quinta-feira, 12 de julho de 2018

A insensatez da espeleologia na adolescência

Há no parque termal das Pedras Salgadas uma mina cuja entrada é protegida por um portão com barras de ferro. Na minha adolescência, o portão estava geralmente arrombado e, numa ocasião ou noutra, a solo ou em banda, íamos ali espreitar, alternadamente estimulados por curiosidade espeleológica ou excitação viciosa, dependendo se tínhamos visto filmes de aventuras ou se ouvíramos comentários sobre actividades clandestinas.
 Logo a seguir ao portão, a mina divide-se em dois túneis. Um, muito curto, à direita, por onde se pode caminhar de tronco erecto, culmina numa pequena câmara, à época decorada com obscenidades, erros gramaticais e desenhos de genitália, a giz ou a carvão. A luz do dia não chega lá ao fundo, pelo que a arte rupestre então praticada precisou de iluminação artificial para se consumar. Isqueiros, presumo. Pelos vestígios acumulados no chão, também se consumavam ali outras actividades, relacionadas com cigarros e álcool, drogas e sexo. Não tenho, curiosamente, memória de ter visto nunca alguém entrar ou sair dali, pelo que no meu imaginário os sinais de actividade humana naquela mina ficaram sempre catalogados como vestígios arqueológicos, contributos para a antropologia mas de uma perspectiva histórica, diacrónica.
 Sobre o outro túnel, o da esquerda, não havia mitos ou lendas disponíveis, suspeitas lúbricas ou de traficância, nem informação histórica ou geológica que fosse partilhada connosco. A poucos metros da entrada, o túnel estrangulava-se como uma artéria entupida, deixando apenas um buraco com uns cinquenta centímetros de diâmetro, suficientemente estreito para demover mesmo os que, para a satisfação dos seus vícios, tremiam de timidez agorafóbica ou eram fanáticos da privacidade.
 De Inverno, o terreno baixo por onde se acede à mina, estava quase sempre inundado, mas o nosso espírito exploratório estava também em hibernação, à espera de melhores dias, pelo que não havia perigo de incursões. Já no Verão, quando tínhamos mais tempo e ânsias, o acesso era seco, franco, e a penumbra fresca convidativa. Muitas vezes íamos ali meter o bedelho, até que chegou o dia, como inevitavelmente tinha de chegar, em que a curiosidade foi maior do que o medo do escuro ou das consequências. Éramos quatro e talvez duas lanternas, subtraídas às escondidas das oficinas familiares. O terreno barrento estava suficientemente seco, no primeiro troço do túnel, para nos deixar algo descansados quanto à roupa e às mães. Depois de várias arremetidas e recuos, a testar com paus e pedras a consistência das paredes e tectos da mina, cruzámos finalmente, rastejando, o pórtico que separava a zona conhecida das entranhas insondáveis, munidos de varas curtas e fantasias longas. Do outro lado, o túnel apresentava-se mais transitável, e o tecto em arco, baixo, esculpido na rocha, revelava mão humana. Continuo a ignorar se a mina foi construída para chegar a algum aquífero subterrâneo, se estava relacionada com ancestral exploração de metais, mas na altura estávamos seguros de que era tão antiga e misteriosa quanto a presença dos romanos na península. Prosseguimos de cabeça baixa e olhar expectante, não necessariamente à espera de encontrar ouro, mas atentos a tudo o que ali brilhasse e se nos oferecesse. Havia algumas curvas suaves, algumas rectas curtas, crescente humidade a escorrer de paredes e tecto, uma distância que hoje calculo ser um quarto da que estimávamos na altura, até que surgiu uma câmara bastante mais ampla e alta do que o lupanar ou sala de fumo do túnel da direita e sem qualquer vestígio humano ou erro ortográfico visível. Éramos, notoriamente, os primeiros contemporâneos a chegar ali. Nunca tínhamos ouvido falar de expedições ao túnel da esquerda e agora comprovávamos o nosso pioneirismo. Não havia graffitis, beatas, garrafas, camisas-de-vénus, pénis ou vaginas. Nem sequer havia esqueletos humanos, o que era outra boa notícia: não se morria ali enclausurado.   
 Houve fascínio e regozijo, naturalmente, como se tivéssemos feito o percurso de Angola à contracosta antes de Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo. E frustração, logo depois. A câmara não era o fim do túnel, mas este, no seu troço seguinte, descrevia uma curva tão apertada para o desconhecido e estava tão inundado que nos fez hesitar longamente e por fim adiar sine die a segunda fase da expedição.
 Havia, contudo, motivos de interesse naquela câmara. Desde logo uma entrada de luz no centro da abóboda que nos dava algum alívio, se pensávamos no perigo de ficar ali retidos por desabamento do túnel, e nos fornecia um novo plano: detectar pelo exterior aquela entrada de luz e medir assim o comprimento do túnel.
 Dois de nós voltámos atrás com essa nova missão. Um dos dois que ficaram, o mais ágil e destemido, propôs-se escalar a parede da câmara para acenar dali com a sua vara e nos auxiliar na localização do buraco.
 Demos com o buraco, depois de saltar o muro para o terreno contíguo ao parque, e, a passo, medimos uma assombrosa centena de metros da entrada até ali — o que significa que o glorioso túnel da minha adolescência, a aventura-mor daqueles anos, que tanta gabarolice nos permitiu e tanta censura nos trouxe pela inconsciência e insensatez, se resumia, certamente, a uns míseros vinte ou trinta metros.
Não consta que tenha havido outras expedições nem há relatos de crianças desaparecidas, mas as últimas vezes que passei ali o portão estava rigidamente fechado. O que se calhar se deve apenas à liberalização dos costumes que tornou desnecessária a visita ao túnel da direita.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Tílias

Quando saio do Club House, o empregado, que no alpendre enche de ar os pulmões, adopta subitamente um tom familiar para me dar conta de que lá fora cheira a tília.
Não costumo corresponder a estas tentativas de intimidade, quer por arreigada misantropia, quer porque geralmente elas têm origem em interlocutores que partem do princípio totalitarista de que qualquer um está disposto a partilhar (ou discutir) a alegria de um golo ou a frustração de uma derrota desportiva. Mas um barman que fala no cheiro das tílias merece outro trato. Digo-lhe que sim, já tinha reparado, é muito agradável. Verdadeiramente balsâmico. Ele concorda, inspira de novo e regressa ao seu longamente empatado Rússia x Bélgica.

Os antigos plantavam e veneravam tílias. Os modernos querem-nas derrubar, porque por vezes a seiva leitosa lhes suja os carros ou cola-se-lhes aos pés. São nisto mais fidalgos do que a velha fidalguia, que gostava das suas áleas perfumadas e sombreadas e estava disposta a pagar o preço. Aliás barato, se fizermos bem as contas aos lucros existenciais de ter uma tília por perto.

Os antigos e os modernos por vezes cruzam-se em espaços como o Parque Termal de Vidago. Não há decerto nada da velha nobreza nos actuais CEOs da Unicer, detentora do Parque, mas a ideia de que um dia um rei dormiu no Vidago Palace, alimentando o deslumbre plebeu por tudo o que possa ser associado à realeza, tem servido para manter bem tratado o parque termal. E bem tratado não apenas porque se não derrubam ali árvores, mas porque se tratam bem as que existem e projectam oportunamente (e plantam) as que hão-de substituir as que morram.

Cresci junto a um outro parque termal, o das Pedras Salgadas, com o seu próprio viveiro florestal e jardineiros instruídos para cuidar dos espécimes ancestrais e plantar os futuros. Quando lá passeio hoje, identifico algumas árvores que na minha infância eram apenas ideias apoiadas em estacas e regadas em regime quase terapêutico, como se alimentadas a horas regulares a copinhos graduados de água medicinal. Mas também noto pequenas ausências e ameaças de clareiras; sobretudo noto a escassez de plantações recentes, ao contrário do que acontece em Vidago. É como se em Vidago sobrevivesse um pouco daquilo que fazia as tílias sagradas em velhas civilizações germânicas e nas Pedras se preparasse para entrar o expedito e imbecil arrivismo contemporâneo, demasiado ocupado a aplicar cera no capô para notar o perfume no ar.

O Parque de Vidago, porque cuida, planeia e replanta, está quotidianamente a criar as condições da sua continuidade; a continuidade do seu estatuto, para quem liga a estas coisas, e a continuidade da sua nobre missão ao serviço da história, da arte ou da botânica. Ao serviço do puro acto de civilização que é passear à sombra ou ficar sentado à sombra a cheirar o perfume das tílias.

O Parque das Pedras, pelo seu lado, corre o risco de no longo ou médio prazo se assemelhar àquelas vilas e cidades que desistem espontaneamente de ter sombra e aromas verdes porque já se desabituaram de trazer fresca e arejada a cabeça e padecem de rinite opcional.