terça-feira, 29 de setembro de 2020

Cadernos de Bernfried Järvi

Rui Manuel Amaral escreveu um livro precioso. Não só porque é uma maravilha literária mas porque se revela de uma utilidade prática, digamos, se gostamos de assentar em cafés com alguma coisa para ler. Menos (mas também) porque tem uma estrutura narrativa propícia a frequentes levantares de olhos para observação da fauna do que porque nos dá toda a atmosfera dos melhores cafés (ou piores tascas) sem que precisemos de levantar os olhos das páginas.

Postas as coisas assim, poderia parecer um livro para preguiçosos, um substituto de experiências e de ficções pessoais a partir de uma ida ao café. Mas vejam a coisa de outro modo: quantos de nós poderíamos fazer alguma coisa de útil com os cafés que nos calham? Os Cadernos de Bernfried Järvi no limite até nos poupam uma saída de casa, porque ao lê-los somos felizes estando ou não no café. Ao lê-los, somos como o gato de Schrödinger da vida nocturna: eventualmente de pantufas, mas sempre vivos, pardos e vadiando.




O crescimento do partido de Ace Ventura em Estevais de Mogadouro

Não sei se é patético ou deprimente ver um escritor rejubilar com o crescimento do partido de Ace Ventura em Estevais de Mogadouro.
(Talvez não seja ainda rejubilar, mas o wishful thinking de alguém que tendo acendido sucessivas velas a determinados santos espera ver homologado o culto.)

hqttp://tempocontado.blogspot.com/2020/09/num-jantar.html

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Revisitando o passado, com ou sem aliens

Como parte do meu sólido compromisso com a procrastinação e a frivolidade, estive esta noite a ver a comédia The World’s End. O gatilho e cerne da história é simples: Gary King, um alcoólico de 40 anos que não saiu da adolescência, retoma o contacto com os seus quatro antigos amigos e desafia-os para, décadas depois, completarem a «Golden Mile», uma espécie de «rally das tascas» que faz um percurso por 12 pubs da sua cidade natal e pretende terminar, adequadamente, com uma última cerveja no The World’s End.

O que parecia para o meu incorrigível optimismo uma história de reencontros e revisitação do passado sofre a determinada altura um twist e transforma-se numa comédia de aliens, sem contudo perder a energia central: a obsessão de Gary por completar a Golden Mile. Quando poderíamos achar que as dificuldades do percurso seriam as objecções ou a menor resistência ao álcool dos amigos agora «crescidos» de Gary, eis que toda uma comunidade local já por natureza crítica de tal demanda estroina se revela possuída por seres extraterrestres com a pretensão de civilizar e higienizar a vida na Terra.

No final do filme, como tantas vezes me acontece, pus-me a pensar, não no tempo que perdi a ver aquilo, mas nas oportunidades que o filme perdeu. E talvez não tenha perdido nenhumas, mas eu teria optado, para atenuar o sentimento de culpa de o ter visto e quiçá errando clamorosamente, por um novo twist no final que devolvesse o filme à Terra, mostrando que o pandemónio alienígena tinha sido apenas a forma como a mente ébria de Gary interpretara as dificuldades e os obstáculos com que o seu projecto se tinha deparado. (Quem nunca se embriagou ao ponto de sonhar com extraterrestres puritanos não sabe do que falo. Bem, eu próprio não tenho essa experiência, mas imagino-a facilmente verosímil num epílogo cinematográfico.)
No fundo, para defender perante mim mesmo uma reputação de espectador que nunca tive, desejei que o filme tivesse tomado ares de uma comédia «séria», algo entre Os Amigos de Alex e Os Velhos Diabos. O primeiro título é para muitos o arquétipo em cinema desta ideia literária do confronto com o passado (outros preferirão, naturalmente, o não menos etílico Brideshead Revisited). O segundo título é um livro de Kingsley Amis, pai de Martin Amis.

De repente, todas estas referências e mais algumas explodiram-me na cabeça, numa teia de ligações mais emaranhada do que renda do Minho.

Quando há dez anos escrevi o meu segundo romance (Aranda, assente, precisamente, na ideia assaz original de revisitação do passado a partir do convite que um tipo embriagado faz a um grupo de amigos e amigas da adolescência), alguém me lembrou, justamente, Os Amigos de Alex, que eu, sem ter visto, confundia sobretudo com o programa da Renascença FM. Ora, acontece que tinha escrito o livro aproveitando um estado mental que me fora fornecido por A Viúva Grávida, obra passada em 1970 e vagamente autobiográfica de Martin Amis, anos antes de ler Os Velhos Diabos, onde o pai de Martin, ele mesmo o bebedor que se sabe, encena a sua própria tragicomédia de adultos a revisitarem entre copos a juventude perdida (com mais êxito do que eu: ganhou o Booker).

Talvez para aliviar definitivamente a minha consciência e acrescentar ligações maradas a tudo isto, fiquei a saber, depois de consultar a Wikipedia, que o filme Os Amigos de Alex foi escrito por Lawrence Kasdan, que, surpresa, foi também, não sei se alcoólico, mas co-autor de vários dos episódios antigos e recentes da saga Star Wars. Não há, afinal, nada de estranho ou menos válido no facto de The World’s End ter resolvido ser também um filme de aliens: aparentemente os dois géneros podem conviver com sucesso na cabeça de um mesmo autor.

Neste estado de espírito, fui revisitar o meu (e)ternamente inédito Aranda e perguntei-me se conseguiria alguma vantagem editorial (ou, quem sabe, perante a indústria cinematográfica) enfiando-lhe no elenco um par de aliens. O que acham?

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Como experimentar na Terra a gravidade da Lua

Por estes dias descobriram hipotética vida em Vénus* e eu descobri como experimentar na Terra a fraca atracção da gravidade lunar. Aconteceu depois de pousar no lobby do hotel uma mochila de vinte quilos e uma mala de quase trinta que carregava por encomenda entre aeroportos e estações. Alijada a carga junto ao sofá de couro gretado da recepção, os passos finais que me separavam do balcão de check-in dei-os aos pulos, entre soalho e candeeiros de tecto, como Armstrong a tirar selfies na Lua em 1969, com igual involuntariedade e a mesma alegria pioneira.

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* Tirando o primeiro episódio da saga Alien, «hipotética vida» é tudo o que temos obtido da exploração espacial até à data.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Cavalheirismo de última geração

A zaragata juvenil da madrugada tem início quando, no seio de um grupo de pândegos, um tipo começa a bravejar com uma rapariga, insultando-a. Como ela se afasta com duas ou três pessoas mas hesita em ir embora e responde à distância e à letra, o tom dele passa a ser de ameaça e tem lugar então a habitual dança de avanços e recuos, contida por outros elementos do grupo. A certa altura da altercação, talvez querendo mostrar galhardamente que não bate em senhoras mas demasiado irado para deixar passar o caso, o vociferante recorre a uma fórmula indirecta, em que deposita as esperanças simultâneas de se vingar e ser ilibado de falta de cavalheirismo: «Eu fodo-te, pá. Vais levar nesses cornos de duas ou três gajas, podes contar com isso.»

Talvez o amigo que a seguir lhe fez uma placagem tecnicamente perfeita, quando, já livre de peias morais ou cuidados de género, o touro enraivecido resolveu investir a todo o galope contra um dos acompanhantes da sua inimiga — um tipo impávido, silencioso e com ar um pouco efeminado, que ouviu sem se mexer o anúncio «Mas tu vais levar já!» —, talvez esse amigo ágil e moderador lhe tivesse dito  que o cavalheiro, ao optar para a sua vingança diferida por um número plural de instrumentos, vulgo interpostas gajas, não se livraria de uma acusação de cobardia, porque a contenda terminou por ali.