quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Hotel do Norte por Carlos Alberto Machado

Enquanto finjo pensar sobre o que que hei-de-dizer na apresentação aguiarense do Hotel do Norte, no próximo sábado, deixo aqui o texto generoso que o editor Carlos Alberto Machado usou na apresentação na Flâneur.


HOTEL DO NORTE
Breve apresentação por Carlos Alberto Machado
Porto, Livraria Flâneur, 16 de Dezembro de 2017


Este Hotel do Norte, tem, na minha leitura, um olhar sobre o mundo português dos séculos XX e XXI, em particular com a vinda para Portugal, nos anos 1975 e 1976, de centenas de milhar de cidadãos, com bilhete de identidade português, vindos das então colónias, sobretudo de Angola e de Moçambique. Chamaram-lhes, impropriamente, “retornados”, pois uma parte considerável deles só conheciam Portugal de ouvir falar, como se sabe. Hoje, talvez lhes chamássemos refugiados – de guerras, ou de países à beira da falência social, chamemos-lhe revolução. Seja como for, este “tema” dos “retornados” não deve ser esquecido. Adverte, no livro, um deles – o Sr. Beirão, que gloriosamente faz jus ao nome licoroso:

«Não têm nada a temer, a ditadura acabou. O nosso Walter apenas trata de duas coisas: dar continuidade ao livro de registos do hotel e assegurar que a nossa passagem por aqui não será esquecida pelas gerações vindouras. Os outros olhavam-no, ainda indiferentes — conheciam a história. E porque haveríamos de querer que se lembrem que estivemos aqui, fugidos de um problema que não criámos?, perguntava um dos renitentes. Ora, precisamente, aí está um bom motivo, dizia o Sr. Beirão. Se vivemos as consequências de um problema que não criámos, será bom que o país não se esqueça disto, quando um dia nos quiser acusar dalguma coisa. Ou, pelo contrário, se formos nós a querer acusar o Estado de alguma coisa. Ouvi falar que há quem pense em exigir indemnizações e para isso é bom que não nos percam o rasto nem por um dia
[p. 87]

O retorno (ou a fuga) das colónias africanas: um tema que se cola à pele das personagens – e assim não se poderá ler este livro sem ter esse alerta.
Além do Sr. Beirão, outra personagem acima citada, o inquiridor Walter (que é, se não me falhou a atenção, a única personagem que está presente do princípio ao fim do livro). Walter, o do bigode vermelho, é um solitário que «não pensava no erotismo e na religião como opostos: desejava do mesmo modo inofensivo a vida eterna e a satisfação do corpo.» [p. 87] Como disse na sinopse, Walter envereda por uma investigação detectivesca através da história e do rasto ténue que os antigos hóspedes deixaram – desde 1941, quando as termas e os hotéis do parque onde este situa tiveram uma época de algum fausto, embora a saúde fosse então o principal motivo da estadia de famílias burguesas. Quando travamos conhecimento com esta personagem, logo nas primeiras páginas do livro, vemos que ele se irá dedicar, com tenacidade e até teimosia, a reconstituir a vida do hotel (numa inquirição arquivística a partir dos documentos existentes na cave do hotel), desde o meio do século XX (anos 40), até 1975, ano em que ali chega vindo de Moçambique. Esta é a linha principal do livro: a que nos vai mostrando, num vaivém entre a realidade e a ficção, de forma insidiosa, as relações entre “retornados”, as destes com habitantes dos lugares circundantes, e, quem sabe, as de entre homens e mulheres cujas vidas, todos enredados numa trama que o empreendimento detectivesco de Walter ora parece desvendar (aquilo que está por detrás das aparências), ora faz mergulhar a aparente clareza das coisas em estratos de sonho ou de fantasia. E isto não fui eu que descobri. Tenham paciência, por favor, para esta citação, um pouco mais longa:

«A meio da leitura do manuscrito [Leonardo] não estava capaz de decidir se o que tinha à minha frente era material biográfico ou uma ficção.»
[p. 269]

«As histórias da infância estavam registadas em capítulos intercalados, com referência ao tempo presente. Histórias dentro de histórias que narravam os nossos encontros e as nossas conversas com um detalhe inquietante. Era uma sensação bizarra ver-me como personagem de algumas passagens daquele manuscrito, passagens que lhe conferiam absoluta verosimilhança mas que se sucediam a outras que não poderiam ser senão especulação. Por mais que Jorge conhecesse os personagens da sua história (aqui entendida no sentido biográfico) (…) o relato estava construído com um pormenor que apontava para a liberdade literária. As investigações de Walter, sobretudo, não podiam ser outra coisa.
Talvez Jorge tivesse descoberto uma vocação artística tardia e, na verdade, aquele manuscrito na forma de bonecas russas fosse uma tentativa de romance, mesmo que pudesse parecer-se com a sua biografia e ele se servisse de memórias para o compor. Talvez até os relatos que ele me fazia não fossem mais do que testes do valor do material que estava a escrever — muitos escritores liam os seus esboços a um círculo íntimo para avaliar o impacto da obra que escreviam antes de a darem por encerrada e a publicarem. Nesse caso, ter-me-ia Jorge escolhido também para agente literário? Quereria que fosse procurar um editor para a sua obra? Se fosse assim, por que não me tinha simplesmente dito tal coisa?»
[p. 270]

Trata-se aqui de «histórias dentro de histórias», de uma narrativa em «forma de bonecas russas». É este um dos principais, senão o principal, mérito desta grande narrativa do Rui Ângelo Araújo, a mestria com que, sem deixar de nos contar uma estória, várias estórias, nos faz mergulhar numa roda-viva de sensações, em que, em cada nova arrumação dos vidrilhos do caleidoscópio narrativo, nos deslumbra com as suas voltas e contravoltas.
E nessas estórias, enredos, fios narrativos, ancorados em personagens ricas, intensas, com energia, como dizia o poeta Ruy Belo, que o Rui Ângelo tão bem sabe construir, temos os ditos Beirão e Walter, Delfina e a sua mãe e padrasto, de entre os retornados”, e, fora deste universo restrito, o taberneiro Emílio, Eurico e a sua esposa, a “cantadeira” Rosa, um Jorge que se desvenda ao longo do livro em relação psicanalítica com um outro não menos enigmático Leonardo, que surge como um narrador tardio, a Catarina Mendonça e os seus pretendentes, esta Catarina que, no tal clima de deslizamento entre o real e a ficção, ora parece alguém “real”, ora alguém saído da inquirição arquivística de Walter… E há assaltos e roubos, amores e desamores, mortes, incêndios…

E como se tudo isto não fosse razão, razões, muitas, para ir a correr comprar e ler este Hotel do Norte, há outras razões: como já disse um crítico encartado, este romance é «um belo exercício de escrita» e o seu autor «mostra aqui, na sequência do que já havia feito anteriormente, que é um excelso prosador.» E eu estou em pleno acordo com o crítico.

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