[Texto que serviu de base ao video-selfie que, no Festival 5L, integrou a vídeo-instalação colectiva com o tema“Inovação: Utopia / Distopia”, um exercício literário de antecipação do futuro.]
«Lisboa, 1 de Setembro de 2039, quatro da tarde.
Ninguém invadiu hoje a Polónia porque todos têm preocupações maiores.
Vou falar-vos desse vosso ano de 2025, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. E vou falar-vos de vós, de nós. Mas se a nova aplicação de correio regressivo não for concluída e disponibilizada em tempo útil, quando virem esta mensagem, se a virem, será demasiado tarde.
Havia algo de profundamente mesquinho em nós quando, em 2025, perante todos os sinais da catástrofe que estávamos a causar, insistíamos em levar vidas habituais, em fazer planos de futuro que se desenhavam num cenário de evolução neutra ou benévola da História.
À escala do Universo, éramos menos do que grãos de areia no deserto, mas tornávamo-nos ainda mais insignificantes quando nos revelávamos incapazes de assumir, por iniciativa própria, um lugar construtivo na história do mundo. E éramos vis, porque tínhamos informação para lá da dúvida razoável mas não decidíamos nem agíamos.
Reivindicávamos a superioridade da espécie humana, mas em simultâneo atribuíamo-nos a inimputabilidade dos animais, sempre que isso convinha ao nosso conforto, à nossa inércia, ao desejo de sermos ilibados magicamente da responsabilidade pelas catástrofes do aquecimento global.
Era uma posição filosófica conveniente (mesmo que já não quiséssemos saber da filosofia para nada), esta definição ambígua de humano: senhor da Natureza, mas impotente face à sua própria natureza. Era sobretudo a desculpa adequada para continuarmos a agir como agíamos.
Este pensamento vantajoso e apaziguador só nos era permitido, só o tolerávamos, porque confiávamos que as grandes consequências do aquecimento global aconteceriam num horizonte cronológico para lá da nossa esperança de vida. Os climatologistas apresentavam o cenário do fim do século, e esse era o erro deles. 2100 era um ano de ficção científica, os humanos não se projectavam nele, mesmo os que dedicavam um pensamento aos seus filhos, que apenas lhes interessavam como crianças, não como futuros adultos e velhos.
Os humanos tinham derrotado os genes e a ambiciosa mensagem de persistência de que estes eram guardiães e transmissores. O instinto de sobrevivência circunscrevera-se no humano à sobrevivência do indivíduo, não da espécie. Os animais mantinham vivo o objectivo de sobrevivência da espécie, procriavam para dar um futuro à espécie; os humanos procriavam para legarem um pouco de si mesmos, da sua pessoa, ao futuro. Mas faziam-no como jogavam na lotaria, uma aposta que lhes daria felicidade, se vencedora, e os deixaria resignados ou indiferentes, se se revelasse falhada.
As notícias tinham começado a falar dos efeitos de curto prazo do aquecimento global, que já se podiam sentir, mas tinham-no feito tarde. O tempo que uma sociedade demorava a formar uma convicção colectiva que levasse os políticos a tomar as decisões necessárias era mais longo do que o que tínhamos.
E nós, criaturas sociais e submissas, precisávamos que as decisões sobre o nosso próprio comportamento fossem tomadas acima na hierarquia. A quantidade de pessoas que o fazia por iniciativa própria era insuficiente para causar um impacto determinante no desenrolar dos acontecimentos. Éramos a espécie-paradoxo, uma civilização em forma de círculo vicioso, de lenta espiral, na melhor das hipóteses. As decisões políticas precisavam do impulso dos cidadãos e um número suficiente e influente de decisões individuais precisava de determinação legislativa. Mas esta era a primeira vez que o ciclo evolutivo da sociedade excedia o tempo que ela tinha. Desta vez as grandes decisões políticas seriam tomadas quando o mundo-catástrofe fosse uma realidade, e então seria tarde.
Foi assim que chegámos a este ano crepuscular de 2039, uma antecipação nunca prevista do fim do século e do mundo.
…Tenho de terminar, só dão 3 minutos a cada um de
nós. Imaginem o resto.»