quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A Europa no divã



Notas de leitura e reflexões a partir de três romances.

Os romancistas precisam de se comprometer com o mundo à volta deles e, necessariamente, com o mundo político à volta. Kamila Shamsie

Quando em 2008/2009 escrevi o Hotel do Norte não tinha em mente o drama actual dos refugiados, tanto porque na altura isso não era o tema que hoje é, quanto porque apenas queria escrever um romance, contar literariamente uma história. Mesmo a reflexão que o livro de certa forma opera sobre a condição dos “retornados”, assunto eminentemente nacional, não era para mim um objectivo claro, apenas pensava em usar pedaços das minhas memórias como matéria literária de uma ficção. Mais tarde ganhei consciência de que as personagens do romance, despidas das suas referências específicas a um episódio histórico e a um território particular, poderiam ser de certo modo arquétipos de seres humanos em trânsito encalhados num limbo entre o seu mundo anterior e um futuro incerto.

É desse limbo, mas neste caso com referência aos emigrantes e refugiados do Hemisfério Sul postos hoje em espera em países da Europa (no caso, a Alemanha) que trata o romance Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai, de Jenny Erpenbeck. O livro da escritora alemã parece ecoar as palavras de Kamila Shamsie, paquistanesa com recente nacionalidade britânica, quando esta diz, em entrevista publicada na LER, que «os romancistas precisam de se comprometer com o mundo à volta deles e, necessariamente, com o mundo político à volta». Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai parece representar esse mesmo comprometimento ao confrontar um homem, alemão de leste reformado, com a realidade da imigração e dos refugiados, ao mesmo tempo que o confronta com o sentido da sua vida.

Isto pede um parêntesis. Em seu tempo, li mais ou menos cronologicamente, e com muito interesse, os livros de Saramago até A Caverna. Neste tropecei, porque senti que Saramago perdera a capacidade de harmonizar literatura e ideologia, deixando demasiadas costuras à vista num fato já de si com um corte inferior. Tinha lido na primeira juventude apologias de uma arte interventiva, e a minha costela editorialista concordara, mas depois também li argumentos diferentes, defendendo que um romance, para ser arte, não deve ser um panfleto, mesmo que o autor tenha igual anseio de morigerar. No fim de tudo não fiquei com ideias fechadas sobre o que é ou deve ser um romance, mas enquanto leitor não gosto de obras que prescrevem, prefiro as que lançam dúvidas, interrogações, eventualmente sugerem.

O romance de Jenny Erpenbeck, que se lê com gosto, fruto de vários outros méritos, não é um panfleto mas tem um notório engajamento em ideias humanitárias (nada contra) e uma certa propensão para ver os seres humanos pelo lado positivo, evocando, talvez involuntariamente, o bom selvagem de Rousseau. É, abordando as misérias e os dramas da emigração, um livro optimista, no sentido em que, apesar dos reveses, da burocracia impiedosa, da política cínica e do futuro sombrio, nenhuma das personagens, alemãs ou imigrantes, é verdadeiramente má (ainda que algumas sejam mal-agradecidas). Os maus no livro não chegam a ser personagens, mas ameaças abstractas com efeitos concretos, e a redenção do protagonista alemão exprime de uma certa forma o desejo de redenção da Europa.

Com livros como este e apelos como o de Kamila Shamsie referido atrás é previsível que certa intelectualidade à direita se horrorize com a perspectiva de um regresso ao sentimentalismo ingénuo e activista do neo-realismo (ela que nos dias que correm se extasia frequentemente com nacos de neo-fascismo).

Na verdade, todas as épocas têm romances políticos, escritos com maior ou menor subtileza, com maior ou menor engajamento. Philip Roth escreveu A Conspiração Contra a América como Orwell tinha escrito 1984, fazendo especulação literária com a História, sugerindo que a cada momento a linha entre os vários futuros disponíveis e a histórica factual é ténue. Mais do que prescientes, são livros que nos mostram mundos possíveis que os autores rejeitam e desse modo combatem.

A novidade hoje será o regresso de um certo sentido de urgência, como noutros períodos da História em que a identidade das sociedades esteve em causa. É o regresso à dúvida de quem somos «nós» e quem são «eles» e como se hão-de articular a primeira e a terceira pessoa do plural.
Este sentido de urgência pode dar, dará certamente, muita má literatura, que não sobreviverá à sua época, caso alguma coisa sobreviva. Mas tem também exemplos de excelente literatura, como A Capital, do austríaco Robert Menasse.

Neste romance, o assunto dos refugiados não é o foco principal, embora esteja presente e tenha o seu mais forte momento de irónica provocação numa pietà composta por uma muçulmana de lenço na cabeça a amparar um austríaco de fato e gravata à beira da estrada após um acidente. A personagem principal é a própria União Europeia, representada pela sua babélica e falhada capital, Bruxelas. As cinco histórias que se entrecruzam e interligam no livro têm sobretudo como protagonistas funcionários de instituições da UE (com diferentes nacionalidades e origens culturais, e com idiossincrasias que se relacionam ou digladiam com as respectivas origens, convocando reflexões sobre clichés, nacionalismos e multiculturalismo dentro da União) ou pessoas que de algum modo interagem com instituições e políticas da UE. Podemos ler o livro com a atenção apenas nas pessoas e nas histórias — com o seu sabor a thriller ou policial, os seus dramas amorosos e humanos, existenciais, o seu lado de crónica social, os seus episódios cómicos — ou podemos conjugar tudo isso com a deliciosa sátira sobre a União Europeia que o livro constitui. (Na abertura, e ao longo do romance, há um porco à solta nas ruas de Bruxelas e a política europeia sobre suínos é feita matéria literária para falar divertidamente do confronto de interesses e perspectivas dentro da União Europeia.)
Contudo, após nos rirmos do absurdo do quotidiano institucional de Bruxelas e de quão patética a União pode ser, com as suas instituições concorrentes ou contraditórias, chega-se ao fim do livro com a certeza de que esta Babel decadente e em ruptura que é a Europa não só é uma boa ideia como pode funcionar. E é este o comprometimento político — subtil na sua trama mas evidente no seu alcance — de um livro que é sobretudo um grande romance.

O terceiro livro desta minha pequena sequência de leituras é Hotel Silêncio, da islandesa Auður Ava Ólafsdóttir. Aqui não há propriamente refugiados, mas um país dilacerado pela guerra. Um homem, nórdico, confrontado com os falhanços e equívocos da sua vida, decide matar-se, mas vai fazê-lo longe, para poupar a filha a encontrá-lo morto. Chega com o álibi do turismo a um país que tenta recuperar das suas próprias feridas e desata a consertar coisas, com o seu jeito para os trabalhos manuais. Pelo caminho, começa a consertar-se a si mesmo.
Este não é um romance político, embora não impeça reflexões desse cariz, especialmente se não evitarmos fazer coincidir o país da história com uma qualquer das repúblicas da ex-Jugoslávia.
O assunto aqui é a superação, pessoal ou nacional, através do acto de consertar (e de colaborar), que sucede e se opõe ao impulso de destruir. A forma concisa e poética como o livro está escrito faz pensar numa parábola, e, se o lemos na sequência dos anteriores, com o declínio da Europa no horizonte, a parábola ganha uma nova dimensão e torna-se urgente. Se nos quisermos comprometer, claro.

----------------------

Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai, de Jenny Erpenbeck — Relógio d’Água, 2018
A Capital, de Robert Menasse — Dom Quixote, 2019
Hotel Silêncio, de Auður Ava Ólafsdóttir — Quetzal, 2019

Sem comentários:

Enviar um comentário