segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Mosquito

Descobri hoje que o zumbido que há dois dias me trazia a suspeitar de um curto-circuito em qualquer ligação da parafernália electrónica da sala era, afinal, o insecto que a meio da semana tinha resolvido aborrecer-me marrando contra o ecrã e fazendo-me tangentes às orelhas. Fui encontrá-lo num recanto, rodopiando de pernas para o ar, versão minúscula, capotada e igualmente pertinaz de um nazi atolado na estepe. Ao contrário do que aconteceu no nosso primeiro encontro, em que sem sucesso fiz das mãos raquetes, agora ajudei-o a pôr de novo os seis pés na terra, como, humanamente, teria feito com Gregor Samsa. Daqui a pouco, se entretanto recobrar energias, há-de vir de novo ao encontro da luz e de encontro a mim. Não faz mal. Prefiro a dignidade e o risco de um combate corpo-a-corpo do que a crueldade de deixar sem auxílio um ferido de guerra. Ele certamente ter-me-ia deixado morrer de fome e sede, se calhasse ter sido eu a ficar esperneando de costas depois do match de quarta-feira. É isto que nos separa, ao mosquito e a mim, esta réstia de humanidade que me faz ter pena até de um empedernido votante de Trump ou de um colunista do Correio da Manhã.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Reflexão pós-eleitoral

Se todos lêssemos o Correio da Manhã saberíamos que o mundo é um lugar de feios, porcos e maus e escusávamos de alimentar a ilusão de que pudesse ser diferente. É isto, em suma, o que a direita tem para oferecer como reflexão pós-eleitoral.

http://corta-fitas.blogs.sapo.pt/as-sondagens-os-jornalistas-e-a-6442338

P.S. Não deixa de ser divertido notar que os colunistas do Correio da Manhã passam bastante tempo, não a escrever para os leitores do Correio da Manhã, mas para os que acusam de não lerem o Correio da Manhã. O que é indelicado e tonto. Indelicado para os seus interlocutores naturais (o cidadão comum, leitor do jornal) e tonto porque supostamente o alvo dos seus recados não lê o jornal onde eles os deixam. Não é bem escrever para o boneco, é o reconhecimento involuntário de quem também eles não são como o cidadão comum e as suas crónicas ali são um equívoco ou uma contradição.



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A Conspiração Contra a América

Em A Conspiração Contra a América um fascista é eleito presidente dos Estados Unidos. Se já parecia improvável ver Philip Roth escrever uma distopia, é uma surpresa triste que tenha escrito uma premonição.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Alegria na destruição

O afã e a alegria que os trabalhadores aplicam no seu trabalho de frívola remodelação da agência bancária — com largos sorrisos, gargalhadas, palavras de incentivo e energia nos martelos com que deitam abaixo divisórias, tectos falsos e condutas — parece um estado de espírito transmitido pelos CEOs do banco. Alegria na destruição. Não há como um face lifting para equilibrar as contas.
Talvez não seja nada disto, os rapazes são novos, demolir aquece-os e diverte-os, como acontece com as crianças que há em nós. O meu cinismo em relação aos bancos é que está, desde 2008, ao nível habitual do de um CEO do Goldman Sachs em relação aos cidadãos comuns.

sábado, 5 de novembro de 2016

O candidato da infâmia

Não vejo nenhuma razão objectiva para achar que o género de suspeitas, indícios, argumentos ou raciocínios que aparentemente concluem pela índole corrompida de Hillary Clinton não se aplicam do mesmo modo a Trump. Acontece que o que sobra para fazer a diferença entre os dois é tão, tão óbvio e extenso que resulta patético alguém acreditar que se mantém decente defendendo a hipótese Trump.
Aos americanos na terça-feira até pode não restar mais do que escolher o mal menor, mas desta vez ter dúvidas sobre qual é o mal menor é sintoma de muita confusão mental ou genuína imbecilidade.
Há os que, na América e na Europa, não têm dúvidas e votam (ou votariam) Trump simplesmente porque têm o mesmo carácter doentio do candidato republicano. São um lastro que a humanidade sempre arrastará, não haja ilusões.
Mas dentro dos convictos há ainda os que escolhem Trump por capricho ou mero e abjecto calculismo, ideológico ou outro. São os mesmos que, em nome de uma bandeira, de uma birra, de um ressentimento ou de um interesse, não se importam de experimentar hipóteses trágicas porque pressentem que o resultado não os incomoda pessoalmente. E, como a história da infâmia nos ensina, nisto têm demasiadas vezes razão.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Bancos e cadeiras

Uma agência do banco Millennium está a livrar-se do mobiliário, não sei se porque o banco faliu (não tenho visto notícias) ou se porque estão em processo de lavagem de cara, como os bancos costumam fazer com frequência. O mobiliário está em óptimo estado, e no entanto está a ser carregado para uma camioneta de caixa aberta — em dia de chuva. Não é provável, portanto, que se destine a reaproveitamento. Já se sabe: os contribuintes pagam os problemas financeiros que os bancos arranjam, pagam os salários e prémios milionários dos gestores bancários (mesmo dos que falham clamorosamente na gestão e nunca devolvem os prémios) — podem, por isso, naturalmente, pagar a redecoração dos bancos.
Imagino que os acólitos do sistema financeiro também tenham uma boa justificação para este comportamento. Têm sempre. No Titanic talvez tenha havido quem defendesse que o ângulo de inclinação do convés não era um sintoma, mas uma característica da embarcação que no final revelava os seus benefícios para todos (banho grátis, por exemplo).
A mim dava-me jeito uma daquelas cadeiras, mas suponho que qualquer lixeira a céu aberto é mais bem vista e tem mais crédito do que eu junto dos bancos.