segunda-feira, 29 de abril de 2024

O corso

A curiosidade antropológica e a consequente observação da vida selvagem são requisitos do exercício literário. Por isso não é inusitado que um escritor se ponha a observar um cortejo académico se tropeça num.
E o que vê o nosso escritor? Uma espécie de orquestra do Titanic, multiplicada tantas vezes quantos os carros do cortejo, a executar nas vésperas do naufrágio colectivo um repertório pouco exigente.
Nas galeras dos camiões dança-se, ou melhor, bebe-se como nos loucos anos vinte do século passado, com uma sofreguidão que se confunde com a alegria, o alívio e a urgência de quem escapa a uma guerra e deseja ignorar a próxima — ou apenas passar ao lado das convulsões do mundo.
Visualmente, dir-se-ia um sucedâneo de Carnaval brasileiro, com alegria — ao menos isso — mas sem brilho nem propósito, como se uma borrasca tivesse levado os adereços e os trajes e apenas sobrassem as pessoas, encharcadas, aturdidas, de cabelos escorridos.
A caravana é composta de carros em geral sem intenção alegórica, a não ser a involuntária e nada lisonjeira que remete para espécimes numa jaula de circo ambulante, exibidos aos transeuntes em pleno processo de embriaguez como numa aula de biologia se exibem, para estudo, processos biológicos ou corpos dissecados.
Os ornamentos dos carros resumem-se quase sempre a faixas com os nomes dos cursos — como etiquetas de laboratório — ou a balões coloridos, decalcados de um aniversário infantil. Nada de palavras de ordem, reclamações, exigências, propostas, denúncias, caricaturas, provocações, ou sequer humor — se descontarmos uma piada forçada e inofensiva sobre dinossauros e veterinária ou a tentativa bizarra mas sobretudo fútil (com certa lógica, afinal) de lograr acrónimos fundido Barbie e Ken com finalistas e engenheiros.
Tal como a imaginação falha por absentismo, a mítica (ou talvez apenas lendária) irreverência juvenil parece esgotar-se nesse frouxo desafio à moral que representa embebedar-se em público — para o que, na verdade, o cortejo é afinal redundante, se considerarmos todas as fases da vida académica.
Por momentos assoma uma breve ousadia, sintomaticamente no mais pequeno dos camiões: um curso, que o nosso escritor não identifica, evoca os 50 anos do 25 de Abril, com fotos de Salgueiro Maia e Zeca Afonso e as paredes alegoricamente cobertas de jornais (jornais!).
Mas a normalidade académica é retomada de imediato, antes que se criem ideias erradas sobre o desfile. O carro seguinte, de novo um poderoso semi-trailer, projecta a sua música como se quisesse ser ouvido em Marte — e a população é convidada a partilhar as fantasias de pornochachada de Quim Barreiros com os peitos da cabritinha. É o carro do curso de Educação Básica a encerrar com pedagogia e bons augúrios o cortejo.

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