sábado, 4 de janeiro de 2014

Depois da freira, os élderes e os reis

Depois da minha boa acção com a freira de ontem, tocaram-me à porta dois simpáticos élderes (por estes dias as pessoas são todas simpáticas para mim, coração de queijo amanteigado). Para quem não saiba, elder não é nome, é cargo, função; os rapazes da gabardina e da gravata com ar anglo-saxónico, mesmo quando escuros de pele, são presbíteros de um dos ramos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a IJCSUD para os amigos. Tocarem-nos à porta para falar de Cristo é tão legítimo (ou mais) quanto os bispos católicos terem freiras que lhes fazem as compras.
Adiante.
Eu queria ignorar os sinais, mas hoje tocaram de novo à campainha e eram os Reis Magos. Ou alguém em seu nome. No caso, uma anciã com ar de pedinte e voz de grafonola enferrujada. Não percebi a letra, mas a toada era vagamente típica das janeiras. Também podia ser uma canção de embalar — a senhora encostava-se de olhos fechados à parede, reparei enquanto espeitava pelo olho-de-peixe. E só não dormia porque a pandeireta que abanava nas mãos não deixava dormir ninguém, nem a própria. Cínicos dirão que se pode ser indigente mas não tem de se ser estúpido. A senhora terá percebido nas tradições cristãs uma forma de variar a sua abordagem à clientela piedosa. Ou então era apenas alguém com idade suficiente para ter saudades de ir por esses quintais adentro e, não tendo companhia para o caminho, resolveu tirar a pandeireta do prego (sem metáforas) e aclarar sozinha a garganta. Sem sucesso, nesta última parte.
Para mim, contudo, ela faz talvez parte de um teste ou é sintomática da forma trôpega que o altíssimo tem de abordar as pessoas. E, se foi teste, eu falhei. Aos élderes ainda retorqui simpaticamente que compreendia o ímpeto missionário deles (de resto, premissa cristã que os católicos não cumprem), mas me considerava servido no que tocava à palavra de Deus. Se estivessem a fazer entrega de hambúrgueres, talvez pudesse ficar com um para mais tarde. A ela, à janeireira, não abri a porta, considerando cobarde e abusivamente que a caridade da vizinha da frente representava todo o condomínio.

Deve haver uma lógica nisto. Enviesada, claro, mas sabemos que Deus escreve direito por linhas tortas. Ou vice-versa, já não sei. Freiras, presbíteros, reis magos… Alguém lá em cima quer falar comigo e não tem o meu número? Falem com a NSA, caramba. Estou no Skype, se for preciso olhar nos olhos.

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