quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O direito à poligamia

Decerto com razoável ironia, o escritor Nick Hornby propôs algures que se devia queimar os livros «complicados». Esta é daquelas frases que dão jeito a um provocador e está de acordo com o zeitgeist comercial, numa altura em que há empresas que não se importam de lançar e depois retirar compungidas do mercado produtos politicamente incorrectos porque sabem que a visibilidade concedida pelo “escândalo” lhes acabará por trazer lucros. Ainda que aqui não haja necessidade de Hornby se vir a queixar de citação fora de contexto: a sua afirmação tem tanto de provocador como de banal. Muitos disseram o mesmo, por aquelas ou outras palavras, e vários deles eram também escritores, ou coisa aproximada.
O El País, que traz a notícia e fala da repercussão que terá tido aquele fait divers literário, dá-se contudo ao trabalho de coligir uma lista de 10 livros que «carregam o estigma (muitas vezes injusto) de serem inacabáveis», por gigantismo ou ilegibilidade. Vai de O Arco-Íris da Gravidade a A Piada Infinita, mas passa por Crime e Castigo e Guerra e Paz. Isto é ir um bocadinho mais longe do que se atreveria José Rodrigues dos Santos, e o artigo mistura, com certa tontice, a suposta complexidade com o tamanho dos livros.
Teremos, portanto, duas razões, nem sempre acumuláveis, para queimar livros: a dificuldade de leitura que eles oferecem ou o número de páginas que os constitui.
Reparem que nenhum dos escritores citados na peça, Nick Hornby ou Kingsley Amis, teve a franqueza de Fernando Pessoa, nenhum defende que pura e simplesmente se não leia. Não. São (ou eram) escritores: naturalmente não querem afastar a clientela (pelo contrário, como se verá adiante). Consideram a leitura importante, claro, ou uma interessante «actividade hedonista».
No que toca ao tamanho dos livros, a estigmatização dos grandes é estulta, se tivermos precisamente em conta o prazer da leitura: o que importa ler dez novelas ou um só calhamaço, dez autores ou um só escritor, se o objectivo é o prazer que tiramos do exercício de ler? Eu, por exemplo, e pensando só no prazer, trocaria de bom grado uma dezena de livros menores que li por um novo tomo de A Piada Infinita. Ganharia, entre outras coisas, novidade e variedade, tudo num só livro, vejam só.
De resto, para escritor, aquele Hornby parece ter um medíocre conhecimento da natureza humana. Ignora que, nos prazeres literários como, digamos, na culinária, os seres humanos são diferentes?
E vamos ao argumento da complexidade. É claro que há gente que lê ou diz ler destas obras «estigmatizadas» para poder fazer alarde de superioridade intelectual ou para seguir, por pretensão, o mais exigente cânone. Eu li o Ulisses em bicos de pés e pouco percebi dele na altura, mas não me arrependo de ter seguido a via pedante (se quiserem) em vez da via pirómana. Acredito que, neurologicamente, duas pessoas diferentes possam sentir o mesmo grau de prazer a ler o supra-referido dos Santos, por exemplo, ou o falecido Wallace, mas desconfio que o cérebro do leitor que lesse o segundo sairia bastante mais colorido e refulgente de uma ressonância magnética. E eu não vejo, com franqueza, razões para se preferir levar para casa imagens de um blackout quando se faz uma IRM.
Tirando Philip Roth — que chegou ao ponto de desaconselhar a leitura tout court mas porque, bem sabemos, decidiu deixar de escrever —, o aprendiz de Torquemada que manda queimar livros alheios está, geralmente, com consciência disso ou não, a ser juiz em causa própria, a autojustificar as suas opções enquanto escritor, a puxar a brasa à sua sardinha literária, a defendera a sua bancazinha no mercado livreiro. Adicionalmente, mostra que, por infelicidade, o ter-se tornado escritor não preservou o leitor que eventualmente havia nele. É que nenhum leitor verdadeiramente interessado na leitura (ou viciado na leitura, se quisermos continuar nas metáforas hedónicas) escolherá ou rejeitará um livro pelo seu tamanho, ainda que possa ter o seu próprio calendário de leituras e tendência a postergar indefinidamente luxações nos pulsos.
Nick Hornby diz, e nisto tem razão, que «de cada vez que continuamos a ler sem vontade reforçamos a ideia de que ler é uma obrigação e ver TV um prazer». Mas um escritor com alguns conhecimentos de sociologia, psicologia, neurologia ou o diabo a quatro e que apreciasse a diversidade humana talvez não devesse ignorar que se pode não ter a menor vontade de ler o mais fininho dos livros de JMS (J), se ele algum dia escrever um à sua imagem, e encontrar em cada magra página um trabalho de Hércules. Num mundo em que o cânone excluísse livros complicados e/ou grossos (e esse mundo já está aí), haveria sempre gente a reconhecer que prazer é ver TV.

A redutora imagem da humanidade implícita numa condenação dos livros «excessivamente complicados» é, insisto, apologia de uma escola ou da obra própria. Infelizmente, uma parte dos escritores não resiste a esta tendência, e é por isso que tantas vezes ler-lhes as entrevistas se torna penoso. Detesto escritores possessivos, que me queiram só para si. Enquanto leitor, reclamo o meu direito à biodiversidade — ou à poligamia, para regressarmos ao prazer.

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