sábado, 16 de junho de 2018

[Work in progress]

«— Houve um tempo em que também para mim era gratificante imaginar-me parte da aristocracia, não lho vou esconder — disse ele. — E ainda agora, se me distraio, faço poses em frente ao espelho e passeio-me pela casa de robe tal um viscondete entediado, como se o tédio fosse uma prerrogativa da nobreza.
O que talvez Rodrigo não estivesse disposto a conceder era que naquele momento ele agia com a prepotência de um monarca, detendo o seu interlocutor sem nenhuma razão válida senão forçá-lo a ouvir as suas confidências inesperadas e excêntricas.
— Pelo contrário, talvez seja nisso que a humanidade se irmane — disse eu, tentando ser jocoso. — O tédio como bem de acesso universal.
— Acha? Julguei que depois do regicídio só os poetas se entediavam.
— Ainda há poetas?
— Nem imagina como essa pergunta faz sentido.
— A literatura não é o meu forte.
— Eu era um. Poeta. Antes de ser esta espécie de hoteleiro.
— E o que aconteceu?
— A revolução plebeia.
— O que quer isso dizer?
— A democracia generalizada.
— Não percebo.
— O acesso das massas às tipografias, o fim dessa instituição adequadamente elitista que eram as editoras, a Chiado e a consagração da vida sem-vergonha, uma sucessão histórica de factores como quando os astros se alinham para ditar os augúrios, determinar as pragas.
— As editoras deixaram de se interessar por si?
— Eu deixei de me interessar por elas. E pelos leitores.
— Síndrome de Bartleby?
— Pensei que não percebia de literatura.
— Menti. Leio umas coisas, de vez em quando.
— Leu Vila-Matas.
— Não, li uns artigos onde se falava nisto. Achei adequado mencioná-lo.
— Um homem de recursos teóricos, apesar de tudo.
— Interessa-me o tema.
— O da renúncia?
— Já que põe as coisas nesses termos…
— Nesse caso, veja-me como uma espécie de paradoxo. Renunciei à literatura mas vim tomar posse da herança, veja lá. Se calhar não é um paradoxo, mas uma redundância. Uma dupla queda. Será que tomar posse da herança foi uma forma de sublimar a renúncia à poesia?
— Perturba-o essa possibilidade?
— Não! Encanta-me.
— É um provocador.
— Não, sou um homem angustiado.
— Não parece.
— Finjo.
— Como o poeta.
— Arrgh! Dispensemos evocações dessas.
— Desculpe, não resisti.»


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