Não vi nenhum dos filmes da trilogia Balas & Bolinhos — mas apenas porque não calhou (no que se refere a cinema sou muito diverso e laxo na disposição). Li porém com curiosidade uma entrevista do realizador, que agora lança Bad Investigate, por causa da frase em destaque no jornal: «Ando com este saco de pedras às costas por ter levado pessoas às salas de cinema.»
Em Portugal os autores não vivem geralmente felizes com o sucesso comercial. Não porque os repugne o êxito comercial (os que o têm em geral procuram-no com diligência e método), mas porque gostariam de ter igualmente o aplauso da crítica e dos seus pares. No cinema, como no teatro e na literatura, temos os nossos mártires vivendo vidas amarguradas porque levaram o público às salas, às livrarias ou aos multiplexes e há quem com desfaçatez não veja nisso motivo de regozijo. Como consequência, os nossos best-sellers tornam-se críticos ressentidos das abordagens não comerciais.
Diria que Luís Ismael, o realizador nortenho, não constitui uma excepção. Na entrevista até procura ser magnânimo com quem faz «cinema de autor» e afirma que ele próprio não quer andar toda a vida a fazer o género de cinema que tem feito. Mas, como se fosse imperiosa a retaliação àquela personalidade que numa gala dos Globos de Ouro «se levantou para ir receber o prémio» e «foi criticar quem fazia cinema comercial», não resiste a deixar, entre insinuações e contradições, algumas frases assassinas que desdizem a magnanimidade e o aproximam do bravo grémio de José Rodrigues dos Santos, Miguel Sousa Tavares, Leonel Vieira ou Filipe La Feria, embora ainda não tenha a arrogância destes.
Ismael acha que «as pessoas que, ano após ano, recebem milhares e milhares de euros de apoios e subsídios têm a obrigação de tratar bem o público português.» E tratar bem o público português não é necessariamente realizar um bom filme, é ir ao encontro das expectativas «que o público tem nele». Por exemplo: «Se o cinema atrai, hoje, sobretudo os putos, é importante perceber que os cinco euros deles têm de ser respeitados.»
Não é preciso citar a entrevista toda (nem ir ver os filmes) para se perceber que o discurso de Ismael, como o dos autores atrás referidos, busca no número de espectadores um apoio para a sua legitimação artística — o que há uns anos teria talvez certa simpatia do ex-auto-despromovido-secretário de estado Francisco José Viegas. E o número de espectadores não precisa de estar necessariamente ligado aos méritos intrínsecos da obra, mas à simples virtude de esta cumprir o que as massas esperam dela.
Não há muito espaço neste tipo de discurso para a reflexão sobre como respeitar a diversidade de públicos e expectativas, sobre a funesta estandardização do gosto promovida pelos media e não obstada pela escola e pela universidade, muito menos (por definição) pelos blockbusters. Não há, naturalmente, espaço para discutir como estimular pessoas para ver filmes que não sejam feitos a pensar nos cinco euros ou nos cinco neurónios dos «putos». Mas há, como sempre há, bastante espaço para a mágoa e o ressentimento: «Por isso, se não critico os meus colegas que defendem o cinema de autor, o que critico é esta visão preconceituosa, limitada e que se tem por intelectual, que às vezes é quase uma forma de racismo intelectual, de que quem faz cinema comercial é filho de um deus menor.»
Fingindo amar o seu público acima de todas as coisas, os best-sellers à portuguesa tomam-no muitas vezes apenas como instrumento para o êxito e, no fim de contas, menosprezam-no, já que na verdade ocupam mais do seu esforço argumentativo e auto-justificativo em queixinhas ou a procurar convencer a crítica de que têm por ela desprezo. Provando com isso que algures no seu íntimo sentem falta da aprovação dela para a certificação positiva final da própria obra.
(Se leu isto até ao fim, talvez se possa interessar por este post antigo: "Deixem o pimba em paz? As artes e o público".)
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