quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Perder tempo

Uns vinte anos depois de ter pousado a viola-baixo, dei por mim na última madrugada a assistir online a lições sobre matérias prementes como walking bass lines, slap e the secret triplet (admirável técnica), ministradas por um tal Scott Devine. Não tenho qualquer intenção (ou esperança?) de voltar a pegar na guitarra e as tarefas que nos próximos tempos me esperam não convivem bem com este diletantismo fora de horas. Acresce que, tirando certas facetas parvas do emprego, todas as tarefas que me esperam têm a particularidade de serem prazerosas — ou necessárias, úteis e prazerosas — e envolvem livros.
Porquê então esta tendência para a perda de tempo? Racionalmente, não comungo da definição de liberdade expressa no poema de Fernando Pessoa (Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer! / Ler é maçada, / estudar é nada. / O sol doira sem literatura.) Emocionalmente, também não, já que o meu prazer mistura o sol, a brisa, o rio, a bruma, danças, flores, música e luar (passo as crianças) com livros.
É isto uma manifestação de irreprimível curiosidade? De fome de conhecimento? Ou uma forma velada de descer à franca humanidade dos que passam os serões e as décadas vendo novelas, futebol ou reality shows como se não houvesse outro sentido para a vida?
Vou por esta prova de fraqueza, da minha iniludível pertença ao género humano. Uma parte de mim também desiste a espaços perante o absurdo de uma existência efémera. Para quê fazer um gesto que nada muda se podemos ficar simplesmente à espera?

Ou talvez não, talvez isto seja apenas um problema de gestão da curiosidade. Lembro-me agora que depois dos vídeos, já se descarregavam as hortaliças no mercado, ainda fui perceber a razão por que o baixista Devine tocava com luvas. Distonia Focal, descobri, uma doença neurológica que afecta um músculo ou conjuntos de músculos e causa espasmos involuntários. O uso de luvas de seda (terapêutica chique, de ambivalente delicadeza) altera a sensibilidade e engana os neurónios avariados, bloqueando as contracções.

Descoberta útil, não? Não?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Padrinho

Na Periférica, a coluna de J. Rentes de Carvalho tinha o título deste post. Todas as rubricas eram na revista nomeadas a partir de filmes e a sugestão de O Padrinho para a crónica dele foi absolutamente incontroversa — não sendo a boutade o argumento principal, já que em rigor não havia uma boutade no título.
Mais de uma dezena de anos depois, aquilo de sábado na Traga-Mundos não foi bem um debute, uma entronização que JRC apadrinhasse. Foi um reencontro afectivo. De vez em quando, para revermos amigos, para podermos ter aquele abraço reconfortante, para recebermos a bênção balsâmica de um patrinu, de um pater, temos de trocar as voltas à vida, criar situações onde tal possa ocorrer. No sábado, todos (até eu) exagerámos dizendo que estávamos ali a propósito d’Os Idiotas — mas ninguém escondia com muita convicção que estávamos ali para recebermos afecto e um pouco daquela espantosa energia vital de Rentes de Carvalho.
Il padrino, pelo seu lado, não foi avaro, foi aliás desmedido — para meu embaraço. O texto com que se prontificou a participar na instrumental apresentação do livro, o trecho que se me refere, deve por isso ser lido apenas como uma enorme e paternal demonstração de generosidade.

(Texto da apresentação aqui ou aqui.)

sábado, 26 de outubro de 2013

Diz que há vinho

E pronto, é hoje. Quem quiser conversar sobre idiotas comigo e com Rentes de Carvalho, apareça às 21h30 na Traga-Mundos. Diz que há vinho.
(Os que estão longe, não se impacientem, novas apresentações serão anunciadas já, já.)

(clique para ampliar)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Da praxe no parque à escatologia: ensaio taxonómico sobre a academia

A propósito de uma sucessão de casos, ou antes, da cobertura jornalística de casos de francos excessos nas praxes académicas, e em sequência de uma débil pressão social ou de uma réstia de escrúpulos, algumas universidades lá assumiram que lhes cabiam desempenhar um papel, não exactamente na formação de carácter dos seus alunos (não exageremos), mas de moderação da selvajaria. Passaram a existir regras um pouco mais restritivas para a praxe em alguns campus. Como em certas cidades mais progressivas do farwest, os alunos foram convidados a deixar as armas no portão. Se querem brincar aos índios e cowboys, que o façam lá fora. A academia nada tem contra os tiroteios e a caça ao escalpe — desde que essas românticas actividades ocorram extramuros.

E também assim a academia volta as costas à comunidade, ao mesmo tempo que renega as suas incumbências fingindo que a sua jurisdição sobre o estudante é limitada pela vedação do campus.

Os grupos de praxe, aliás, parecem não caber no âmbito jurisdicional de nenhuma instituição, civil ou uniformizada. Desde que notoriamente envolvidos — quer como vítimas, quer como algozes — nessa fundamental ocupação dos vinte anos que é a praxe, é-lhes passado um livre-trânsito, uma espécie de carta de alforria para a ignomínia e o vandalismo, sem limitação de decibéis.

Se você, caro cidadão, dando-lhe na veneta, resolvesse, como por aqui se faz, chafurdar ou fazer bodyboard na relva húmida de um parque até transformar o círculo do seu enchafurdamento num lamaçal, ou arrancar, com sequelas para o futuro botânico do sítio, qualquer vestígio de relva no percurso do seu reiterado deslizamento, provavelmente teria um funcionário municipal ou um agente da autoridade a censurar-lhe o comportamento (por mais genuinamente divertido que você estivesse) e a sacar do bloco de multas para lhe pedir contas. Tratando-se de grupos de praxe, as instituições do Estado quando muito abanam a cabeça com aquela indulgência que se oferece às crianças e aos malucos da terra.

Tempos houve em que as cidades médias viam no estudante universitário a galinha-dos-ovos-de-ouro e temiam incomodar a debicante espécie com os seus escrúpulos e as suas preocupações cívicas (se as tinham). Galinhas desta estirpe, achava a mentalidade mercantil dos burgos, deviam ser deixadas a cacarejar estridentemente antes de cada postura. A caca de galinha com que revestiam abundantemente as calçadas da urbe não devia ser censurada, pois saía do mesmo sítio de onde saíam os áureos ovos. A escatologia era assim preocupação dominante nestas pequenas ou médias comunidades, quer na sua acepção científica (relacionando a merda estudantil com a saúde económica do condado), quer na sua dimensão filosófica (o fim dos universitários era o fim do mundo).

Claro que da ignara e vil burguesia mercantil e das instituições dos burgos, constituídas tantas vezes por meros perus emproados ou galináceos da mesma cepa estudantil, não se esperariam conhecimentos zootécnicos. Era natural que desconhecessem serem inúteis as asas das aves poedeiras e, por isso, desadequado o temor melodramático quanto à fuga das galinhas. Seria talvez uma iconoclastia humilhante e traumática alguém informar as comunidades que os Gallus gallus aureos, vulgo estudantes universitários, arrendariam igualmente casas, se alimentariam quotidianamente e quotidianamente apanhariam pifos mesmo que algumas regras da civitas lhes fossem impostas.

Deve ter sido por isso, para não ferir o frágil amor-próprio e os doces sentimentos das forças vivas das terras universitárias, que a academia se demitiu de lançar luz sobre o assunto. (Talvez também para não melindrar o orgulho arrivista e vindicativo dos progenitores no entremez académico das suas crias.) Ou isso ou as reitorias, em vez de faróis, confundem os seus gabinetes insonorizados e de vistas bucólicas com torres de marfim.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Embirrando com a leitura

Na forma como cita parece revelar-se algo do carácter (ou da formação) de um autor. Leio um ensaio onde as fontes francesas são citadas em francês e as italianas, russas, alemãs e mesmo as anglo-saxónicas são-no em português (quando não também em francês).
Talvez o autor tenha optado por citar as suas fontes na língua em que as leu, é um critério. E, nesse caso, estamos perante um afrancesado, por formação e/ou por afinidade cultural.
Com a minha mania de imaginar biografias, decidi tratar-se de um pavão vaidoso do seu francesismo, do seu domínio da língua de Sartre. Como não tem idade para ser um ex-expatriado ou para se ter formado no tempo em que quase toda a gente em Portugal era culturalmente afrancesada, decido também que viveu em França, nasceu ali, talvez filho de emigrantes orgulhosos da sua (dele) carreira académica.

Assim tomado por esta animosidade ficcionalmente refocalizada, decido que os livros citados no ensaio têm edições portuguesas, que o autor não aplica às fontes francesas o critério que geralmente aplica às russas e às alemãs (citando-as em português) por presunção, gosto ostentatório. E encontro então explicação para a forma arrevesada como escreve o seu ensaio, num português engalanado e hirto: é prosa de calça vincada e gola alta, ou enrolada num cachecol parisiense. Não exactamente elegante — apenas afectada.

Ideologia e competências autárquicas

Já se sabe que para os contribuidores do Blasfémias o Estado devia desaparecer, e nesse sentido é esclarecedora a visão caricatural das competências autárquicas que Rui A. (nome artístico ou timidez juvenil?) apresenta neste post:
«Em vez de tapar os buracos das ruas, licenciar novos prédios*, dar um destino decente ao Bolhão e resolver os problemas do trânsito, o programa da coligação municipal Rui Moreira/PS tem por objectivos “as prioridades que foram amplamente sufragadas pelos portuenses: Coesão Social, Economia e Cultura”. “Coesão Social, Economia e Cultura”? E nas mãos do PS? Tremam, portuenses!»
É generoso da parte do blogger blasfemo confiar os buracos e o trânsito às câmaras (quando lá no íntimo acredita que a iniciativa privada é melhor a repor paralelepípedos e a programar semáforos), mas conceder que sejam necessárias licenças de construção é uma absoluta extravagância da sua parte. E a livre iniciativa? O empreendedorismo sem burocracias? Mais um pouco e Rui A. ainda acha que os mercados devem ser regulados.

* Já agora, num país onde se construiu demais e onde as empresas de construção estão falidas, «licenciar novos prédios» parece estupidez ou utopia — raio de lapso num blogue tão seguro da sua clarividência.

Crueldade instrumental

Eis como numa frase (longa, é certo) se condena a crítica à irrelevância (implícita, mesmo que não conscientemente, fazendo o elogio do marketing):
«(…) embora eu não creia que os leitores deixem de ler os apontados como sobrevalorizados se já gostarem deles nem comecem a ler os subvalorizados só por alguém dizer que lhes deviam prestar mais atenção (…)»*
*Maria do Rosário Pedreira, editora, referindo-se ao célebre dossier do Actual sobre autores sobrevalorizados e subvalorizados.

Apresentação III

(clique na imagem)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

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Livro do dia na TSF

Os Idiotas foi hoje o livro do dia na TSF. Ouça o programa de Carlos Vaz Marques clicando neste link:


http://www.tsf.pt/Programas/programa.aspx?content_id=2316097&audio_id=3475854

«Um romance que surge como a confirmação de um talento já adivinhado por quem o lia na Periférica e como uma revelação para quem só agora venha a descobrir o autor.»

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Más notícias


 A Piada Infinita foi de tal maneira uma leitura fascinante e lúdica que depois desse livro mal tenho conseguido pegar noutros. Acumulo uns seis ou sete na mesa-de-cabeceira, eu que não costumo ali ter mais do que dois: o que leio a cada momento e um qualquer outro que, por piedade a fingir desleixo, fica ali esquecido durante meses numa desistência camuflada de adiamento.

É injusto para os autores terem o azar de surgir na minha lista depois de Foster Wallace.

Meio enganado por uma qualquer referência que li, avancei a certa altura para Cinerama Peruana, convencido que havia ali ecos de A Piada Infinita. Como se usar notas de rodapé fosse suficiente para aproximar os dois livros. Não são próximos. Talvez haja ecos de Bolaño no livro de Rodrigo Magalhães, mas não vi nada de Wallace. E, lamento dizê-lo, a despeito do talento do autor, aborreci-me. Certamente pela enorme sombra que lhe fez a leitura anterior. Mas também um pouco pelo género: aquelas espécie de fábulas eminentemente literárias e literariamente tautológicas não me apaixonam, mesmo quando são assinadas por Borges. Foi para arquivo, a um terço do fim. Decidi ser condescendente comigo mesmo, poupar-me o esforço.

Hoje fui buscar Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer — o que me parece más notícias para os restantes autores da pilha.

«Todos os meninos do papá chegam a presidentes»?

Recensão de Os Idiotas na revista online Rua de Baixo:

http://www.ruadebaixo.com/os-idiotas-rui-angelo-araujo-10-10-2013.html

sábado, 12 de outubro de 2013

Lobbies e doping na genitália alheia

O José Mário Silva diz na sua página de Facebook que «a edição desta semana do 'Actual' é capaz de dar polémica», e acrescenta um link para um post do blogue Bibliotecário de Babel que, dá para perceber, lista os temas da secção de livros do dito suplemento. O problema é que chegamos ao blogue e deparamo-nos com um artigo sobre Viagra.
Num primeiro momento concluímos que é spam ou vírus. Regressamos por isso ao Facebook e espreitamos os inúmeros comentários (de críticos e outros literatos) que entretanto foram surgindo.

Dada a temática e o teor da discussão gerada, ocorrem dois pensamentos: 

a) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker que não tem conseguido entrar no lobby do Expresso.

b) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker com sentido de humor: quando se trata de medir pilinhas, a questão do doping na genitália alheia não demora a chegar.

(Ok, mais tarde compro o jornal para não falar de cor.)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Tontarias

Como posso aspirar a tornar-me um escritor respeitável se ultimamente etiqueto a maioria dos meus posts como «tontarias»?

Entusiamo

O corrector ortográfico do meu Word não está acertado pelo Acordo Ortográfico — está acertado pelo Mia Couto. Quero escrever «entusiasmo» e sai-me «entusiamo», com uma estratégica elisão do segundo «s». Aos outros desacertos o corrector reage sublinhando-os a vermelho. Este deixa-o laconicamente sem marca, esperando que eu dê pelo caso e sobre ele pondere etimologicamente.
«Entusiamo» será assim a fusão de dois termos: «entusiasmo» e «amo». «Amo com entusiasmo», quer certamente o corrector que eu conclua, com romântico exacerbamento.

Ou talvez devamos atribuir raciocínios mais libidinosos ao meu corrector ortográfico e considerar aquele amor meramente carnal, o entusiasmo do domínio da intumescência, acentuado na segunda sílaba.

Moldando o entusiasmo

Senti um entusiasmo inadequado e embaraçoso ao ler que Pedro Mexia escolheria Javier Marias como um dos seus dois favoritos para o Nobel deste ano. O entusiasmo foi inadequado porque o senti de um modo pessoal, como se fosse eu o nomeado. E foi embaraçoso porque pueril, ou melhor, servilmente penhorado. Não que sonhe ombrear com Mexia em cultura e sabedoria literárias, mas escusava de ter acessos de entusiasmo tão obnóxios, tão avassalados por uma lisonja dirigida a um objecto de estima mútua.

Compreendo porém o meu próprio entusiasmo. Não tendo lido muitos títulos de Marias, entre as leituras que fiz estão os três volumes de O Teu Rosto Amanhã, uma obra que só por si vale um Nobel. E a minha satisfação com essa magna leitura tem equivalência em grau à perplexidade de ver os anos passar sem que a tradução portuguesa seja retomada (a Dom Quixote editou o primeiro volume em 2005 e ficou-se por ali).
A relativa ignorância a que obra de Marias é votada em Portugal concede-lhe aos meus olhos (ou aos olhos do meu entusiasmo) uma certa aura de autor de culto. A simpatia pela obra e a sensação de injustiça traduzem-se numa identificação com as suas tribulações e os seus sucessos. Admiração semelhante de outros é sentimento de união, irmana.

Por isso, se o meu entusiasmo não fosse tão voluntarista, perante a referência de Mexia a Marias ter-se-ia manifestado mais dignamente na forma de mero regozijo pelo reconhecimento de um igual. Se as minhas emoções se dessem ao trabalho de se intelectualizarem um pouco, a nomeação de Javier Marias por Mexia seria recebida, adequadamente, com um entusiasmo de classe, de membro de um clube restrito, exclusivo, reagindo ao nome do escritor como ao santo-e-senha do clube. Talvez permitindo-se (o entusiasmo) um sorriso irónico e levar dois dedos ritualizados ao Borsalino.

Mas temo que se derem o Nobel a Javier Marias, Pedro, o meu entusiasmo celebre plebeiamente dedicando aos editores portugueses um daqueles gestos revanchistas de jogador de futebol.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

José Rodrigues dos Santos ou Educação para a modéstia

Educado para a modéstia (a soberba descobri-a por mim mesmo mais tarde, junto com a ironia), fascina-me a forma despudorada como José Rodrigues dos Santos fala dos seus próprios livros. No meu quadro educacional, e se descontarmos as conversas de balneário, a hipérbole reservava-se para os feitos dos outros, se tínhamos a generosidade de os admirar; os nossos tratávamo-los com reserva, rubor e olhos baixos. Por isso, quando leio entrevistas do autor de A Mão do Diabo — presumindo sempre que são registadas fora dos locais onde tradicionalmente os rapazes cotejam as suas galgas —, uma parte antiquada de mim pensa que ele está a falar de livros escritos por outros. Depois lembro-me de certas teorias da conspiração, que metem cálculos de tempo e ghost writers, e por instantes dou-lhes crédito: se calhar está. E assim se compreenderia a enfatuação.

Mas se considerarmos que o entusiasmo de Rodrigues do Santos não resulta de ele se distrair e involuntariamente revelar o seu apreço pelo trabalho dos colaboradores (o que até seria bonito); se considerarmos que ele escreve os seus próprios livros, todos eles, temos então de perceber se a sua arrogância tem a legitimidade da de um Mourinho, por exemplo.
No caso do futebol, estamos dispostos a engolir a bazófia de Mourinho se depois ele ganhar os jogos e conquistar os títulos. Podemos achá-lo um parvalhão emproado, mas é um parvalhão emproado que no fim leva a taça e milhões de euros.
Deste ponto de vista, e embora custe equiparar a literatura a um campeonato de gajos depilados em calças curtas, Rodrigues do Santos está também autorizado a ser um parvalhão emproado — afinal, a sua equipa ganha fortunas e tem já uma série de internacionalizações. E se não conquista as taças literárias é porque elas, anacronicamente, ainda são atribuídas por críticos e júris, não pelo terceiro anel da Luz. (Eis algo que urge alterar.)
Claro que se pode dizer que José não tem um jogo bonito, o seu futebol é tosco, ganha muitos jogos recorrendo à mão de Deus, para baixo todos os santos ajudam, etc., mas no fim do mês lá está ele nos tops e as suas filas para autógrafos, di-lo ele mesmo, dobram esquinas.

Os historiadores do futebol podem argumentar que houve noutras épocas treinadores melhores do que Mourinho e talvez a contabilidade de títulos ainda nem lhe seja inequivocamente favorável, não sei, mas isso importa pouco aos adeptos actuais se ele continuar a vencer. O mesmo se passa com os rodriguinhos de dos Santos: críticos e historiadores (como Rui Bebiano, neste post) podem defender, com razões de sobra, que a entrevista do escritor ao I no sábado foi um «vendaval de futilidade, desconhecimento e espírito mercantil», mas a sua massa associativa (e mesmo hooligans de outros ramos) continuará a dedicar-lhe olas e cânticos épicos.

Para além disso, na mesma entrevista de sábado e antes que a História se pusesse com coisas, Rodrigues dos Santos tratou de a arrumar num só parágrafo. Falando de Equador como espécie de profeta que anunciou os seus livros messiânicos, o jornalista disse: «Demonstrou várias coisas. Que os portugueses tinham disposição para ler um autor português, o que até aí era como o cinema português, de que se fugia. (…) Porque não entendiam, o que era escrito, é a terrível verdade. Os nossos autores eram ilegíveis.»
Diria que nem Mourinho seria farofeiro o suficiente para defender que antes dele não havia futebol, mas talvez Rodrigues dos Santos tenha evocado na sua mente o panteão das letras portuguesas e concluído melancolicamente que não tinha de facto razões para humildade.

Espantou-me, por isso, que noutra passagem da entrevista ele concedesse, acerca de diferentes atitudes literárias, que «umas são tão válidas como as outras». Havia, afinal, uma reserva de modéstia no bravo best-seller. Ou então ocorreu-lhe que também ele poderia um dia querer levar «duas páginas a descrever um armário», como o sádico James Joyce em Ulysses, e mais valia sancionar preventivamente o recurso. Just for the record.

Ou será que temia incomodar uma importante facção dos seus leitores censurando o «exercício de masoquismo» que disse ser ler o calhamaço de Joyce?

Além disso, depois de Dan Brown, o seu catavento literário pode muito bem estar a sintonizar-se nas cinquenta sombras sadomasoquistas de E. L. James. Rodrigues dos Santos tendo prazer a infligir sofrimento literário? Não é impossível.

sábado, 5 de outubro de 2013

Machetada

Provavelmente — e decerto com particular incidência nas últimas legislaturas —, sempre houve gente nos governos com alguma incapacidade para defender os seus currículos. Quer porque eles (os currículos) eram má ficção, quer porque eram facilmente confundidos com cadastros. Mas no governo de Passos Coelho isso parece uma especialidade, uma cláusula. Um tipo põe-se a pensar que, se os lugares de ministro e secretário de estado (ou assessor) fossem a concurso, Coelho mandaria lavrar anúncio no Diário da República com a alínea: «Dá-se preferência a quem tenha rabos-de-palha; da sua elisão trata-se a seguir, com corrector Bic ou Pelikan, depende de quem patrocinar.»

Os currículos de Gaspar e Santos Pereira, bons rapazes e sem mácula no carácter, pertenciam ao lote da ficção, poderiam ter sido escritos por José Rodrigues dos Santos num dia inspirado. O de Relvas também, mas acumulava vilanias. Agora, a ministra das Finanças e o dos Negócios Estrangeiros são o topo hierárquico de uma lista de governantes cujos currículos os habilitam com distinção ao governo passista mas logo depois têm de passar pela lavandaria para serem apresentáveis ao resto do país.

Desde Junho de 2011 há um campeonato para ver quem mente-mais-e-pior e, em simultâneo, tem o raio-de-uma-lata. Os melhores nestas duas disciplinas mantêm-se no governo ad nauseam, até aparecerem cartazes no tour de França e na Estação Espacial Internacional. Só saem quando a sua reputação não se distingue da lama onde nadam.

Maria Luís Albuquerque e Rui Machete estão bem colocados, são esperanças particulares de Passos (o próprio, como se sabe, um peso-pesado da peta, patranha, baldroca, da pantomima e do entremez). E todos somos testemunhas de como eles se têm esforçado, com enorme lata, no campeonato de mentir muito e mal.  Maria Luís tem a desvantagem de ser até há pouco tempo uma desconhecida. O seu currículo, de menor extensão, é mais facilmente arruinável. Já Rui Machete, com aquela longa e velha fama de senador e general na reserva do partido, tem tudo para ganhar a taça. Depois das estratégicas elipses curriculares e das extravagâncias da sua memória, este episódio com a Rádio Nacional de Angola mostra como ele está disposto a tudo.

«Machete: s. m. sabre de artilheiro com dois gumes, faca de mato, viola pequena, cavaquinho.»

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A fé nunca morre

No Blasfémias aproveitaram o rescaldo das eleições para verter mais cera na hagiografia de Vítor Gaspar (1 e 2). Já se sabe, os santos morrem para que a fé possa sobreviver.