quinta-feira, 21 de maio de 2015

Silvano, o profeta

«Há um profeta no Seixo, disse Eurico, levantando-se para encarar os campos que os separavam da aldeia. Ninguém que seja de levar muito a sério, apenas um tipo louco que escolheu uma vida original. Habita uma cabana tosca lá em baixo, depois da curva do rio, comendo o peixe que pesca e as ofertas piedosas da aldeia, onde sobe uma vez por semana. De vez em quando vai pelas terras em volta, de porta em porta, como os apóstolos, de Bíblia na mão. Tem uns longos cabelos negros, barba, é magro mas musculado e veste sempre pouca roupa, mesmo no Inverno. Os mais supersticiosos não deixam de se benzer quando ele aparece. Se não o conhecessem jurariam que se tratava de Jesus Cristo, Ele próprio, e alguns ainda esperam, sem o confessarem, que um dia algo de maravilhoso se revele nele. As mulheres suspiram, e entre elas falam do desperdício que é um homem daqueles, bonito como o Errol Flynn, ter-se perdido assim.
Houve alturas em que esteve para ser morto, abatido a tiro como um javali, ou à sacholada como uma víbora. Nestas terreolas os homens saem cedo, para a lavoura, e só as mulheres ficam em casa. À hora a que o Silvano (é este o nome dele) chega para a sua pregação só as encontra a elas. Ele fala baixinho, com afabilidade e extrema educação (estudou) e é de facto uma pessoa com bom coração, cheia de amor pelo próximo, como manda a Bíblia. Seduz, para dizer tudo numa palavra. Se fosse um caixeiro-viajante ninguém duvidava que os seus modos não passavam de uma táctica para vender as bugigangas que trazia na mala e sabe-se lá para que mais. Mas ele só fala de religião, de praticar o bem, de confessar e perdoar os pecados e coisas assim. Seja como for, por essas ou outras razões, é bem recebido, as mulheres gostam de o ouvir e perdem um bom tempo com ele, a suspirar, enlevadas num bem-estar místico, a darem-lhe as mãos a beijar, por vezes. E isto nem sempre agrada aos maridos, aos mais ciumentos, que vêem naquela catequese, reprovada pelo padre, uma maneira de serem desprezados pelas mulheres, e às vezes pior do que isso. O que lhe vale, ao Silvano, é não fugir, dar sempre a outra face. Se se acobardasse um bocadinho quando eles chegam com as fúrias e desatasse a correr pelos campos a segurar os seus andrajos, já teria, talvez, levado com chumbo nas costas. Assim, exaspera os homens — que lhe invejam a figura e a bravura —, mas ao mesmo tempo intimida-os, com o seu olhar bondoso de santo no altar. Duma forma ou de outra, sobreviveu até hoje.»

in Hotel do Norte

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Granta


Em Maio de 2003 publicávamos na Periférica uma crónica de Ian Jack, então editor da Granta, e uma entrevista que lhe fez o jornalista Justin Webster. Na altura o céu era o limite e com muita lata e alguma ajuda conseguíamos para a revista matérias e colaborações por vezes um pouco surpreendentes. Na verdade, nenhum de nós conhecia muito bem a Granta, o Fernando fizera recentemente uma assinatura, lêramos umas coisas sobre ela, il padrino Rentes de Carvalho aconselhara-a, percebíamos a sua importância e influência, gostávamos daquilo do “new writing”.
Desde então a vidinha impôs-se e a fanfarronice moderou-se. A Periférica acabou. A Granta deixou de ser exclusivamente inglesa e ganhou edições em 12 países, um dos quais este remorso de todos nós.
Doze anos depois, o número 5 da Granta lusa publica um texto meu — e tem a festa de lançamento na Rua do Alecrim a 27 de Maio, o mesmo dia em que, em 2003, fazíamos no Chiado o lançamento da Periférica n.º 5.