segunda-feira, 15 de setembro de 2014

13/9 ou a arte de procrastinar resolvendo sudokus

Gostaria de poder dizer que sou um daqueles procrastinadores que o filósofo John Perry considerou “produtivos”, aqueles que enquanto adiam indefinidamente uma tarefa realizam muitas outras igualmente importantes. Não sou. A não ser que se considere importante resolver sucessivas colectâneas de Sudoku Master.
A minha pilha de livros para ler só não aumentou porque desde que há crise quase não tenho comprado livros. Em contrapartida, a minha pilha de livros por escrever aumentou consideravelmente. Não porque ande a coleccionar apontamentos de ideias para romances ou ensaios (o sudoku não me deixa tempo para isso), é só a idade a acumular-se sem que daí resulte obra.
Para bem da minha sobrevivência física, sou tecnicamente incapaz de procrastinar no emprego (qualquer coisa genética, herdei do meu pai isso e a rabugice). É só ao chegar a casa que adopto o hedonismo pessoano de ter um livro para ler (ou escrever) e procrastinar. A coisa está tão grave que já não compro o Público ao fim-de-semana, como antes, por causa do Ípsilon, da Fugas ou da 2, mas porque é nesses dias que saem os sudokus de maior grau de dificuldade (que naturalmente me farão perder mais tempo).
Nem me posso defender dizendo que a ginástica dos números me foi prescrita pelo meu intelectual trainer: passar a noite naquilo não me põe mais ágil na tabuada (continuo bastante dependente da calculadora) e definitivamente não acordo com a mente mais preparada para as obrigações do dia. Procrastinar por interpostos sudokus é antes um vício tão alienante como a coca. O hábito poderia ter-me sido prescrito, isso sim, pelo meu psicanalista, com o intuito de me fazer limpar a mente depois de dias intensos de trabalho (como faz o resto dos portugueses, submetendo-se ao brainwashing da TV). Ou melhor: a sudokumania é coisa que recomendariam no Conde Ferreira ou no Magalhães Lemos: terapia ocupacional para distrair os malucos de fazerem maluquices. Sim, que disparates não teria eu escrito se não tivesse passado o Verão a preencher números em linhas e colunas?

Quando terminei de escrever Os Idiotas (que, a propósito, fez sexta-feira um ano e é a única razão para ter escrito este post), senti que tinha finalmente atingido a maturidade, estava pronto para ser o Wallace português (ou o Franzen, pronto*). Mas senti também que a probabilidade de falhar nisso era muito, muito grande. O sudoku, temo bem, é apenas um dos meus álibis para não arriscar falhar.
* Também gosto de passarada e na verdade não sou lá assim muito de notas de rodapé.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O regresso da cantora careca


Ontem e hoje assisti no Youtube a dois regressos: U2 e Sinéad O’Connor. Sendo um genuíno filho dos eighties, não fico indiferente a notícias que se relacionem com gente desta. Mas ouvi com total indiferença a “nova” música dos U2 (indiferença não, um tédio assassino) e com bastante curiosidade a da Sinéad. “Take Me To Church” entusiasma, raios!, apesar do final fraco e de a imagem da cantora, pareceu-me, não ter escapado ao Photoshop, ou ao equivalente em vídeo ou maquilhagem.
Nos últimos anos, sempre que calhava cruzar com Sinéad O’Connor no Youtube, assistia com certo embaraço (e desapontamento) a entrevistas um pouco constrangedoras de uma senhora de meia-idade desnecessariamente gorduchita, notoriamente aborrecida e até ressentida por estar a dar entrevistas ou a apresentar canções, quezilenta, a responder com dissertações esotéricas ou implicativas, desagradáveis, a questões banais sobre a sua música. O anjo que conhecêramos quando adolescentes lamentavelmente desaparecera sob o diagnóstico de distúrbio bipolar que Sinéad um dia revelara de si mesma. A cantora careca — pensava eu, definitivo —, envelheceu mal.
Mas o adulto que agora somos compreende na pele isso de envelhecer e aprecia novos fôlegos do talento, mesmo que breves e isolados, quando os ouve. Era este o meu espírito quando, espevitado pelo vídeo, fui espreitar o álbum completo (“I’m Not Bossy, I’m The Boss”), disposto a perdoar aquilo do Photoshop. Mas eis que, junto com várias outras canções bem inspiradas, no lugar de um anjo caído deparo com uma gloriosa Fénix. (Depenada, é certo — mas neste particular quem esperaria outra coisa?)
Os vídeos de entrevistas e concertos que agora me surgem nos lugares cimeiros do Youtube mostram uma Sinéad O’Connor coberta de hieróglifos e Cristos de Cecilia Giménez, sim, mas de novo elegante, simpática, comunicativa, assertiva, aguerrida, coerente, bem-disposta, exibindo empatia com o público e os entrevistadores. A interpretar com gosto as suas mais recentes canções e a emocionar o público e os voyeurs do tube.
A Wikipedia diz que a cantora já há uns anos tinha desmentido o seu próprio diagnóstico de distúrbio bipolar, mas isto não me parece credível. Por definição, o novo momento da cantora desmente-o, aliás. O que me parece é que, para bem de todos os fãs, finalmente alguém acertou na medicação. Passem a receita ao Bono.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O apêndice marital

É tristemente irónico que Siri Hustvedt, escritora de talento, erudição e densidade intelectual, com obra e reflexão sobre preconceito de género, seja apresentada em Portugal como esposa de Paul Auster. Percebo o atractivo comercial da informação, mas, quatro livros depois — o penúltimo intitulado “Verão Sem Homens” e o último versando sobre «os preconceitos que imperam no mundo da arte» — quatro livros depois, perturba que a D. Quixote continue a incluir nas badanas o apêndice marital. Quantos escritores masculinos são apresentados como maridos de não sei quem? Eu, se fosse a Siri Hustvedt, mandava passear a D. Quixote no próximo livro. Se a editora não consegue vender-lhe as obras pelo mérito ou se os portugueses não as compram senão pelo popular marido, não a merecem. E, claro, não a entendem.

Os homens sobre as mulheres

Noto como intelectuais, escritores e homens afins se assemelham ao cidadão comum no que se refere a considerarem as mulheres uma coisa à parte (ainda que não exactamente, ou não sempre, com um intuito discriminatório).
Quando denunciam a seu espanto, a sua estranheza, a sua admiração, a sua permanente perplexidade com as mulheres parece-me que estão, com frequência, a revelar o quão pouco ou distantemente convivem com a variedade feminina.
Não há isso de as mulheres serem assim ou pensarem assado. As mulheres não são um grupo homogéneo, como os homens o não são. Não são mais agrupáveis entre si do que com homens. É possível agregar pessoas por graus de afinidade psicológica, mas disso não resulta que tenhamos mulheres aqui e homens ali.
Quando Pedro Mexia escreve que «o gosto das mulheres nem sempre é compreensível, mas raramente é infundado» não está (e ele sabe disso) a falar das mulheres, mas de algumas mulheres, daquelas que lhe são próximas, física, intelectual, ou, diria, oniricamente.
Quase tudo o que os escritos masculinos sobre mulheres dizem pode ser aplicado com propriedade — e não necessariamente com promiscuidade — a uma quantidade não desprezível de homens. As mulheres são apenas, tradicionalmente, convencionalmente, o outro mais confortável para a discorrência masculina. (Não raro são o biombo de outro outro, mas isto já é derivar.)
Séculos de confessionalismo masculino sobre as mulheres resultaram nisso a que também se chama poesia, uma espécie de obscurantismo de divã que, em obediência a uma teoria institucional da arte (masculina, naturalmente), foi como arte validado.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão

«Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão e não sei bem o que fazem os putos no Verão. Talvez ainda joguem às cartas, mas para o Patinhas já não têm tempo. Fico às vezes a vê-los, todos iguais, como clones saídos de uma máquina que tivesse sido inventada para fazer face à crise demográfica. O mesmo cabelo cuidadosamente despenteado, os mesmos ténis de marca, as mesmas t-shirts, as mesmas calças de ganga pré-rotas — porque eles já não rompem os seus próprios jeans, não os vestem durante tempo suficiente para que eles se rompam, têm de os comprar previamente esgaçados. É a geração MTV, diz-se. Mas pergunto-me se a nossa não era também uma geração qualquer coisa — pós-punk, new wave, dos primórdios do videoclip, ou ainda não isso, a geração jornal Sete, algo do género. Seja como for, quando se é adolescente sente-se uma necessidade grande de copiar, e nem sempre se copia o melhor ou o mais adequado. Sabemo-lo quando regressamos de uma desintoxicação e temos a certeza que vamos recair, porque algures lá atrás experimentámos qualquer coisa que era imensamente fixe mas trazia inclusa a receita da nossa destruição.
Os montes em Aranda ardem com admirável regularidade e o vento percorre o vale como se soprasse num túnel. Nessas alturas recebemos na cara o seu bafo quente, impregnado de cheiros, e eu por vezes penso em corpos cremados, milhares de fantasmas arrancados do solo, e é a energia deles que nos toca, são as cinzas deles que vemos cair no chão da varanda, as suas memórias que nos visitam e avivam as nossas.
Passaram três carros particulares para o hipódromo, mas foi o táxi o que mais me intrigou. Um perfil, um rosto, os cabelos ondulados. Era uma lástima que não pudesse distinguir-lhes a cor, a cor dos cabelos, como tinha sido uma lástima deixar de ver o casaco vermelho do Tio Patinhas, o dólman azul do Pato Donald, a camisola amarela do Peninha, a laranja do Pateta, as penas verdes do Zé Carioca, toda a paleta viva saída dos lápis de Walt Disney.
A cor era uma das componentes das trips: voltávamos às drogas também pelas explosões de cor, pelas cornucópias e espirais psicadélicas, os abismos e túneis curvilíneos, labirínticos, os milhares de cintilações e raios, um firmamento extático que a natureza não podia copiar, porque com as cores vinham sensações físicas fabulosas, elas agiam como agulhas na acupunctura, cada cor o seu prazer; e não havia tempo, ali, cronologia, era um hiato infinito. Não tínhamos como saber que as visões fantásticas que desfrutávamos eram o nosso próprio cérebro a explodir, os neurónios que queimávamos, a fissão das sinapses. Andávamos nos ácidos e chutávamo-nos para ver por dentro o fogo-de-artifício na nossa cabeça e não o sabíamos; o cavalo era o bilhete que comprávamos para assistir ao vivo e em directo à auto-destruição da mente.
Depois veio uma tarde como esta, à varanda, Verão, a nostalgia benigna de mergulhar numa aventura do Tio Patinhas. E as cores a esbaterem-se, a desaparecerem, como se alguém tivesse escolhido a opção transformar em escala de cinza do Photoshop. O universo Disney a preto e branco, como algumas histórias em certas edições mistas. Mas não adiantava virar as páginas, avançar ou voltar atrás até aonde havia cor; de repente toda a edição estava descolorida, a própria capa, em papel brilhante, plastificado, era cinzenta.
Talvez não tenha sido assim de imediato, talvez eu tivesse perdido as cores de forma progressiva. Como o cabelo: não recordamos cada centímetro que ele cresce, mas sabemos, na altura de o cortar, que um dia o tivemos curto. Ou, se formos carecas, não recordamos a queda, mas a cabeleira que deixámos de ter. No entanto, é desta forma que eu lembro as coisas, num momento o mundo era normal e no seguinte parecia um filme do Frank Miller, redundante como um filme de Frank Miller. A vida já era suficientemente soturna, não havia necessidade de sublinhar o facto com o preto e branco. Eu percebo que os espectadores dos filmes precisem de uma representação gráfica da atmosfera para melhor entenderem a ideia, mas eu não era um espectador, não observava de fora.
Acromatismo. Havia os daltónicos, que confundiam o verde com o vermelho — coisa chata em dia de derby desportivo ou quando se esquecia a ordem das luzes num semáforo — e havia eu, um caso extremo e raro de discromatopsia. Não era apenas estar na merda, olhar em volta e ver tudo cinzento como num dia de chuva. Não era alucinação, supondo-se que há alucinações descoloridas. Não era passageiro. As substâncias químicas têm destas coisas, ninguém sabe muito bem o alcance dos seus poderes, como algumas personagens da Marvel. Um dia salvam a humanidade de ameaças terríveis e no seguinte caem em desgraça e destroem tudo aquilo em que tocam. Eu conhecia (e apreciava) enredos destes — não contava era ser vítima de um deles.
Ruivos. Adivinhei-os ruivos, aos cabelos que passaram na parte de trás do táxi. Tão ruivos que evocavam os montes em chamas de Aranda e tão ruivos que me doía a alma por não os poder já ver desta forma.»

Pedro, in Aranda