Eu devia saber que não se podem julgar as pessoas pelo aspecto. Durante anos fui lendo artigos de Maria de Fátima Bonifácio e espreitei-lhe a fotografia tipo-passe no cimo da coluna ou vi-a de relance num qualquer canal televisivo a emitir opinião no seu casaquinho de malha sem pretensão visível. Era apresentada como historiadora e respeitei-a abstractamente por ter uma profissão diferente dos políticos de carreira, embora a sua evidente inscrição na mais assanhada das direitas fizesse lembrar um daqueles espécimes.
O que não me tinha ocorrido, juro, era que Maria de Fátima fosse «rica». Não só rica por ter dinheiro, mas «rica» por herança genética. Digo genética porque, percebi hoje, mais importante do que o dinheiro (que ainda assim é importante) é o grupo social — ou classe, se quiserem (e ela quer) — onde se nasce.
O artigo de Bonifácio no Observador é duma eloquência autobiográfica inesperada (para mim). O tema é Mariana Mortágua (o tema preferido da direita nos dias que correm) e é desde logo enternecedora a forma como Maria de Fátima põe a rapariga no seu lugar, que não é definitivamente o mesmo onde Fátima se encontra: «Mariana não sabe, não tem mundo para saber o que são e como são os verdadeiros ricos.» Traduzindo: Mariana Mortágua, essa mulherzinha, não nasceu numa família de ricos, não pode, portanto, julgá-los e muito menos propor impostos sobre eles.
Mortágua, como se sabe, é o arauto do «ódio de classe». E reagir à ideia de ódio de classe com essa maravilha filosófica do «orgulho de classe», assumido belicamente por Bonifácio, é o argumento definitivo para arrumar a esquerda. O que pode ser mais racional do que ter orgulho no grupo social a que se pertence? Não é apenas na família, é no conjunto das pessoas que se nos assemelham em posses e origens. Sabem todos os doentes da bola e todos os patrioteiros que não há nada melhor e mais puro do que o nosso grémio, por idiota que ele seja.
Maria de Fátima Bonifácio, historiadora de formação e «rica» por herança e genes, aprendeu cedo «o valor supremo do trabalho e da honestidade». Julgo que ela não quer dizer que teve acesso precoce aos extractos bancários da família, mas também não sugere que a sua eventual fortuna pessoal se deve aos ovos que vendia em criança, como a filha de José Eduardo dos Santos. Terão sido a educação e a observação do intenso labor familiar que lhe forneceram essas noções sobre os benefícios do trabalho. O certo é que daí em diante aprendeu «a poupar o necessário para evitar depender de terceiros». (Devemos concluir que todos os que dependem de terceiros não sabem poupar?)
Não parece haver grande mérito em poupar quando se herda, pelo menos não mérito suficiente para moralizar arrogantemente sobre o trabalhador comum, como Maria de Fátima faz com regularidade, pelo que quando fala em saber poupar talvez se refira ao dinheiro que põe de parte do seu salário de historiadora. Mas nesse caso isso poderia significar que Maria de Fátima não soube poupar a herança, o que faria dela uma vulgar estroina, ou que aquela lhe foi confiscada no pós-25 de Abril — e isso explicaria o seu ódio às classes baixas. Sim, porque nisto de ódio de classe há uma reciprocidade, como resulta evidente da leitura da prosa bonifácia.
A verdade é que cada proletário deste mundo ambiciona ser um daqueles «burgueses» de que Maria de Fátima tanto se orgulha de ser. O que acontece é que a maioria deles não nasceu numa família rica, não teve um «Pai», com ou sem maiúscula, industrioso como o dela. E não tem culpa disso, uma culpa que deva expiar pagando proporcionalmente mais impostos do que os «ricos», ou que consiga expiar apenas trabalhando «mais e melhor», como Bonifácio de algum modo sugere.
Uma crise instalou-se no país há vários anos e só por profunda falácia (ou exacerbado e patético orgulho de classe) se pode dizer que a culpa foi dos pobres ou remediados. Na última legislatura aumentou-se «brutalmente» a carga de impostos, sobretudo dos assalariados. Não chegou para resolver o problema, pelos vistos. Será então assim tão escandaloso que, antes de fragilizar ainda mais os trabalhadores por conta de outrem ou de os condenar ao desemprego (e lá se vai a teoria do «trabalhar mais e melhor»), se procure que novos impostos recaiam sobre quem, ficando um pouco menos rico, não ficará certamente pobre? O que há nisto de imoral?
Nem todos acreditamos que «em Portugal há muitos pobres porque há poucos ricos», já não acreditamos na pirâmide de champanhe, por gira que seja a ilustração, e parece haver um bom número de estatísticas e estudos a dizer o mesmo, incluindo um apoiado pela pouco plebeia Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Embora aborde assuntos económicos, o artigo de Maria de Fátima Bonifácio não se dá muito ao trabalho de atacar Mortágua por propor um imposto que afastará investidores, como outros fazem, talvez com mais pudor em exibir o seu orgulho de classe. Não está no artigo encenado, como é mais habitual, um confronto entre a solução dos impostos e, por exemplo, a solução do emagrecimento do Estado. É mais franco o artigo de Maria de Fátima e por isso mais esclarecedor. A sua é simplesmente ou sobretudo uma reacção alérgica, uma repulsa snob, uma mais aristocrática do que burguesa indignação de classe.
P.S. E agora, como o amigo de Rui Bebiano, vou ali aprender russo para ver se leio Marx no original.
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