domingo, 10 de outubro de 2021

O tempo perdido com Brideshead

Parti para a leitura de Reviver o Passado em Brideshead munido de sólidos e auto-indulgentes preconceitos, como o mais banal dos estúpidos. Tinha de Evelyn Waugh e da sua literatura uma ideia vaga mas satisfeita, desengonçadamente construída de alusões respigadas em ocasionais artigos de jornal, recensões, resumos biográficos ou entrevistas a terceiros, e o único livro que tinha lido do autor (Corpos Vis) confirmara essa ideia, ou pelo menos contentara a sua fraca ambição, como quem julga saciar a fome por ter comido uma vez.

Mas na minha imagem de Brideshead reunia eu outros preconceitos: os referentes ao próprio livro, que imaginava — cumulativamente com ser um texto waughiano — uma Recherche com sotaque inglês.

Assim enchumaçado de ideias feitas, quando terminei de ler a obra, senti-me defraudado, defraudado em todos os meus preconceitos.

Se Reviver o Passado em Brideshead pretendia ser um Em Busca do Tempo Perdido com humor e fleuma, ou lhe faltavam volumes ou eu acabara de ler um resumo para totós, um sumário para leitores sem tempo (esses oximoros viventes), uma versão condensada numa edição da Selecções do Reader’s Digest

Por outro lado, era um resumo que interpretava de forma singular a sua missão selectiva, porque o que eu acabara de ler, além de ser uma coisa abreviada no geral, tinha pouca fleuma e carecia de humor em particular. Ou alguém «cancelara» no digest o estilo do autor ou Brideshead não era, afinal, um livro de Waugh.

Num primeiro retiro espiritual, reconhecendo a cada vergastada auto-infligida que vivia de ideias feitas, achei que a culpa era minha, que estava a reclamar como aquelas pessoas furibundas que não lêem os Termos & Condições e não sabem portanto que o produto de que se queixam é aquilo mesmo e não a ideia que tinham daquilo.
Depois saí do retiro, como quem sai de uma lagarada, a coçar os gémeos arroxeados, e praguejei, damn!, tem de haver mais alguma coisa. Lembrei-me então de um artigo sobre Evelyn Waugh que trazia aberto num separador do Chrome no telemóvel há meses, aguardando uma sala de espera onde o ler. Não esperei por uma sala e li-o ali mesmo de pé no subpalco onde fortuitamente estava (não escolhemos o local onde o destino nos apanha, venha ele sob a forma de farsa ou tragédia, mas no caso até parece).
O artigo era de Rogério Casanova e, sabendo-se que Casanova leu quase tudo o que a humanidade escreveu, a probabilidade de ele ter lido a obra toda de Evelyn e o que sobre ela se disse era grande. Haveria decerto no artigo uma pista sobre aquilo que me angustiava.

Encontrei várias:
«Muita da arte de Waugh é uma arte de lacunas (…)»
«Foi só quando estas lacunas começaram a ser preenchidas [leia-se, com Brideshead Revisited] que surgiram problemas.»
«Onde antes a calamidade era desfeita com frívolos eufemismos, é a frivolidade que agora desperta cadências épicas.»
«Alguém escreveu um dia que Pierre, de Herman Melville, era o pior romance jamais escrito por um autor de génio. Reviver o Passado em Brideshead será, pelo menos, um fortíssimo candidato a disputar a posição.»

O problema de Brideshead não é, claro, ficar aquém da torrente e minúcia proustianas; é, pelo contrário, ir além da forma lacunar de Waugh, perdendo no processo o que tornava a sua prosa especial, aquela «arte da crueldade» que está no título do artigo de Rogério Casanova.

Não tiro conforto de ver as minhas impressões legitimadas pela erudição de Casanova: preferia ter lido o artigo em tempo útil: ou seja, antes de ter pegado na obra mais injustamente famosa de Evelyn Waugh. E só não fico para aqui a lamentar o tempo perdido com o livro errado porque afinal ele fez-me ir ler finalmente o artigo de Casanova, e esse vale sem remorsos a pena.

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Encontram-no aqui: 

2 comentários:

  1. Numa das entradas de um dos seus volumes de diários, Alan Bennett dá conta do interessante do seu companheiro a aventurar-se nessa leitura:

    «R. is reading Brideshead Revisited for the first time, my browning-at-the-edges Penguin that must be fifty years old.
    ‘Tell me,’ he says plaintively, ‘is it meant to be snobbish or am I missing the point?’
    Which is better than me who, reading it for the first time, in 1957, say, didn’t spot the snobbery at all – I just took it as an entirely proper account of a world from which I was (rightly) excluded.»

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  2. Sim, é o tipo de diálogo que fica a ecoar-nos na cabeça no final da leitura.

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