juízes de linha uma fonte de angústia perante a ameaça permanente de julgamento e fazendo-os nos dias maus invejar a sorte dos congéneres australianos e americanos.
Mas a inteligência artificial também tem problemas existenciais e pode ver-se obrigada a combater as suas próprias aflições, como registei no conto abaixo durante o Australia Open de 2023.


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A ANGÚSTIA DO HAWK-EYE ANTES DO PRIMEIRO SERVIÇO


«No seu primeiro dia no emprego, depois dos meses de estágio, Hawk-Eye estava nervoso. O caso não era para menos, tinha uma grande responsabilidade: ia ser juiz num dos maiores torneios do mundo. Na verdade, como boa máquina que era, ia desempenhar sozinho as funções de mais de meia dúzia de juízes humanos, e teria uma autoridade que ninguém disputaria. Mas isso, que o enchia de vaidade, era também a fonte da sua angústia. É que, a despeito de o regulamento do torneio não prever qualquer revogação das suas decisões — Hawk-Eye passara com distinção em todos os inúmeros testes e beneficiava daquela velha superstição humana de que os computadores não falham —, ele teria de deixar exibir nos ecrãs do estádio, de forma não vinculativa, para mero benefício das emoções do jogo, a repetição em slow motion e close up das bolas que, apesar da sua decisão soberana, dividissem opiniões quanto a terem ou não batido do lado certo da linha.

Enquanto no court se desenrolavam os rituais que habitualmente precediam os jogos, Hawk-Eye deu por si a roer os chips, como um novato. Tinha de pensar rápido, muito rápido. O que não representava nenhuma dificuldade para si, bem vistas as coisas: ele era por definição um dos processadores mais rápidos do mercado de trabalho.

Uma vez que era ele também quem estava encarregado de gerir a gravação e a reprodução de todas as imagens do jogo e tinha acesso ao enorme arquivo de jogos televisionados, treinos e testes com que o tinham amestrado para a profissão, Hawk-Eye tomou num milionésimo de segundo uma decisão pouco ética mas que deixaria todos, não só ele, descansados quanto à fiabilidade dos seus juízos. Procurou e encontrou — e quando não encontrou exactamente o que queria fez algumas montagens rápidas como um editor de efeitos especiais de cinema — arquivos com bolas que batiam em quase todos os centímetros quadrados do court, vindas de todos os ângulos possíveis e com toda a variedade de spin e velocidade que uma geração de tenistas conseguira até à data imprimir nas suas pancadas.

Quando o jogo começou Hawk-Eye estava já senhor da situação. Sabia que, se em alguma jogada ele próprio tivesse dúvidas quanto à decisão que seria obrigado a tomar num piscar de olhos, poderia exibir nos ecrãs e video walls do court uma repetição de arquivo (ou saída da mesa de montagem) que corroborasse a sua chamada.

Nem precisava de ser muito escrupuloso na mise-en-scène: por razões de gosto dos organizadores do torneio, as repetições deviam ser apresentadas com uma estética de simulação computadorizada, e, convenhamos, não há nada mais distante da realidade do que uma simulação computadorizada. De todo o modo, seria certamente necessária outra máquina como ele para detectar a fabricação, se em algum momento tivesse de recorrer a uma. Mas quanto a isso Hawk-Eye estava descansado, contava em última análise com a cumplicidade da sua tribo.»

RAA

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O corso

A curiosidade antropológica e a consequente observação da vida selvagem são requisitos do exercício literário. Por isso não é inusitado que um escritor se ponha a observar um cortejo académico se tropeça num.
E o que vê o nosso escritor? Uma espécie de orquestra do Titanic, multiplicada tantas vezes quantos os carros do cortejo, a executar nas vésperas do naufrágio colectivo um repertório pouco exigente.
Nas galeras dos camiões dança-se, ou melhor, bebe-se como nos loucos anos vinte do século passado, com uma sofreguidão que se confunde com a alegria, o alívio e a urgência de quem escapa a uma guerra e deseja ignorar a próxima — ou apenas passar ao lado das convulsões do mundo.
Visualmente, dir-se-ia um sucedâneo de Carnaval brasileiro, com alegria — ao menos isso — mas sem brilho nem propósito, como se uma borrasca tivesse levado os adereços e os trajes e apenas sobrassem as pessoas, encharcadas, aturdidas, de cabelos escorridos.
A caravana é composta de carros em geral sem intenção alegórica, a não ser a involuntária e nada lisonjeira que remete para espécimes numa jaula de circo ambulante, exibidos aos transeuntes em pleno processo de embriaguez como numa aula de biologia se exibem, para estudo, processos biológicos ou corpos dissecados.
Os ornamentos dos carros resumem-se quase sempre a faixas com os nomes dos cursos — como etiquetas de laboratório — ou a balões coloridos, decalcados de um aniversário infantil. Nada de palavras de ordem, reclamações, exigências, propostas, denúncias, caricaturas, provocações, ou sequer humor — se descontarmos uma piada forçada e inofensiva sobre dinossauros e veterinária ou a tentativa bizarra mas sobretudo fútil (com certa lógica, afinal) de lograr acrónimos fundido Barbie e Ken com finalistas e engenheiros.
Tal como a imaginação falha por absentismo, a mítica (ou talvez apenas lendária) irreverência juvenil parece esgotar-se nesse frouxo desafio à moral que representa embebedar-se em público — para o que, na verdade, o cortejo é afinal redundante, se considerarmos todas as fases da vida académica.
Por momentos assoma uma breve ousadia, sintomaticamente no mais pequeno dos camiões: um curso, que o nosso escritor não identifica, evoca os 50 anos do 25 de Abril, com fotos de Salgueiro Maia e Zeca Afonso e as paredes alegoricamente cobertas de jornais (jornais!).
Mas a normalidade académica é retomada de imediato, antes que se criem ideias erradas sobre o desfile. O carro seguinte, de novo um poderoso semi-trailer, projecta a sua música como se quisesse ser ouvido em Marte — e a população é convidada a partilhar as fantasias de pornochachada de Quim Barreiros com os peitos da cabritinha. É o carro do curso de Educação Básica a encerrar com pedagogia e bons augúrios o cortejo.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

«Tratar de acabar»

A carrinha descia o caminho de terra com o seu ar de tartaruga de lata. O motor era velho e expelia pelo escape um fumo branco estranhamente homogéneo, num fluxo regular, contínuo, sem os sobressaltos ou os soluços que seriam de esperar numa máquina daquela idade. À distância, não se via um rasto de dióxido de carbono a desvanecer-se, mas a sugestão de uma cauda de algodão que despontava da carroçaria. O motorista, de vez em quando, pisava brevemente o acelerador e o veículo dava um ronco curto, com os pneus a patinar um pouco no saibro, como uma fera das montanhas que grunhisse e esgaravatasse o solo. Um pastor apoiava os queixos no cajado, à espera que a carrinha deixasse o caminho livre para o rebanho. Um cabrito preto com o focinho branco foi roçar-lhe as pernas e ele, sem olhar, acariciou-lhe a cabeça como faria a um dos seus cães. Resultava algo insólito aquele afecto mútuo entre duas espécies que ocupavam não exactamente o mesmo lugar na cadeia alimentar. Depois o pastor retomou o passo, bradando obscenidades e batendo com cajado no chão. Quando o rebanho reagiu ao seu comando como um único corpo, ele começou a cantarolar num tom alto e descomplexado. Os dias de solidão nos montes eliminavam alguns pudores. Não havia, para ele, estranheza nenhuma em um homem cantar de forma audível, sem estar bêbado, melodias antigas e brejeiras. Um tipo que convive sobretudo consigo próprio desinteressa-se, ao fim de uns anos, de muitas das convenções sociais. Do outro lado da ravina, um milhafre observava a cena, parado numa das correntes de ar ascendentes. De vez em quando, dava involuntariamente um salto para cima, como se subisse um degrau, e então batia as asas para retomar a sua condição estática. Mas na maior parte do tempo conseguia permanecer verdadeiramente imóvel, suspenso no ar como se o tempo tivesse parado, manobrando somente, de forma imperceptível, algumas penas das pontas das asas e do rabo. Depois a corrente afrouxava ou tornava-se mais forte e ele era de novo impulsionado ou tinha de se servir das asas para evitar descer demasiado.

 Era grotesco que o mundo exterior se revelasse tão bucólico e indiferente numa altura em que o homem se preparava para o deixar. A natureza não se importava nem um pouco com os estados de espírito alheios à mecânica habitual. O resto da humanidade seguia-a nesta premissa. Ele espreitava a pistola pousada nas pernas e conseguia ter por aquele pedaço de metal frio e antiquado um sentimento positivo. Sempre desejara possuir uma arma. Não como garantia de segurança, nem por fetiche (não era um daqueles tarados que atingiam paroxismos com artefactos militares). Apenas tinha consciência de que haveria um dia como este e não quereria deixar de estar na ponta de um cano quando ele chegasse. Tinha imaginado as coisas de um modo diferente, claro — ninguém nas redondezas, um dia cinzento, vazio, sem simbologias, sem afectos de espécie alguma, nem sequer aquele entre um pastor e uma cria de cabra. Mas agora tinha de lidar com isto: ter um quadro agradável e prosseguir.

A carrinha enferrujada acabou por ser apenas uma marca leve na retina, o rebanho fazia soar as campainhas a uma distância surpreendente (andava rápido, o rebanho), e só o milhafre se mantinha dedicado ao seu exercício de testemunha ou assombração, servindo simultaneamente de fiel de balança a uma velha querela entre a gravidade e certos ventos brandamente obstinados. Não, o homem não queria acreditar que acabara de lhe ocorrer disparar a arma na direcção do raio do pássaro. Era um pensamento estúpido de se ter em qualquer circunstância, mas nesta era sobretudo patético, duma comicidade dispensável. Meteu o cano na boca, como uma ameaça, mas depois percebeu que não falara e encostou-o à têmpora. Os pensamentos obedeceram e ele voltou a pousar a pistola. Havia que meditar num punhado de coisas e não tinha muito tempo.

 O homem fechou os olhos por uns segundos, para limpar a mente, mas o pregão indecoroso do pastor, vindo de trás da colina, chegou-lhe aos ouvidos, e não resolveria encostar neles a arma. Esperou e teve por fim silêncio. Era mais favorável, o silêncio. Trazia com ele o susto, e ele necessitava do susto para o seu empreendimento. Acercou-se mais do precipício. Estava na beira de uma garganta, no fundo da qual um ribeiro se despenhava em pequenas cascatas sucessivas; era um sítio conhecido, não havia muitos como aquele, e ele contava com isso para ser entendido — e descoberto. Depois de rebentar com os seus próprios miolos, o corpo deveria cair para o lado do abismo, e, com sorte, esmagar-se-ia numa plataforma rochosa imediatamente à superfície do leito nervoso, perfeitamente visível para quem espreitasse dali de cima. Não tencionava ter um último gesto de mau gosto, não era isso.

 Outro objecto: a velha guitarra Ovation, de caixa sintética negra e abaulada na parte posterior. Iria dedilhá-la por uns minutos, como supunha que alguém no leito de morte afagaria uma amante, com dedos trémulos de amor e angústia. Talvez soletrasse também uma das suas antigas canções, um blues em que a letra não encaixava bem (métrica arrevesada). As cordas de nylon eram de uma suavidade que os dedos apreciavam. Puxou-a para junto de si, deixando a pistola por minutos na terra húmida. Sabia que aquilo iria invocar memórias, mas estava disposto a correr o risco. Na verdade, talvez o fizesse por isso mesmo.

O vento frio de Dezembro dava-lhe na cara e ele lacrimejava. Era ridículo que só por essa razão o fizesse e que isso lhe provocasse prazer. Usava agora as unhas curtas e levava uma dúzia de anos sem praticar. Os primeiros acordes saíram imperfeitos, faltava-lhe destreza na mão direita e não pressionava bem as cordas com os dedos da outra. No entanto, aquele som tosco era aprazível. Nos seus melhores tempos, costumava ficar horas a tanger a guitarra pelo simples prazer de ouvir o timbre das cordas. Nessas alturas, dispensava a melodia; a vibração ocasional de uma nota era suficiente para o excitar e o conduzir a um delicioso torpor. Não o assustava que houvesse uma ponta de demência neste desinteresse pela harmonia ou por uma pauta. Debruçava-se muito sobre a caixa de ressonância da viola, não tanto para ouvir com distinção as notas soltas como para sentir a vibração no peito. Envolvia assim mais do que um sentido; empenhava-se fisicamente no exercício.

Ao fim de uns minutos a canção começou finalmente a desenhar-se. Não era muito original (pode um blues ser original?), mas tinha carácter. Claro que o homem não estava com ânimo para projectar a voz. Se houvesse alguém nas redondezas dificilmente perceberia que ele cantava. A dez metros o que se ouvia era um murmúrio, o tipo de ruído que um praticante de meditação oriental de cliché debitaria. A letra era previsível, paixões frustradas, a velha e estúpida história sobre o amor entre homens e mulheres. Irritou-se e a Ovation foi estatelar-se no fundo penhasco. Começava a sentir falta do aço frio da Walther.

 Esperar um desfile era a coisa errada de se fazer, mas ele passou algum tempo com o olhar marrado de um perdigueiro a pensar que isso aconteceria. Os rostos do passado a comparecerem para um último rendez-vous. Não um ajuste de contas, não era isso. Também não estava a pensar numa recapitulação post mortem, ou tempore mortis. Era algo diferente. O passado era um sítio de névoas e meias palavras. De equívocos. Parecia-lhe adequado que um dia as pessoas pudessem conversar sem o detalhe de terem de coexistir. Uma conversa franca, sem trunfos na manga, eis algo que ele sempre achara que poderia ter lugar no final do jogo, ou melhor, do confronto. Conversar abertamente era uma opção que não estava vedada aos pugilistas depois do combate. Seria absurdo que as pessoas tivessem de morrer sem experimentarem essa possibilidade. Havia conversas que ele considerava forçoso terem lugar. Tanta coisa fora escondida, tantos mal-entendidos, tantas relações ficaram pela superfície. Viver era somar enganos, fingir, e o homem fingira abundantemente. Dado que era ele que se despedia, a necessidade de reencontrar pessoas não era uma coisa para seu benefício. Sim, talvez houvesse uma questão de ego, a vontade de retocar o retrato para a posteridade, mas mais do que tudo pretendia um último gesto de honradez. Em muitos dos casos, retocar a imagem significava uma espécie de crueldade. Lamentava tanta hipocrisia de que fora capaz e retractar-se disso não seria uma herança simpática.

Mas à sua volta agora havia apenas silêncio e o ar cortante do solstício. Não lhe seria dada a oportunidade de que se achava credor. Talvez passassem por ali mais alguns pastores, entre eles a rapariga muda e pasmada e bonita à sua maneira bravia que conhecia de outras ocasiões, mas nada tinha a dizer a tais personagens. Não serviriam para lhe acolher as disposições testamentárias; entabular a última conversa com qualquer deles era um sucedâneo sem interesse. Nada teria que temer dos pastores, era certo: nem um o demoveria. Talvez ficassem por ali um bocado, a olhá-lo, aguardando o tiro e a queda, curiosos quanto ao desfecho, mas sem nenhum outro interesse nos acontecimentos. Estabelecer comércio com eles apenas serviria para atrasar um processo que estava irremediavelmente iniciado. Com a rapariga viria ainda o risco de ressuscitar na carne do homem um desejo que já não tinha vez. Restava-lhe desenrolar os últimos pensamentos e ceder à ideia mórbida de experimentar o ponto de vista dos que teriam de lidar com a recolha dos restos mortais.

 Antes de todos, apareceria Sílvia, a doce Sílvia. Ninguém a anteciparia nesta conclusão. Ele enviara um e-mail para todos os seus contactos. Dizia apenas “Adeus”. Depois do desaparecimento, seria um instante até que se cruzassem informações. O homem não era de dizer nada, muito menos por e-mail. Uma despedida com tão ampla audiência significaria necessariamente alguma coisa. Um tipo que não faz piadas não começa de repente a fazê-las. O seu adeus é de facto um adeus, nada mais nem menos do que um adeus. Como não estava próximo da reforma nem tinha férias marcadas no calendário, aquela palavrinha intrigante conduziria os pensamentos dos destinatários exactamente para onde ele pretendia. Seria então que todos descobririam a dimensão da sua ignorância sobre a vida do homem.

Todos não, Sílvia lembrar-se-ia. Ele imaginava-a a duvidar alguns momentos antes de se convencer a si própria de que tinha a melhor pista. Ela iria invocar um período da sua vida. No início, fá-lo-ia contrariada, como quem vacila antes de entrar num compartimento escuro. Depois, penetraria lentamente na penumbra, com um meio sorriso, e acenderia a sua lanterna. O feixe de luz evidenciaria muitas coisas que a incomodavam, mas devolveria ao olhar outras que ela não poderia propriamente classificar como pérfidas. Seria neste preâmbulo, quando se detivesse nesta parte das suas memórias, que Sílvia ouviria algumas campainhas. Ela e o homem tinham vezes sem conta frequentado aquele exacto varandim sobre o rio. Era uma coisa clandestina. Ninguém sonhava que um homem como ele e uma mulher como ela pudessem estender-se lado a lado, por decisão e com prazer, num sítio assim. Mas eles fizeram-no. E era então que ele executava o velho número de circo, se punha a fazer o pino à beira do precipício. Fazia-o com certo risco, mas a vertigem que ela sentia na altura vinha directamente do olhar do homem, como um presságio. E ele sublinhava-a declarando secamente que, depois de morto, haveria de querer que as suas cinzas fossem lançadas daquele local para a corrente lá no fundo. Ela achava sempre de um extremo mau gosto que ele falasse daquilo nos encontros, e dizia-o com voz aguda e mãos sobre os olhos. Ele quase se ria e provocava-a mais. Declarava que talvez não fosse necessário esse incómodo, talvez ele próprio se lançasse dali ainda antes de ser cinza. Depois faziam amor e, por algum tempo, tudo ficava bem.

 A pastora muda acabou por se assomar e as divagações do homem cessaram. Trazia o rosto vermelho e sujo do costume — talvez um resto de remelas nos olhos, os cabelos oleosos presos num rabo-de-cavalo apressado ou desajeitado —, mas só uma insensibilidade granítica lhe negaria a beleza e a sensualidade. Amarrara o impermeável gasto na cintura, o que lhe realçava o busto, que pressionava de dentro e para cima a camisola grossa de lã. Seria, por força das circunstâncias, uma rapariga rude, algo estúpida, talvez; ou então não, frequentava o colégio da vila e ao fim-de-semana retomava placidamente o seu lugar na vida selvagem da montanha. O homem não sabia nada disto. Em encontros anteriores tinham-se limitado a esta exacta contemplação mútua. Dir-se-iam dois elementos de tribos ou civilizações com origens reciprocamente nos antípodas. Ele não deixara de se sentir um pouco colono ou ocupante ou repórter de exotismos, a observar o rosto rústico como uns séculos antes se fizera em África e na América. Ela devolvia-lhe o pasmo, no seu papel de indígena curiosa. Mas o que havia nela de Pocahontas da serra rapidamente brotava à superfície da pele crestada e dura. Ou pelo menos o homem era capaz de imaginar isso. Sentia por ela um desejo erótico indubitável mas só vagamente insinuado, e não pela sinalética habitual. Não se tratava de uma Lolita: ela não exibia, mesmo no verão, mais pele do que aquela que tinha no rosto e nos punhos. Mas o olhar franco e sustentado, desafiador, os olhos inesperadamente azuis e os lábios num constante beijo infantil exerciam com suficiência o seu papel lascivo. Depois, algum dos animais do rebanho tresmalhava-se e ela abria instintivamente a boca para cumprir o seu ofício. Saía-lhe um gemido rouco que denunciava a inadequação do seu aparelho vocal. Falava com os animais, mas a língua enrolava-se de uma maneira particular naquele frasear, e o seu idioma era imperceptível para os outros humanos. Os bichos entendiam-na e retomavam o caminho certo. Neste processo, o desejo sexual do homem era transportado para uma nova dimensão. Havia algo de bizarro naquilo, possivelmente, mas no que afastaria outros machos via ele subtilezas afrodisíacas. Comparava os gemidos que a rapariga haveria de dar na cama com os de outras mulheres e não sentia que a pastora saísse diminuída do cotejo.

Nunca os separou menos do que uma dúzia de metros, mesmo quando ele fazia inflectir a sua caminhada para uma trajectória que se cruzava com a dela. A pastora sabia algumas coisas de geometria e os seus passos desenhavam figuras elípticas que lhe permitiam evitar a proximidade. Não teriam como falar, evidentemente, embora o homem acreditasse que havia suficiente comunicação entre eles. Esta fuga encenada da rapariga era apenas uma das partes do jogo, também ela parecia conduzir o seu rebanho em função do posicionamento daquele homem grave e silencioso, perscrutador. Se ele, ao invés de vir ao seu encontro, se deixava cair debaixo de alguma árvore ou encostava a uma pedra das redondezas, absorto nas suas deambulações, ela sabia detectar-lhe a presença e encontrava caminhos que os manteriam na órbita um do outro.

Não poderia haver sexo entre eles, mesmo que a questão se pusesse. Talvez ela não tivesse senão uma consciência animal deste assunto, um profundo instinto de reprodução despido de considerações eróticas. No entanto, o homem sabia-se por vezes observado por um par de grandes olhos azuis quando ocorria manter relações com Sílvia no seu local favorito. Que curiosidade aguentava a pastora ali, que aprendizagem tinha lugar? Seria que o grau de desenvolvimento intelectual que o homem lhe atribuía era equivocado e ela os espreitava com genuína e vulgar curiosidade adolescente, o desejo a despertar, ou mesmo em ebulição? Tocar-se-ia enquanto eles copulavam?

O homem já não tinha tempo para perceber a dimensão do seu preconceito, da sua ignorância. A rapariga aparecera-lhe com um olhar diferente, como certos animais que farejam a morte. Pensou ver no rosto dela um pequeno esgar de comiseração, uma súplica ainda mais muda do que ela própria. Ela viu a pistola e não teve qualquer sobressalto, como se desviasse os olhos para ali apenas para confirmar algo que já sabia. Ele pegou na arma pela coronha e acariciou o cano negro com a outra mão. Fez o esforço de sorrir levemente, como se dissesse que estava tudo bem, não era um momento dramático, não seria uma tragédia aquilo que ia ali ter lugar. Era outra coisa. A rapariga teve o que lhe pareceu um imperceptível gesto de assentimento (ou seria um encolher de ombros?) e virou-se para o gado, com um grunhido que a devolveu à existência bruta de que, ao fim e ao cabo, talvez só tivesse saído em alguns momentos na imaginação do homem. Era cada vez mais tarde, mas ele não podia deixar de ficar a olhar para as costas dela até que se tornassem indistintas todas as curvas femininas que nela existiam.

O estampido ficou a ecoar durante algum tempo no despenhadeiro. A passarada esvoaçou em pânico ou, se mais longínqua, aninhou-se nos galhos tétricos do Inverno, sem saber de onde vinha a ameaça. As cabras que subiam as arribas do lado oposto detiveram-se com os pescoços hirtos e os olhos arregalados. As crias encostaram-se-lhes nos quartos traseiros. Só um velho bode, com um avental amarrado a meio do abdómen (pendente como os órgãos sexuais cuja actividade inibia), teve o sangue-frio de retomar de imediato a degustação de arbustos e tufos. O resto do mundo pareceu fugir ou ficar expectante. A pastora sentiu certos músculos das costas retesarem-se. Aguardava-se a qualquer instante um cadáver lá no fundo, onde as águas revoltas lambiam até fazer espuma a beira da plataforma rochosa. O homem viu ou intuiu tudo isto. Tinha a testa vermelha e a arder de ter encostado ali o cano, no momento em que desviou o ângulo do disparo. Tinha também um resto de erecção — ignorava se em memória da rapariga selvagem, se como o último estertor do enforcado. Depois pôs-se de pé, deixou cair a pistola junto ao corpo e, dando um impulso como os mergulhadores, lançou-se de cabeça apontada às rochas, sem a proteger com os braços. Não houve agonia mensurável, velho receio; uma parte do crânio estilhaçou-se ao mesmo tempo que o pescoço quebrava, e o cadáver ficou em posição inconcebível. 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

«Almoço de Domingo»

 

Simão irrompe na sala. Os meus sentidos pêsames, diz, sem clareza para os presentes. Olham-no com a curiosidade de perceber em que coisas se perde aquela cabeça. Sentidos pêsames para todos, repete Simão, e parece sair-lhe uma vénia com as palavras. E um sorriso. Simão sorri. Os presentes, inseguros, acenam imperceptivelmente, o que deixa Simão inquieto, talvez não tenha sido a melhor entrada da sua vida.

Se pudesse voltar atrás, faria as coisas de forma diferente. Entrava em passo marcial, talvez, levantando bem os joelhos, estacava em frente à mesa, batia os tacões um no outro e só então soltava a frase que escolhera. Os meus sentidos pêsames.

Mas Simão não saberia como voltar atrás. A vida é um fluxo irreversível, oh se é, não há volta atrás. A natureza e os seus defeitos são uma coisa que irrita Simão, tanta complexidade, tanta beleza — perfeição, diz-se — e não há como se retroceder, um ano, uma semana, meia hora, um minuto que seja. Simão retrocederia, não tem dúvidas nenhumas, mais de um ano, olé, talvez dois ou três, mas agora entrou na sala e as pessoas olham-no.

Não é bem um sorriso, aquilo, mas é, ainda assim, uma forma de se mostrar amistoso. Ele sabe o que se diz: que tem a expressão de um tolo, como aquelas vítimas de AVC, incapazes de imporem outras expressões aos músculos da face. Mas as pessoas precipitam-se nas suas considerações. Uma coisa é o Simão público; outra, aquilo que ele é em privado.

Este é o Simão público, acabado de irromper na sala com o seu melhor ricto facial, a expressão de quem olha os outros como se eles, predadores experientes, tivessem o sol pelas costas. Um ar de esforço, os cantos da boca levantados quase dolorosamente e os olhos semicerrados, é isto que as pessoas vêem. Sempre. Isto e os caracóis cinzentos descuidados, enriçados. E a barba de uma semana, duas. E as roupas, bem, as roupas desesperadas por um ferro de engomar e, num ponto ou noutro, por agulha e linha.

Mas Simão irrompe amistosamente e logo saúda todos os presentes. Os meus sentidos pêsames, diz, e pretende colher de imediato o efeito da sua saudação, passeando os olhos ofuscados pela sala.

Devia ter treinado mais, percebe, sem desistir da sua expressão de marca. À cabeceira da mesa, a irmã diz Simão e ele entende logo o que ela quer dizer, falhou a entrada triunfal. Simão, e é uma voz que casa ternura e raiva. Raiva ou uma tristeza profunda e revoltada. Simão, diz a irmã, e ele percebe.

De qualquer modo, já que ali está, afunda as mãos numa travessa e sai de lá com as asas de um frango. Ou de dois frangos: parecem ambas asas esquerdas.

A irmã, Simão, e ele percebe, mas não recua. O ricto e os olhos semicerrados. É um Simão amistoso, este que ele trouxe à sala. Os meus sentidos pêsames, diz para a irmã, e ela percebe, mas não perdoa. Ou perdoa, mas disfarça, estão pessoas em casa, na sala.

Simão quer dizer bom dia, diz a irmã, e ele acena. Isso. Disfarça mana, não podemos embaraçar as pessoas, fazê-las perceber as suas limitações no que se refere ao entendimento.

Ele está muito contente por nos ter aqui a todos, continua, como se o interpretasse, a irmã, olhando-o com olhos de tutora.

Simão esconde as asas dos frangos atrás das costas. Foi apanhado. Está, de facto, contente por ver aquela gente ali, na sala, mas não havia necessidade desta exposição, a sua irmã sabe que ele detesta ser o centro das atenções.

Bem, talvez não deteste assim tanto ser o centro das atenções, o que ele detesta são manifestações de afecto, sobretudo manifestações de afecto que o apanham com asas de frango nas mãos.

Agora as pessoas vão olhar para ele com complacência por ser um tipo que se alegra com visitas e não com admiração por ser alguém que sabe entrar com elegância numa sala.

Merda, mana, diz Simão, e as pessoas estremecem.

Ele olha em volta. Sim, agora colhe o impacto das suas palavras. Merda, mana, repete. Depois quer desaparecer, sente-se enfastiado. Mas toma com resignação o seu lugar na mesa e isso parece contentar toda a gente.

Simão pousa os pedaços de frango no prato à sua frente e levanta um pouco o nariz. Nota a fragrância: respira-se alívio na sala. A pouco e pouco as pessoas ignoram-no, e isso permite-lhes sentir confiança, empenharem-se nas conversas, agir com naturalidade. Talvez seja melhor assim, pensa.

O seu olhar pousa agora no guardanapo com motivos campestres, uma herança. Poderia ficar assim horas, costuma ficar assim horas, sem que isso o incomode nem um pouco, mas sabe que não é altura de ceder. Hoje é um dia importante e ele comprometeu-se, faria boa figura.

Depois de uma pausa, um momento de concentração, volta à superfície, com aquele seu ar simpático. Vai inclinando a cabeça e o sorriso para onde há mais fulgor nas conversas. Parece-lhe adequado este movimento algo pendular, à esquerda e à direita. Como se estivesse num court de ténis. As conversas educadas são assim, oscilam entre interlocutores. Pelo canto do olho espreita a irmã, Simonetta (irritante o critério baptismal dos pais deles), quer ver se ela se orgulha da sua capacidade de se interessar. Simonetta devolve-lhe um olhar cansado.

Na sua extrema cordialidade, Simão quase se esquece de comer. Mas não seria natural ele não comer, sobretudo num almoço tão importante quanto este. Interrompe, por isso, o acompanhamento dos diálogos, e durante minutos ataca o frango assado, com verdadeiro apetite.

Talvez aproveitando a sua aparente distracção, no outro topo da mesa um dos comensais aproveita para sussurrar para a orelha mais próxima. Isso não é bonito nem justo. Simão está a esforçar-se, porque não podem os outros imitá-lo? De qualquer modo, o seu compromisso é de ferro, não vai fazer um escândalo, não hoje. Ele é capaz de aguentar, não há-de ser por sua causa, mesmo que tenha razões para isso, que a harmonia se há-de quebrar.

Depois parece-lhe que o sussurro tem uma resposta, também sussurrada, e isso começa a ser demais. Simão ergue o queixo e arrota — no último momento limita-se a arrotar. A mesa estremece e os que segredaram mostram um ar bem compungido. Simão fica contente por apenas ter arrotado, seria uma pena deitar tudo a perder por uma precipitação sua. Pôr-se a chorar baixinho agora não lhe traria as palavras ditas em surdina, e medidas um pouco mais drásticas, como sair intempestivamente ou partir um prato, indisporiam a irmã e desagregariam o grupo.

Ele não queria o grupo desfeito, ter as pessoas longe era pior do que as ter a sussurrar ali ao lado. Desejava ouvir-lhes todos os dias as vozes incessantes, tac tac tac tac, como bicos de cegonha. Ali por perto, como agora, com as bocas visíveis, era quando mais se aproximavam do silêncio. Quanto mais audíveis mais silenciosas. Inofensivas. Sussurros destes, considera Simão, são ainda assim melhores do que todas as conversas de que os seus ouvidos não alcançam nem o rumor, mesmo que ele saiba melhor do que ninguém como ouvir atrás das portas, como entrar na casa das pessoas e ouvir as suas conversas. O que não suporta é imaginar a quantidade de tempo que as pessoas têm para falar longe dele. É nessas alturas que a sua cabeça se enche de outras vozes, mais dolorosas.

Durante alguns segundos, Simão pensa numa frase que encoraje os outros a manter conversas para toda a audiência. Sim, ele também pode fazer um esforço. A irmã iria apreciar um novo gesto seu, algo que complementasse a sua entrada quase-triunfal. A sua falhada-entrada-quase-triunfal.

Os enterros costumam ser bonitos ao domingo, diz, e a frase soou-lhe bem. Tem dúvidas quanto à verdade da proposição, mas não rejeita a ideia. A irmã diz baixinho Simão. Ok, não se fala de boca cheia, mana, retorque Simão, como se falassem por códigos. Sim, não se fala de boca cheia, fica contente por se entenderem a irmã. Mas Simão insiste: está um belo dia para um enterro, não acham?

A inquietação regressa à mesa. Simonetta tem um gesto de desespero, está cansada da franqueza do irmão. Se quiseres, podes comer na cozinha, diz-lhe ela, naquele tom de desistência que ele odeia. Na cozinha pode ouvir as vozes da sala e ser ele próprio, resmungar baixinho as suas considerações, a irmã sabe disso. Mas hoje ele quer fazer um esforço e conversar com as pessoas, conviver. E, na verdade, é domingo e está um belo dia para um enterro, será ele o único a notá-lo?

De qualquer modo, os sussurros acabaram. Os comensais estão silenciosos ou soltam algumas observações genéricas em tom perfeitamente razoável. Parece que as coisas podem seguir novamente um rumo aprazível para todos.

Há, no entanto, alguma rigidez na postura das pessoas. Simão não deixa de notar isso, mas pode ser só porque elas não estão habituadas a um almoço franco. As refeições em família ou entre amigos são hoje em dia raras e quando ocorrem escolhem-se restaurantes muito frequentados ou acende-se a televisão num programa ruidoso. Não há intimidade nem entrega.

Gostaria de partilhar estas considerações com Simonetta, mas ela há um bocado que pousou os talheres e o fixa com aquele olhar. Oh, não, pensa Simão. Não agora, mana. Não em frente às pessoas. Ele tinha-se retraído, não tinha? Não percas o controlo, mana.

 

Simonetta serve-se de novo de vinho, está um pouco embriagada e gosta da sensação. Está também farta. Nem é que as coisas estejam a correr mal (não estão), mas cansa-a que nunca corram bem, que sejam só suportáveis, que no fim todos sintam alívio por não ter acontecido praticamente nada e não prazer por terem passado um bom bocado. Que culpa tem ela que aquilo tivesse acontecido? Não foi Simonetta que os juntou e muito menos foi ela que os separou. De resto, não poderia jurar pela inocência do irmão. Inocência quanto às causas, bem entendido, porque as consequências ocorreram todas pela mão dele.

 

O Simão gosta de pensar que é pintor, diz de forma sombria a irmã, e Simão sente que alguns diques chegaram ao seu ponto máximo de resistência. A pintura é uma tolice, uma tolice inofensiva, como aquele seu sorriso pateta. Em volta todos guardam um silêncio vigilante. Na verdade, prossegue Simonetta depois de uma curta reflexão, essas são as únicas coisas inofensivas nele.

Não se fala de boca cheia, mana!, grita Simão do seu lado da mesa, esperançado que os códigos ainda resultem. Os olhos enchem-se-lhe de água, como os diques.

Tem jeito com as cores, o meu irmão, insiste com cinismo Simonetta, sobretudo tem jeito para não as misturar. Já viram as telas dele? São o máximo: cada uma de sua cor. Nem sei porque usa aqueles pincéis fininhos, um rolo teria o mesmo resultado. Mas ele gosta de pensar que há técnica e arte na forma como cobre minuciosamente uma tela de verde ou de azul. É hilariante. E estúpido.

Simão revolve a comida no prato com os dois talheres, como se misturasse cimento e areia numa obra. As suas bochechas estão inchadas ao jeito de alguém que sopra para um balão ou de uma criança que se recusa a respirar.

O meu irmão arranjou para si uma terapia ocupacional, declara depois Simonetta, consistiu nisso o seu último acto ajuizado. Aliás, custa perceber como ainda arranjou cabeça para decisão tão sensata.

E ri-se nervosamente.

Simão pousa os talheres e balanceia o corpo para trás e para a frente. Algo está para acontecer e ele tenta ignorar a intuição. Chora baixinho.

Mana, mana, diz, não passes para lá do arco-íris.

O arco-íris? Não é cómico o meu irmão?, solta uma gargalhada cruel Simonetta. O que é que há depois do arco-íris? Simão não lhe sabe dizer de momento, mas lembra-se que é algo mau, muito mau, porque ele já lá esteve e tem a certeza de que só voltou por milagre.

A irmã esvazia outro copo de vinho e deixa-se ficar a olhá-lo indecisa quanto aos sentimentos. De qualquer modo, não lhe apetece parar, está farta de se conter, de ser o elemento lúcido e responsável.

Não precisas de te acanhar, maninho, diz ela, todos aqui sabem o que te aconteceu. Loucura momentânea, determinou o juiz. Ela era uma cabra, também sabemos isso, até a mim exasperava, mas não valia a pena teres-lhe feito aquilo. Logo no dia em que te deixou. Inteligente era teres-lhe agradecido, grandessíssimo tonto.

Oh, não, não o devias ter dito, mana. Não a devias ter evocado. Tantas camadas de tinta que ele passou sobre aquele tempo, tela após tela a recobrir o passado e agora ela é evocada e trazida à luz do dia num almoço de amigos. Continuou a amá-la mesmo depois do último estremecimento debaixo da almofada com que a sufocou.

Simão levanta-se. A irmã pensa que ele vai buscar outra asa de frango para disfarçar o constrangimento, o imbecil. Mas é a faca de trinchar que ele traz na mão e lhe passa de imediato na garganta com a subtileza de um profissional. O sangue de Simonetta é escuro como o de um touro de liça e mistura-se com o arroz no prato como se se misturasse com a areia da arena.

Os convidados à volta da mesa olham-no, imobilizados, brancos de espanto e medo. Simão hesita mas depois despede-se, os meus sentidos pêsames. Ninguém esboça um gesto, ninguém murmura uma palavra. Ele apercebe-se de como finalmente conseguiu impressionar a audiência, mas o sabor do sucesso é amargo. Ainda assim repete, os meus sentidos pêsames, e ocorre-lhe que estas palavras poderiam agora estar a ser tomadas como uma piada, como se ele fosse dado a brincadeiras. Tanto mais que não consegue deixar cair aquele sorriso eterno.

Ao sair para o quintal das traseiras nota o sol de Verão coado pela ramada antiga de morangueiro. Não evita dizer para si mesmo que está um belo dia para um enterro. Mas depois lembra-se com incerta contrariedade que os enterros raramente ocorrem no dia do decesso. Estala os lábios com pena e mete pelo atalho da bouça, a pensar que se pudesse voltar atrás um ano ou dois fazia as coisas de forma diferente.

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

«Regresso»

«Alguns de nós estão sempre a querer regressar a algum lugar, como se houvesse uma cartografia da felicidade. Ou da sobrevivência. Dispomos de um conhecimento intuitivo da forma como o cérebro funciona. Não existe o mundo, existe a sua permanente construção nas nossas sinapses, a partir de sinais e estímulos, e isso nós sabemos. O regresso é uma invocação. Não queremos propriamente o que está ali onde quer que seja que regressemos. Queremos repetir as emoções que experimentámos num dado momento. Queremos regressar a um instante, não a um lugar. Pagaríamos por uma acupunctura cujas agulhas penetrassem profunda e certeiramente as partes exactas do cérebro responsáveis por reconstituir a paisagem perdida. Somos amantes de paisagens mentais, de estados de espírito. Ficamos presos a eles. Dependentes. Cobaias perfeitas e voluntárias para uma neurociência do eterno retorno.»

 Leu isto e escarneceu de si própria. Deus!, como se permitia perder tempo. O que lhe importava o que um dia tinha escrito sobre a felicidade? E a sobrevivência. O que tinha a felicidade a ver com a sobrevivência? A última vez que se debruçara sobre o assunto, ainda havia pessoas tristes a viver. Biliões delas, se lhe perguntassem. Uma imensa maioria, talvez. Anciãos, muitas. Teriam alguma vez sido felizes os centenários que a televisão exibia regularmente, com o seu ar de quem não encontra uma boa razão para estar por cá? Não, a vida não tinha uma relação directa com a felicidade, ainda que algumas vezes as duas coisas coincidissem. Vivia-se, era tudo.

Minutos depois reconciliou-se com a leitura. Estava um pouco exaltada, claro. Mas ela própria devia reconhecer que era uma viciada em regressar. Talvez não se lembrasse de ter sido particularmente feliz num cabeço como este, de onde espreitava o pôr-do-sol, mas não podia negar que o seu movimento natural era o do retorno a locais semelhantes. Não havia um sítio específico que desejasse, mas podia identificar meia dúzia de elementos topográficos reincidentes. Uma conjugação inscrita nos genes, provavelmente.

Abandonou-se um pouco a esta ideia de predestinação, de obediência a um código ancestral. Depois abanou a cabeça: os genes tratavam das questões da espécie, não do sítio aonde cada um regressava. Os homens e as mulheres não se alcandoravam em massa aos pináculos, como aves migratórias no seu percurso sazonal. Os humanos eram como dizia o livro que escrevera: reconstrutores de paisagens individuais. Escolhiam um momento da sua história pessoal e aproveitavam cada oportunidade para o invocar. O mundo apenas fornecia os elementos soltos do puzzle que eles estavam sempre a querer reconstituir. Uma fachada e uma rua, somadas a uma árvore e a uma colina em fundo, não significavam um local, mas talvez um som, um gesto, um toque ou um rosto. Indubitavelmente, uma emoção.

Sobre a sua cabeça havia um tecto de nuvens escuras, sólidas. Cobriam todo o céu visível, para trás e para os lados, excepto uma pequena faixa logo acima das serras recortadas no horizonte, à sua frente. O sol, no ocaso, aproveitava os derradeiros minutos para fazer passar por ali uns feixes dispersos que vinham incendiar pequenos círculos nas encostas de pinheiros, lá mais em baixo, ou alguns telhados das pequeníssimas aldeias em redor. Era como se ela se encontrasse numa tenda cor de cinza e desconhecidos levantassem um pouco a cobertura da entrada, com lanternas apontadas para o chão no interior. Ou como quando em pequena se escondia no fundo da cama, debaixo dos cobertores, à espera de ver surgir na cabeceira o rosto sorridente da mãe, contra a luz do dia que inundava o quarto lá fora.

Talvez devesse deixar de pendurar atributos naquela luz. Era uma epifania suficiente ver uma parte escassa do mundo pintalgada de dourados febris quando tudo o mais se esbatia no chumbo da tarde. As memórias eram agora acrescentos literários, apêndices desvirtuadores. Ela deveria concentrar-se apenas em viver o instante como ele se lhe oferecia. Nada mais.

O regresso a um local como evocação de um momento era, afinal, uma forma de esquecimento. Invocava-se um instante para esquecer o que o antecedera ou sucedera, uma fracção para esquecer o todo.


[Publicado originalmente na revista Fluir n.º 10, Janeiro de 2023]

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Função empática

O parque aqui da cidade vai sendo frequentado em dias de sol por imigrantes de diversas proveniências, todos com a mesma ânsia de natureza e ar livre que move os autóctones em domingos e dias feriados. Africanos, ucranianos, brasileiros, falantes de árabe. Hoje era uma família de asiáticos — crianças e um par de adultos, provavelmente chineses — a jogar badminton com alegria e risadas universais.

O pessimista em mim sussurra-me que não hão-de tardar a pronunciar-se contra isto as pálidas brigadas do ódio, encerradas nas suas páginas bafientas e sem sol do Facebook, com os seus maus fígados já incapazes da função empática.

Mas hoje havia o riso e o seu poder regenerador, quem sabe se curativo de doenças biliares.