domingo, 5 de fevereiro de 2012
Adenda
Se a Secretaria de Estado da Cultura, citada nesta notícia do I, estiver certa (e espero que
esteja), o meu post anterior perde uma parte da sua razão. Salvam-se contudo as considerações
sobre o métier opinativo em Portugal. Era assim antes, é assim agora.
A instituição sou eu
As pessoas concordam com a resistência de Vasco Graça Moura ao acordo ortográfico e por isso aclamam-no. À direita, transformam-no mesmo em herói. Estão dispostas a passar por cima da irregularidade da sua decisão no CCB.
É assim que se constrói opinião em Portugal. As acções estão certas ou erradas de acordo com a ideia que as inspira e aquilo que pensamos dela. Os fins justificam os meios, se forem os nossos fins. Não há espaço para leis, normas, procedimentos, ética, deontologia, razoabilidade, divergência, prudência, nada. A nossa opinião (e dos nossos compadres) é a baliza final, ela determina o valor das coisas, certifica a sua conformidade. As leis, as normas, a ética apenas têm valor se precisarmos que elas integrem o nosso arsenal argumentativo, quando a opinião parece não nos ser suficiente. Mas se for o adversário a invocá-las, de pronto as desvalorizamos. Agir à margem delas é legítimo para os nossos correligionários — e é inadmissível para os nossos oponentes.
O cidadão comum habitua-se a estes modos tão ligeiramente adoptados por políticos, dirigentes e opinion makers. Como esperar dele respeito pela justiça ou pela política? Nestas condições, surpreenderia que o povo português tivesse um perfil cívico exemplar. Significaria que as pessoas se regiam por valores não partilhados pelas elites do poder e por aqueles que as sustentam nos jornais e nos blogues. Significaria também um contra-senso: um povo capaz de reconhecer e recusar para si a iniquidade mas desinteressado de a derrubar dos círculos influentes.
Temos uma elite opinativa demasiado contaminada pela clubite futebolística. Talvez porque muitos dos seus membros são também frequentes comentadores desportivos. Por alguma razão — inadvertência ou talvez fraqueza de espírito —, esta gente perde referências e julga-se permanentemente no terreno da paixão futebolística, onde, por jovial estupidez, se convencionou poder suspender-se a razão e a inteligência e se erigiu como máxima definição de carácter o amor camisola.
Em entrevista de véspera ao Público, Vasco Graça Moura deu sinais de sensatez ao dizer que a sua opinião pessoal sobre as artes seria subordinada ao superior desígnio da entidade que ia dirigir*. Neste contexto, a sua decisão sobre o acordo ortográfico é contraditória e permite-nos desconfiar com certa legitimidade de como será o seu mandato à frente do CCB também no que respeita à estratégia de programação. Depois desta atitude, só podemos temer que a instituição será ele.
P. S. Para que conste, sou contra o acordo ortográfico, e toda a desobediência civil neste caso me parece muito bem-vinda. Também será para mim bem-vindo todo o esforço que, depois de acatar as regras da democracia, Graça Moura faça junto do seu governo para que este promova a suspensão do acordo.
* Basicamente, foram declarações preventivas. VGM quis evitar que a controvérsia emperrasse desde o início o funcionamento da instituição e o impedisse de brilhar.
É assim que se constrói opinião em Portugal. As acções estão certas ou erradas de acordo com a ideia que as inspira e aquilo que pensamos dela. Os fins justificam os meios, se forem os nossos fins. Não há espaço para leis, normas, procedimentos, ética, deontologia, razoabilidade, divergência, prudência, nada. A nossa opinião (e dos nossos compadres) é a baliza final, ela determina o valor das coisas, certifica a sua conformidade. As leis, as normas, a ética apenas têm valor se precisarmos que elas integrem o nosso arsenal argumentativo, quando a opinião parece não nos ser suficiente. Mas se for o adversário a invocá-las, de pronto as desvalorizamos. Agir à margem delas é legítimo para os nossos correligionários — e é inadmissível para os nossos oponentes.
O cidadão comum habitua-se a estes modos tão ligeiramente adoptados por políticos, dirigentes e opinion makers. Como esperar dele respeito pela justiça ou pela política? Nestas condições, surpreenderia que o povo português tivesse um perfil cívico exemplar. Significaria que as pessoas se regiam por valores não partilhados pelas elites do poder e por aqueles que as sustentam nos jornais e nos blogues. Significaria também um contra-senso: um povo capaz de reconhecer e recusar para si a iniquidade mas desinteressado de a derrubar dos círculos influentes.
Temos uma elite opinativa demasiado contaminada pela clubite futebolística. Talvez porque muitos dos seus membros são também frequentes comentadores desportivos. Por alguma razão — inadvertência ou talvez fraqueza de espírito —, esta gente perde referências e julga-se permanentemente no terreno da paixão futebolística, onde, por jovial estupidez, se convencionou poder suspender-se a razão e a inteligência e se erigiu como máxima definição de carácter o amor camisola.
Em entrevista de véspera ao Público, Vasco Graça Moura deu sinais de sensatez ao dizer que a sua opinião pessoal sobre as artes seria subordinada ao superior desígnio da entidade que ia dirigir*. Neste contexto, a sua decisão sobre o acordo ortográfico é contraditória e permite-nos desconfiar com certa legitimidade de como será o seu mandato à frente do CCB também no que respeita à estratégia de programação. Depois desta atitude, só podemos temer que a instituição será ele.
P. S. Para que conste, sou contra o acordo ortográfico, e toda a desobediência civil neste caso me parece muito bem-vinda. Também será para mim bem-vindo todo o esforço que, depois de acatar as regras da democracia, Graça Moura faça junto do seu governo para que este promova a suspensão do acordo.
* Basicamente, foram declarações preventivas. VGM quis evitar que a controvérsia emperrasse desde o início o funcionamento da instituição e o impedisse de brilhar.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Acontece
Leio a crónica da última página do jornal de hoje e estranho: o JN mudou de grafismo? Pouco provável. Coço a cabeça: o Manuel António mudou-se para o Público? Não. É o Vasco a ter razão completa. Também lhe acontece.
Depois do futuro, com o passado nos iludimos
Alguns
procuram nas memórias da infância e da adolescência — quando elas têm mais de
vinte e cinco anos — alívio ou uma forma de relativizar os problemas que aí
vêm. Suponho que os afortunados de antes são os optimistas de agora. Também tenho a minha versão de infância feliz,
pobrete mas alegrete. Escrevi episódios de uma epopeia dessas na anterior vida do
Canhões. A espaços, conto-os de novo,
quando reparto pão e vinho (mais pão do que vinho, que a generosidade tem limites) nas agora raras
despreocupadas ceias de condiscípulos. Depois
dos factos, somos (quase) sempre capazes de assobiar e ver o lado brilhante da
vida. Se por vezes relatamos tragédias é apenas para aumentar o contraste dos
momentos bons. Como quando saímos da tropa, fanfarrões, as agruras e a humilhação
a servirem para dar o tom heróico aos quinze meses de aquartelamento.
Nas nossas narrativas, o drama é, por inversão, o palhaço rico que apenas
existe para fazer brilhar o palhaço pobre — que, naturalmente, é o mais feliz
dos dois.
Acontece
o mesmo com a evocação do mundo rural. A singeleza, os bons sentimentos, a
solidariedade, o ar puro, a honestidade, a franqueza, os dias a decorrer ao
ritmo natural, a confiança, o amanhecer e o pôr-do-sol, o sol a pino e a três
quartos, e a chuva purificadora e a neve imaculada e o murmúrio do vento nas searas de trigo ou no veludo das parras em Agosto ou nas coloridas folhas
outonais. Nunca a lama e as frieiras e o uivo sinistro e cortante da nortada
nas frinchas das paredes e do tecto e os alguidares a apanharem as pingas e os
cobertores da cama inteiriçados pela geada (e os percevejos e os ratos) e os
pés enfiados em sacos de plástico para impermeabilizar as botas furadas e as
camisolas sempre curtas ou rotas ou insuficientes, os casacos largos, feios, constrangedores,
igualmente rotos ou sujos, ferrete da condição inferior; nunca a estreiteza de
horizontes, a rédea curta da ambição, a renúncia do sonho, o atrofio da
vocação. Ou tudo isto, sim, tudo isto quando precisamos de azul para o oiro da
retórica.
O
mundo rural, se invocado de memória, é o paraíso na terra — apenas um pouco condimentado,
para lhe requintar o sabor. Não se percebe como as pessoas, aqui como ao
redor do mundo, teimam em abandoná-lo. Mesmo os que assim idílico o recordam, ameaçando
poeticamente um regresso às origens que, na verdade, não querem corporizar, a não ser no bom tempo ou num monte
alentejano com piscina, num financiado turismo rural com piscina, no velho
solar recuperado, melhorado — e dotado de piscina.
Usando
um apelo muito em voga, o mundo rural e a maior parte das infâncias precisam de um Correio da Manhã para nos revelar
que o passado, como a índole lusitana, é menos bondoso do que gostamos de crer.
É apenas lindo na nossa memória facciosa e em admiráveis páginas de literatura.
Nas melhores destas, a beleza que experimentamos é intrínseca à obra, não ao que
ela ficciona. É por isso que quando queremos mesmo sentir o passado devemos talvez ler relatórios, estatísticas,
correspondência e diários de cidadãos comuns, inventários, registos — e não
sentarmo-nos melancolicamente a recordar ou a ler romances.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Vasco, o retratista
Consta por aí (uma simpática leitora até me escreveu a informar disso)
que em três pinceladas Vasco Pulido Valente pintou no Público o retrato certeiro e definitivo do Portugal recente — com o
nobre intuito de fazer o enterro do socialismo. Um reverente blogue de direita
reuniu as palavras sagradas num post que pode ser lido neste link. (A
direita sempre precisou de um papa, e em Portugal a oferta aumentou exponencialmente
nos últimos tempos, mas algumas almas fascinadas parecem tê-lo encontrado sobretudo
na encantadora figura do decano cronista.)
Despertado na minha caverna pelo correio amável que me enviaram, lá fui
eu ler a trilogia pulidiana “Esquerda e direita”, prometendo a mim próprio não
voltar a embirrar com o homem. Em vão.
Como retratista, Vasco não usa a paleta toda, pelo que as suas telas
resultam um pouco artificiais. Aquilo é real, sabemos penosamente que sim, o
autor tem talento para o desenho. Mas, como recusa uma mais plausível prolixidade
cromática nos acabamentos, a obra parece velada por uma fina gaze, como se o
mestre pusesse um filtro à frente do olho que deita ao modelo. Num relance, chega
a parecer uma daquelas gravuras vendidas em lojas de decoração que apostam numa
limitada gama de cores: uma serra em escala de azuis, o pôr-do-sol em escala de
laranjas, estão a ver o género.
Sem
piedade, a trilogia conclui que o
socialismo (ou a social-democracia) foi responsável pela crise nacional e
europeia — e o Estado Social foi o seu instrumento. Ora, os americanos,
mormente a feroz percentagem republicana deles, parecem não concordar. Começam,
aliás, por não concordar que exista uma crise só europeia. Parece, diz-se na campanha republicana, que a pátria
da liberdade (e da recusa do Estado Social) está terrivelmente endividada, tem
um défice preocupante, cresce menos do que desejaria, entrará provavelmente em recessão,
vê o desemprego aumentar com perigo para a estabilidade social, etc. Os
sintomas, dirão eles para proteger o orgulho ianque, são “europeus”, agravados
por um presidente “socialista”. Mas nós sabemos o quão socialista Obama tem podido ser, e como a economia americana divergiu
profundamente da sua ortodoxia.
O
retrato pulidesco tem assim, talvez, de ser retocado — antes que os óleos
sequem. (Depois disso, só uma equipa de restauradores do Louvre o poderá fazer,
e nós não temos assim tanto tempo
para esperar.) Se eu próprio não tivesse abandonado os pincéis e o atrevimento,
propunha portanto ao insigne artista que matizasse a sua tela com uma das duas
seguintes cores (ou ambas):
1) Talvez não tenha sido a social-democracia a falhar,
mas o próprio capitalismo, tal como posto em prática;
2) O despesismo, a corrupção, a incompetência da
máquina fiscal, a mitigada redistribuição de rendimentos, a especulação
financeira, etc. são em si responsáveis pela crise, independentemente do
sistema em que ocorrem.
(Quando se pinta um retrato de uma entidade viva, convinha,
de resto, não esquecer 2008. A elipse
foi uma figura de estilo inventada por Estaline para a fotografia, não para a pintura.)
Claro que o pulido cronista, quando isso não lhe
atrapalha a argumentação para uso no flagelo doméstico, estende o problema ao
Ocidente inteiro, sem que então lhe interesse assim tanto distinguir sistemas.
Ou seja, para ele a peçonha é, consoante os dias, uma particularidade da Europa
(que tem no socialismo e em Portugal os seus mais desprezíveis cultores) ou do
Ocidente inteiro (se a prosa tiver uma ambição mais universal e exacta e menos luso-moralista).
De uma forma ou doutra (e aqui não se engana nada), a crise é dos países que tiveram
preocupações com o bem-estar dos cidadãos. Daí alguma direita (não só ela)
andar agora fascinada com a China, esse sábio sistema que aproveita o melhor do
capitalismo sem se tornar sentimental. Os sentimentos sempre foram um
empecilho quando se trata de criar riqueza. Para alguns.
Outro retratista, melhor retratista
Quem aprecie retratos, deve ir ler o texto
de Antonio Cazorla no El Pais (“La socialdemocracia perdida, otra vez”) e perceber como é possível reconhecer frontalmente
culpa à esquerda e à social-democracia sem concluir muito futebolisticamente que a solução da crise passa
pela sua obliteração.
Perplexidade
Mesmo
para leigos como eu, que apenas lêem uns artigos e uns raros livros, há coisas
que não podem deixar de causar perplexidade. A extensão da crise e a forma como
as medidas aplicadas nos dois lados do Atlântico não a fazem recuar nem um pouco
pareceriam implicar acima de tudo uma revisão (mais ou menos profunda) do
capitalismo ou da sua prática, não esta involução
na continuidade.
Há
quem invoque a História (diferentes momentos da História, na verdade) para
defender diferentes soluções. Mesmo que concordemos que a ortodoxia seguida
pela direita em Portugal e na Europa é a pior escolha (e são cada vez mais os
economistas a dizer que sim, até já doem os ouvidos), não parece ser certo que
soluções mais keynesianas, digamos assim, fossem eficazes. Um número crescente
e heterogéneo de autores fala na irreversibilidade do declínio ocidental — para
lá das questões sobre a culpa. (E no
entanto há entre estes autores quem proponha que ainda era possível evitar “um
mundo de soma zero”, onde os interesses de uns países competem com ou anulam os
interesses de outros.)
A
ascensão dos BRIC não implica necessariamente um bem-estar generalizado para as
suas classes sociais e certamente não significa que a democracia mundial (se
sobreviver) passa a ser defendida (nem mesmo tutelada) por outros quadrantes
geográficos.
Estes
dois cenários, a crise ocidental e a ascensão económica mas não mais democrática
dos países emergentes, parecem pôr em causa o capitalismo, a sua actual eficácia
ou até pertinência. Mas o que vemos? Políticos incapazes de pensar fora do arquétipo.
Comentadores ocupados nos seus jogos florais de demonização do outro. A Inquisição à procura de quem viveu acima das posses ou teve ilusões. Ideólogos
de blogosfera a achar excelente a oportunidade para aplicar finalmente velhas receitas
muito lá de casa.
Em
Portugal não admira que assim seja, a política e a gestão da coisa pública há
muito estão entregues a dinossauros e a jotinhas (querem culpados?), o pensamento independente e crítico não é bem-vindo.
Mas na Europa não haverá quem meta algum senso nas cabecinhas dirigentes?
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