Considerando que sou geneticamente (digamos assim, porque o advérbio se ajusta à semântica) alérgico a bairrismos e nacionalismos, desde cedo agradeço aos deuses do panteão terem-me dotado de uma timidez suficiente como alibi para escusa de comportamentos tribais. Estou porém, com a idade, sentimentalista que chegue para percorrer o bairro onde nasci e cresci com o mesmo ar de filho pródigo de regresso ao lar. Peregrino em lugar sagrado, os meus movimentos incorporam-se numa clássica coreografia de veneração. Deambulo com a mesma nostalgia dos exilados saudosos do berço, parando diante dos marcos físicos e territoriais da identidade comunitária com o mesmo ar de quem pondera os sucessos e insucessos do clã, de quem se preocupa com a herança ou os destinos da estirpe. Essas contas não estão no meu rosário, mas quando piso aquele chão noto, como os meus conterrâneos migrados, deserto o bairro que nunca teve porém tantas e tão habitáveis casas. Pessoas migram, pessoas morrem, pessoas adoecem e mudam-se para lares ou domicílios distantes de familiares há muito ausentes. Dir-se-ia que os que vêm construir novas moradias decidem não habitar nelas demasiado tempo, como se o território estivesse assombrado, fosse um velho cemitério indígena. E, considerando a multidão de fantasmas com que me cruzo na ausência de pessoas, é bem provável que em certas noites ou dias de nevoeiro se infiltre pelas frinchas que sempre têm as casas, mesmo as novas, um miasma que só aos habitantes originais não perturbará.
Ao contrário dos meus co-nostálgicos, raramente regresso ao bairro munido de máquina fotográfica, e nunca de uma de filmar. Sei o suficiente dos mecanismos da memória para reconhecer a utilidade do registo em pixéis de edifícios que em breve se sumirão, mas a minha visita procura menos a recolha de dados para ruminação futura, em natais no exílio ou jantares de conterrâneos, do que o êxtase do momento em si. A Internet, esse repositório babélico da humanidade, tem já suficiente espólio para exercícios mediúnicos afastados no espaço e no tempo, mas há ainda na visita física odores, sons, formas e texturas mais eficazes a descarregar e dispor a memorabilia. De resto, é o conjunto dos signos, a combinação dos elementos que permite a verdadeira experiência do regresso. Nenhuma fotografia ou filme permitirá uma imersão tão profunda no território sagrado quanto a dos sentidos excitados por uma brisa que agita ramagem das mesmas árvores e pêlos da mesma epiderme, a nossa, que coexistiram há trinta anos como agora.
Por isso volto e percorro o velho bairro como se degustasse a proustina madalena, mas menos para me candidatar ao Nobel do que para me encher de melancolia. É isso que o regresso me causa. Uma experiência emocional que, na aparência de uma tristeza provocada pela perda, pela saudade, me deixa, na verdade inebriado de indefinido, de mistério, de insondável. Não é o território físico ou o território histórico que me fazem regressar ao bairro, mas aqueloutro território sobretudo impalpável da infância e da adolescência, o território da inocência, da inconsciência, das encruzilhadas, das possibilidades, das emoções matriciais, dos múltiplos e imperscrutáveis eus.
Olhando o céu estrelado de Dezembro, enregelado logo ainda vivo, tirando o mesmo paradoxal prazer do frio e da taciturnidade, penso que as minhas deambulações pelo bairro são uma mistura de Tarkovsky e Melancholia, uma cinematografia interior de ponderação do tempo sob a ameaça do seu fim.
Depois penso que há menos riscos num jogo de sudoku.
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