sexta-feira, 8 de março de 2013

Delfina (3)

[Uma personagem feminina no Dia Internacional da Mulher – 3.ª parte]

«As instalações sanitárias do Hotel do Norte tinham sido modernas. Agora eram apenas vagamente funcionais, com os canos a soluçar e a água a sair por vezes com um grau de ferrugem muito superior ao que ficava no fundo dos copos que se enchiam na Nascente N.º 1. Delfina tinha bebido ali um copo no dia da chegada, por amabilidade de uma das funcionárias, uniformizada com bata e touca brancas, imaculadas, que procedia à limpeza de fim de estação. Grata pela cortesia, Delfina não suspeitou logo que estava num zoológico invertido. Era a senhora de branco (sentada a um nível inferior ao dos visitantes, uma balaustrada a separá-las) quem parecia numa jaula, mas era Delfina que estava a ser intensivamente observada, era ela a atracção dentro do buvete Arte Nova transformado momentaneamente em pavilhão de zoo, a água como amendoins.
As duas mulheres encontravam-se em situações idênticas. Delfina nunca tinha visto uma campânula de vidro daquelas, cilíndrica, alta, com a água no seu interior a ser renovada permanentemente por jorros vindos das profundezas da rocha, gorgolejando o gás natural que a tornava famosa, as bolhas a surgirem enormes, em ímpetos, e depois desvanecendo-se em miudinhas borbulhas descendentes, lentas. Pelo seu lado, a senhora da touca nunca tinha visto senão em fotos uma pele assim, chocolate escuro moldado ao corpo e às formas voluptuosas de uma mulher jovem e fibrosa. Uma observava a tecnologia e as maravilhas da Metrópole termal e romântica. Outra imaginava-se num daqueles circos que exibem extravagâncias da natureza.
No fundo do copo que agradecera e bebera (primeiro a estranhar o gás e o sabor a ferro e depois com sofreguidão) tinham ficado algumas lâminas pequeninas de ferrugem. Agora o jacto do chuveiro deixava na banheira branca doses sucessivas do mesmo material. Tencionava tomar um duche, tanto por sentir que precisava disso como para encontrar algum prazer a meio de uma tarde particularmente aborrecida. Livre da saia e da blusa coloridas, que despira demasiado cedo, sentou-se na borda a aguardar que a água perdesse o tom acastanhado.
A casa de banho, espaçosa, com a porta a dar para o corredor, era de serventia comum. Havia gente a bater com frequência, o que perturbava a intimidade e não permitia que a divisão assumisse em pleno a sua outra função de local de recolhimento. Num momento ou noutro do seu decurso, o alívio das necessidades e as abluções acabavam por ser partilhadas com alguém que se encostava à face exterior da porta à espera de vez.
A água por fim veio limpa e Delfina entrou na banheira, metendo o corpo debaixo do jorro do chuveiro. Estava fria, como poucas vezes a sentira. Apeteceu-lhe o choque térmico e cerrou os dentes, retesou os músculos, mas no peito sentiu que o coração a ameaçava com um colapso. Os pulmões contraíram-se involuntariamente; respirava em soluços profundos e dolorosos. Esfregou vigorosamente os ombros e a barriga e, segundos depois, tinha aumentado a sua tolerância à baixa temperatura.
Eram demasiadas semanas confinada a um mesmo espaço, sem que a vida tomasse um curso, fosse ele qual fosse. Vir para a Europa parecera-lhe desde o primeiro momento uma coisa assustadora, mas estava ansiosa por experiências, por contactar o mundo exterior. Não que mantivesse brilhantes expectativas quanto a isso, até agora tudo lhe parecera feio e os brancos não se mostravam em muitos casos melhores do que em África. Por vezes eram piores: juntavam numa só manifestação a repulsa e uma curiosidade boçal; insinuavam o desprezo, mas não conseguiam desviar o olhar pasmado e intrusivo. Desejava tornar-se transparente, invisível, ser transportada para outro lugar.
Debaixo do jacto irregular do chuveiro, fechou os olhos, tomada por uma alienação agradável, apesar da água fria. Deixou-se sonhar. Entrou na redoma transparente que vira na fonte. Sentiu as borbulhas a contornarem os pés e depois a propagarem-se pelo corpo todo, fazendo-lhe cócegas, massajando-a, entorpecendo-a. Gostava daquela sensação. Rodava na banheira como se o fizesse na campânula. Era um anjo num daqueles globos de neve de enfeitar móveis. Um anjo negro. Ouviu vozes e risos no corredor e tapou-se instintivamente com os braços. Também era um espécime raro exposto à devassa do público.»

in Hotel do Norte

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