sexta-feira, 1 de novembro de 2019

As artes do palco na era dos telemóveis

Um interessante artigo do The New York Times (embora com um título que não abrange toda a sua temática, «Filming the Show: Pardon the Intrusion? Or Punish It?») aborda o debate que se instalou entre críticos e contemporizadores do uso de telemóvel em recintos de espectáculos. O tema já não é só motivo de conversa entre espectadores ou artistas após uma má experiência: cresceu para entrar em livros como The Reasonable Audience, uma obra que trata dos debates contemporâneos sobre etiqueta no teatro.

Entre exemplos de artistas que tiram os aparelhos a espectadores desobedientes ou interrompem as suas performances em retaliação contra os que filmam e consultam telemóveis e referência a críticas a uma tradição de etiqueta obsoleta — mas «recente», lembram-nos, já que no tempo de Shakespeare as audiências eram descontraidamente interventivas e ruidosas —, o artigo cita uma profecia talvez perturbadora mas nem por isso menos plausível: «as pessoas que se entregam totalmente e impõem rituais arcaicos e anacrónicos que requerem à partida um enorme capital cultural serão completamente irrelevantes daqui a quinze anos.»
O futuro será então dos ignorantes e buliçosos. Já desconfiávamos.

As razões por que os telemóveis podem ser tidos como intrusivos ou desadequados em recintos de espectáculos são diversas e merecem também discussões diferentes. A recolha indevida de imagens e som é um assunto, eventualmente de foro legal, sobretudo entre artistas e público transgressor de direitos protegidos. Já os braços adejantes, a luz dos ecrãs e os sons que os aparelhinhos emitam intrometem-se e em muitos casos perturbam a atmosfera da performance, quebram a concentração ou o encanto, tanto dos artistas quanto dos espectadores nas imediações.

O primeiro problema, o dos direitos de som e imagem, se se entender grave o suficiente, pode ter uma solução legislativa e tecnológica, havendo vontade política e ambiente social favorável: os recintos estarem legal e tecnicamente habilitados a impedir o funcionamento de telemóveis, mesmo contra a vontade dos donos dos aparelhos.

O segundo problema — aquele que é verdadeiramente uma questão, não de etiqueta, mas de comportamento, de sensibilidade estética e respeito pelo trabalho e atenção dos outros — não remete necessariamente para intervenções legislativas ou intromissões tecnológicas. A sensibilidade e o respeito não se legislam e o seu policiamento não tem resultados muito animadores. Estas coisas podem ensinar-se ou pelo menos estimular-se em escolas e famílias funcionais, mas precisam sobretudo de sociedades e media que não estejam globalmente obcecados com a standardização e a forçada descomplexificação do mundo.

Uma peça de teatro ou dança não é geralmente a mesma coisa que um concerto de rock, tanto ao nível dos decibéis provenientes do palco como ao da experiência estética que constitui. Embora possa haver peças que, legitimamente, se propõem o mesmo tipo de catarse ou celebração colectiva que um concerto de rock, muitas outras há que implicam observação minuciosa e permanente de expressões, posturas e movimentos, análise continuada dos quadros compostos na cena, audição extensiva de discursos e diálogos e elementos da sonoplastia — ou seja, implicam atenção e concentração, não apenas para entendimento da peça mas para uma plena fruição estética. Para um prazer completo.

O problema é que a sociedade, pastoreada pelas agências de comunicação e pelos media, em particular as televisões, tende a desprezar experiências estéticas que não sejam alienantes da mesma exacta maneira que as grandes manifestações de massas, como se houvesse menos possibilidade de prazer numa peça de teatro ou dança ou num concerto para gente atenta.

Por conveniência e convenção medíocres (e às vezes por algum snobismo de uma das partes), reduz-se o conceito de prazer e entretenimento a manifestações artísticas em que o elemento intelectual desempenha um papel menor, em que se pede ao espectador passividade mental, mesmo que se lhe permita ou estimule actividade física de resposta, incluindo dançar no lugar ou acenar coreograficamente telemóveis.

Esta divisão entre cultura e entretenimento, que se utiliza para de forma simplista separar o que tem interesse estético do que é mero divertimento festivo, promove equívocos, rapidamente aproveitados pelos arautos da mediocridade para apelidar de aborrecida e cinzenta toda a manifestação artística que não nos faça (ou permita) bater o pé ou não instigue à gargalhada automática, reflexiva. Daí a referência hiperbólica ao «contrato» vigente em concertos de música clássica como «ritual arcaico e anacrónico que requer à partida um enorme capital cultural» (sendo «o enorme capital cultural» basicamente dar-se a pessoa ao trabalho de ler o programa, ter aprendido a identificar nele os andamentos das peças e saber que, por definição do género que tem as suas razões, não são esperadas manifestações do público, ou seja, palmas, entre andamentos).

Talvez haja um certo snobismo no mundo da música clássica. Talvez os músicos não fizessem mal em deixar de lado o smoking. Talvez fosse mais produtivo, em salas menos especializadas, o maestro explicar no início onde serão menos perturbadoras da concentração as eventuais manifestações de louvor ou tédio do público do que franzir censoriamente as sobrancelhas ou brandir ameaçadoramente a batuta de cada vez que alguém, fora do tempo, bate palmas para aplaudir ou apenas relaxar o corpo. Talvez fosse mesmo de aceitar, gratamente, humildemente, as manifestações do público em qualquer altura da performance, sendo elas genuínas. E é sem dúvida de abolir o tradicional ramo de flores para solistas ou maestro, excepto quando oferecido por um amante que, enlevado pela prestação musical, arrisca sair do anonimato.

É a etiqueta da cultura clássica, um certo formalismo ritual e eventual rigidez, denunciados não raro com veemência exagerada, que fornecem a desculpa a certos indivíduos para se anunciarem como rebeldes contra o elitismo e o snobismo cultural e não como promotores de uma ideia limitada e medíocre de espectáculo.

Advogar uma certa modernização de guarda-roupa e postura ou apelar a alguma flexibilidade por parte de orquestras e concertistas não é, contudo, a mesma coisa que achar razoável a intromissão de telemóveis numa sinfonia — a não ser que o concerto tenha sido desenhado e amplificado para menorizar esse impacto, para ser uma outra experiência.

Seria idiota soçobrar perante o admirável mundo novo da tecnologia, que por definição e vício de classe pretende a cada upgrade soterrar o mundo como o conhecemos. Muitos dos que se excitam com a ideia de revolução tecnológica alimentam um determinado grau de ressentimento. Sentem-se excluídos do mundo anterior (por falta de oportunidades, dificilmente por responsabilidade própria) e vêem num futuro niilista, de terra queimada, a oportunidade de vingança ou de encontrar o seu lugar ao sol. Veja-se a postura de tantos informáticos em relação às humanidades.

Mas a ideia de revolução, tecnológica ou não, é também uma aspiração eterna da juventude, frequentemente consubstanciada numa rebeldia sem causa. O artigo do The New York Times também introduz este elemento no debate sobre etiqueta no mundo do espectáculo: «Tanto o teatro como a música clássica têm uma base de fãs envelhecida e desejam atrair audiências mais diversificadas e jovens e há quem sugira que insistir em restrições comportamentais é uma forma de elitismo desanimadora.» Tomar como universo único o teatro e a música clássica é já um preconceito; outro, ou pelo menos uma cedência sem luta, é considerar que têm bases de fãs envelhecidas. Em todo o caso, aceitando que assim possa ser, continua a ser um erro desistir da experiência do silêncio e da atenção apenas para atrair públicos jovens, porque isso significa em muitos casos desistir da experiência da música e do teatro em si mesma.

Uma das características do confronto geracional nos tempos que correm é a cobardia e a desistência dos adultos. Décadas de propaganda televisiva e cinematografia mainstream dirigidas a jovens ou adolescentes tornaram muitos adultos envergonhados do seu estado, como se fossem gadjets obsoletos à espera de substituição por novos modelos. E contudo a experiência humana não se restringe a uma só das fases da vida, como sabe quem cresceu, se tornou adulto ou envelheceu sem se sentir diminuído mas antes enriquecido pelo que viveu e vive. Nada da experiência humana dispensa, por inerência, o ter sido jovem, mas muito do conhecimento e fruição do mundo depende de se ter crescido e acumulado experiências e saber. Além disso, salvo nos casos em que o nosso cérebro parou na adolescência, há experiências estéticas, com o seu capital de prazer, que implicam sermos adultos e termos acumulado anos de vivências, do mesmo modo que outras há que, tendo sido prazenteiras no seu tempo, se revelam numa fase posterior da vida insatisfatórias.

É por isso fundamental a ideia de que progredir não é igual a abdicar. A tecnologia serve para facilitar tarefas, não para iludir o entendimento e simplificar a experiência do mundo, coisas inelutável e desejavelmente complexas. Por outro lado, conquistar o interesse da juventude para determinadas manifestações artísticas não passa necessariamente por as transformar de tal modo que elas deixam de ser o que são. Além disso, não é irrazoável defender a existência de propostas artísticas que sejam por natureza excluídoras de jovens ou adolescentes, excepto se estes se derem ao trabalho de crescer, precocemente ou no tempo certo, para elas.

Defender, em suma, que se pode estar em qualquer peça de peça de teatro ou dança (ou concerto para gente atenta, para usar uma definição anterior) como num concerto de rock ou numa rave não é um ataque audaz e admirável ao velho elitismo das classes cultas ou a regras arcaicas de etiqueta; não é uma defesa da democratização e da simplificação do acesso à cultura (talvez do direito a ser-se, por fatalidade, opção ou natureza, ignorante e espectador): é sobretudo uma voluntária redução do leque das experiências estéticas possíveis, uma imposição de uma outra forma de estar, massificada, protofascista, que exclui os que desejam desfrutar colectivamente de um espectáculo em silêncio, sem perturbações alheias à performance.

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