quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Livros que brilham como se tivessem luz própria*


Já contei algures que li a novela Crónica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, na noite que sucedeu uma exaustiva e fatigante limpeza do apartamento onde então vivia. Estávamos na Primavera, talvez véspera da Páscoa. Os bons católicos da minha terra recordarão que a casa se limpa profundamente na Páscoa; eu não esperava e menos desejava a visita de um padre, mas não estava decerto imune à sugestão de renovação que a Primavera traz.

À noite estendi-me nos lençóis lavados, a cheirar a fresco (ou ao sucedâneo de frescura deixado pelo detergente da máquina), agradavelmente cansado, satisfeito, com uma vaga sensação de vitória, e aquele livrinho pareceu-me brilhar como a superfície dos raros móveis onde aplicara o Pronto ou dos mosaicos onde, talvez desajustadamente, vertera e esfregara o Cif. O dia tinha sido de sol e, se isso inicialmente me enevoara o espírito, quando, auto-enclausurado, me obriguei a limpezas, deixou, por outro lado, uma encantadora memória de luminosidade geométrica no parquet descolado, de janelas trespassadas pela luz declinante, que perdurou à noite.

A leitura da novela foi quase extática, epifânica, como se o próprio Espírito Santo tivesse resolvido, com jovialidade de cordeiro primaveril antes de pressentido o sacrifício, derramar-se nas páginas daquele exemplar da colecção «Ficção Universal» das Publicações Dom Quixote. Tudo naquele livro de capas brancas, o que dele emanava para mim, era luz, luz meridional, luz quente, e bem-estar, joie de vivre, Riviera Maya sem sargaço. Bem sei: alguém ia declaradamente morrer e as causas e os métodos da morte não eram bonitos nem radiantes. Mas havia a prosa, a narração. Dormi como um anjo e guardei essa memória de felicidade até hoje.

Bruno Vieira Amaral, logo na terceira página de Hoje Estarás Comigo no Paraíso, evoca e cita Crónica de Uma Morte Anunciada. Se o não fizesse ele, qualquer crítico do livro teria de o fazer. Não tanto pelos pontos de contacto circunstanciais que possam existir entre as histórias narradas pelos dois livros, mas pela luz que ambos reflectem. Ou emanam. O romance de BVA é, para mim, meridional como alguma literatura da América Latina. As páginas do livro iluminam-se da mesma maneira, até quando tratam, de igual modo, de misérias e tristezas humanas. Não falo exactamente de brilhantismo da prosa no sentido de mestria, mas de uma luminosidade óptica, palpável, de uma luz de trópicos que nos entre pelos olhos com as formas negras dos caracteres («da famíla Caslon, inspirados na tradição barroca holandesa do séc. XVII») que compõem as palavras impressas. A Baixa da Banheira de Bruno Vieira Amaral, já o tinha pensado na parte que li de As Primeiras Coisas (hei-de terminá-lo), podia bem localizar-se em Medelín ou lá onde a luz é muita e benfazeja, apesar dos esfaqueamentos.

O título Hoje Estarás Comigo no Paraíso não é, portanto, só bíblico — dirige-se directamente ao leitor com uma promessa que este pode bem dar por cumprida durante as horas de leitura (o Paraíso é eterno enquanto dura). Mesmo que não seja Primavera nem tenha havido barrela à tarde.


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* Abaixo de 451 Fahrenheit.

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