segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Notas de viagem

Não sendo, nem em sonhos, um viajante imparável, tenho ainda assim no cadastro um número simpático de milhas aéreas e muitos quilómetros de alcatrão peninsular.
E contudo são insuficientes. Não me arrependo da eventualidade de ter vivido nos últimos anos acima das minhas possibilidades, mas arrependo-me (um pouco retoricamente, concedo) de não ter tentado poupar para estourar em mais viagens.
Até há um mês arrependia-me também de não ter levado um Moleskine nas expedições que fiz. Achava que as notas me seriam úteis nos posts e livros que ambicionava escrever.
Estava errado. As viagens são úteis — as notas não.
Em primeiro lugar, o mesmo carácter pudendo que me impede de sociabilizar com facilidade inibe-me de escrever sobre as minhas viagens. Pelo menos de escrever textos especificamente sobre as viagens.
O único Moleskine que tive (e tenho) foi-me oferecido há mais de três anos e tem três quartos das páginas intactas. Recentemente levei-o para Paris, mas foi inútil. Em nenhum momento dos dias que entretanto passaram senti qualquer vontade (ou senti o à-vontade) de o abrir para escrever fosse que género de texto fosse.
Em todo o caso, não seria de muita utilidade: apontei escassas observações e mesmo essas me parecem fúteis.
Na verdade, o que aproveito literariamente das viagens não surge por invocação e não poderia ficaria registado no período em que acontece. A identificação (e gradação) da importância das coisas é um exercício posterior. É mais tarde, por vezes bastante mais tarde — e involuntariamente, quase inconscientemente —, que as experiências das viagens surgem e se revelam úteis.
É como a vida: não sabemos que parte dela pode mais tarde ser romanceada, caso contrário vivê-la-íamos como uma ficção vigiada e seria portanto depois inverosímil, inutilizável, falsa, rebuscada, artificial, sem proveito. Não é durante a viagem que detecto o material literário (ou apenas com interesse narrativo): ele atropela-me um dia, no jogging, na caixa do supermercado, no trânsito, no duche. E então, sim, deveria correr para o Moleskine, para que à noite, iluminado pelo ecrã, não perdesse nada da ideia.

Creio que as notas tomadas durante uma viagem me seriam úteis se as pudesse tomar em modo inspirado, se pudesse viajar como um paciente Cézanne em frente a uma paisagem. Infelizmente, as minhas excursões são demasiado curtas (orçamento oblige) para que me possa dar ao luxo de agir como um escritor em viagem, sorvendo demoradamente. A única coisa que posso fazer — e isso é mais útil do que notas — é manter olhos e ouvidos bem abertos o tempo todo. Passar pelos sítios e pelas pessoas como um aspirador diligente, com grande poder de sucção. Um Hoover topo de gama ao serviço do detalhe e das sensações. E depois confiar na memória, esse departamento de arquivo e síntese de fábulas do cérebro humano.

É verdade. As sociedades de partido único resolvem-nos melhor.

«Os pequenos partidos são um sintoma de sociedades que não conseguem resolver os seus problemas.»

Vasco Pulido Valente, Público

sábado, 28 de dezembro de 2013

Quim Roscas e Zeca Estacionâncio

A dupla Quim Roscas e Zeca Estacionâncio parece provar que a ascensão social é possível nesta egrégia nação. Dois moços dados às anedotas, aparentemente condenados, como noutros tempos, a animarem os serões de tascas de província, conseguem um programa de televisão em horário nobre — o “Telerural”, emitido a partir de Curral das Moinas. Um deles vai mais longe e, qual sapo beijado por princesa do Lumiar (ou de lá onde a RTP tem os estúdios), não tarda é transformado em apresentador de concursos. Num terceiro momento da sua ascensão, ambos têm o venerável Nicolau Breyner a fazê-los protagonistas de “7 pecados rurais”, um filme seminal (eles haveriam de apreciar o potencial javardo desta qualificação).

Todo este sucesso parece provar, dizia, que Portugal não tem o ascensor social avariado. Os pobres e os indigentes, sobretudo estes, conseguem chegar ao topo. Mas se analisarmos bem o fenómeno percebemos que é tudo um problema de fundações: o duo não saiu do rés-do-chão: o edifício nacional é que se afundou mais no solo em algumas décadas do que a Torre de Pisa em séculos.

No cinema 2: M’espanto às vezes

Antes de iniciar o filme, a ZON oferece-nos um sketch ou um trailer ou uma coisa qualquer com a dupla Quim Roscas e Zeca Estacionâncio. Ao contrário do que eu esperava, a audiência não reage entusiasticamente. Não reage, sequer. Espreito a sala para ver se atrás de mim está toda a gente distraída com o iPhone ou a lamber no escurinho, à moda antiga, o parceiro do lado, mas na verdade cerca de dois quintos do público olha para a tela, sorumbaticamente.
Não sei que ilações tirar disto. As probabilidades de se encontrar numa sala da ZON trinta pessoas com bom gosto e sentido de humor sofisticado não são grandes. São maiores as de encontrar trinta pessoas que compraram um bilhete por recomendação clínica, para subirem o astral com um pouco de entretenimento. Mas, por outro lado, e atendendo ao efeito que o sketch tem no meu próprio estado de espírito, sei que não é preciso ter-se um diagnóstico médico de depressão para se desejar cortar os pulsos logo ali nos preliminares da noite.

Ponderando a apatia da audiência hesito assim entre sentir alegria por aquela putativa amostra de um país de gosto exigente ou chamar por prevenção três ou quatro equipas do INEM.

No cinema 1: Panem et circenses

Atento à arena, no filme The Hunger Games o público do pós-apocalíptico Capitólio espelha o povo de Roma na sua infantil necessidade de entretenimento e sede de sangue. Entre o passado e o futuro, a civilizada plateia de um cinema mastiga furiosamente pipocas e aborrece-se enquanto o enredo atrasa o ambicionado início da acção. Ao som de «let the games begin» a massa no ecrã parece ulular por ventriloquismo o alívio e o entusiasmo da audiência do filme. A quem escapa que The Hunger Games é talvez mais um momento tautológico da indústria do entretenimento do que um filme sobre a insubmissão.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Regressar a casa

(clique)

Escrevi anteontem para uma apresentação de Os Idiotas em Vila Pouca de Aguiar um texto a que chamei erradamente “Regresso a casa”. Erradamente porque para regressar a casa tinha na verdade de recuar 25 anos e não dez, 33 quilómetros e não 27. Não li o texto, mas insisti nos equívocos passando uma boa parte do tempo a falar do livro errado, do Hotel do Norte. Talvez seja da época, do toque de recolher à família que se ouve entre os jingles do comércio natalício. Por isso, ou por outras razões igualmente (con)sanguíneas, devo ter achado que esta era a altura de apresentar a minha obra sobre as Pedras Salgadas e não a minha obra sobre Portugal.
E assim não hesitei em alimentar mais equívocos, reduzindo ambos os livros (como voltei agora a fazer) a meros postais ou crónicas de territórios delimitados, regiões demarcadas do autor. A catalã residente no Alentejo Natàlia Tost a pretender que Os Idiotas se traduza para outras línguas, e eu a confundir a minha cartografia mental com a minha cartografia geográfica.

Parece-me que não há mal nenhum em publicar crónicas territoriais ou de época, mas devia ter-me lembrado que não escrevi monografias. Suponho que, por exemplo, o livro de Bruno Vieira Amaral As primeiras coisas não é bom por ser um levantamento sociológico de um bairro, mas por ter criado o Bairro Amélia a partir de matéria humana não exactamente circunscrita. Analogamente, o Hotel do Norte nunca existiu senão na minha imaginação (alimentada, naturalmente, de memórias, experiências, testemunhos, mas também da filmografia e da biblioteca eclécticas que fui instalando nas dobras do meu cérebro — e mais fundo, nos interstícios da alma, considerando a eventualidade de ter uma).
Não precisavam de ter demolido o verdadeiro Hotel do Norte, como fizeram, para que eu pudesse defender que ele é a minha fantasia. Um escritor não precisa de álibi nem de apagar impressões digitais, ou de fazer desaparecer provas, para cometer os seus crimes literários. O edifício podia permanecer que o livro continuaria a existir numa realidade alternativa e com fundações mais devedoras à mecânica quântica do que à velhinha, previsível e mensurável física de engenheiros civis, arquitectos e pedreiros.

Se me encomendassem (como aliás deviam) uma monografia sobre Pedras Salgadas, a “rainha das termas”, temo que seria desonesto da minha parte aceitar o serviço. É que não há uma correspondência absoluta entre aquele pedaço de território e o que eu frequento nas minhas visitas à terra. Por vezes julgo, ao passear no parque, que me passeio entre fantasmas, tal a quantidade de imagens e silhuetas que cada recanto, cada edifício, cada árvore espoleta. Mas depois de pensar no assunto, descubro, como no filme The others, que o fantasma sou eu. Não precisava de haver nevoeiro como havia para que o meu vulto no crepúsculo de hoje fosse espectral, deambulando solitário por entre o que resta ali de passado e o que se construiu de futuro. O hóspede de uma das eco houses que veio fumar para o alpendre não deu pela minha presença na vereda senão por um leve arrepio na espinha. Ele não estava a invadir mais o meu território do que eu o dele. Ou vice-versa. Na verdade, coexistimos em universos paralelos. Tal como é um universo paralelo aquele onde eu entro quando desço à cave da velha casa da família (e aos níveis mais subterrâneos do meu ser) e descubro os objectos familiares com que ficciono aquilo que antes confundia com recordações. Se me perguntarem onde eu estava em determinado dia de há trinta anos, talvez eu tenha um álibi convincente, mas ele é necessariamente forjado. Literariamente forjado.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Bruteza

No dia em que o JN noticiou a morte de Nadir Afonso, a sua manchete cumpria a rotina de informar em letras garrafais sobre um novo assalto ou um novo crime. Para o pintor ficou um quadradinho. Sendo inadequado ter vergonha do JN (porque não sou seu comprador nem seu accionista), tenho vergonha do país que o engendra. E quero que se foda a conversa sobre o país real. Um país, seja ele real ou imaginário, devia ter limites para a bruteza.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O fosso entre o cais e a viagem

1. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. Uma lê, a outra lê-se. A primeira segura um espelho, a segunda, um livro. É legítima a confusão sobre quem faz o quê.

2. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. Um espelho e um livro. Ambas lêem, mas só uma avança para lá do frontispício, e não é seguro afirmar qual delas o faz.

3. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. A do espelho reforça o rouge, a outra enrubesce numa passagem de As Cinquenta Sombras de Grey.

4. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. O espelho e o livro são arrumados em bolsas idênticas quando por fim a composição chega e uma voz avisa para o fosso entre o cais e a viagem.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

«Who gave you this number?»

Há uns anos alguém achou que me podia confiar o número de telefone de Paul Auster e eu liguei para esse número. Na altura eu tinha acessos, por vezes bem-sucedidos, de megalomania, mas atendeu-me uma voz feminina e o castelo de autoconfiança que eu tinha erigido desmoronou. «Mr. Paul Auster?», balbuciei cá de baixo, das masmorras. E ela, da sua torre de menagem: «Who gave you this number?» Ainda tentei explicar ao que vinha, procurando recuperar um pouco da compostura e da assertividade (da lata, na verdade) que usava em ocasiões análogas. Mas ela não se comoveu demasiado, retorquiu com uma cordialidade evasiva, e estava particularmente obcecada com a pergunta «who gave you this number». Não delatei a minha fonte — tive esse resto de dignidade —, mas o inglês que treinara saiu dos carris e a auto-estima deitou-se neles à espera do próximo comboio. Desesperado, pedi-lhe um endereço de e-mail ou um número de fax (ainda se usavam) e a voz deu-me uma sequência de algarismos. Terminou ali a conversa e a campanha de Brooklyn. Mandei o meu fax e nunca tive resposta.

Na hora e nos anos que se seguiram fiquei convencido de que falara com a esposa do escritor. A voz era demasiado madura para ser da filha, então adolescente, e, talvez para salvar o que me restava de ego, decidi que não falara com nenhuma secretária, agente ou relações públicas. Não conseguira nada de Auster — mas falara com a mulher dele. Assim se constroem os mitos.

Mais tarde cheguei a um primeiro livro de Siri Hustvedt (Aquilo que eu amava) e o meu trauma transformou-se. Já não era a questão de ter falhado a operação Paul Auster, era a de ter levado o meu embaraço para um novo nível. O livro de Hustvedt era fascinante, mas ela era casada com o autor da Trilogia de Nova Iorque e isso fazia com que ao longo da leitura soasse regularmente nos meus ouvidos aquela admoestação antiga: «Who gave you this number?» Eu tinha descoberto uma escritora interessante, mas simultaneamente descobrira que os seus livros estavam assombrados. «Who gave you this number?» não era uma pergunta com que eu não soubera lidar: era um mantra fantasmagórico. Olhava para a fotografia na badana e o seu rosto norueguês mas tão ariano intimidava-me, remetia-me para o gueto. Hesitei em comprar o meu terceiro livro dela porque temi que o título fosse uma insinuação, um aviso críptico para mim: Verão sem homens. Aquele homens era comigo. Eu estava impedido de entrar no Verão de Siri Hustvedt, como anos antes fora impedido por ela de entrar na casa do marido.

Tudo teria sido mais simples se a minha vaidade tivesse desde o início aceitado que a secretária ou a mulher-a-dias do escritor ficara simplesmente espantada com o facto de um desconhecido pouco fluente em inglês do outro lado do Atlântico estar de posse do número do patrão. Porém, considerando que talvez os livros de Siri Hustvedt sejam mais interessantes do que os de Paul Auster, vou ali alimentar mais um bocadinho o mito de que um dia falei com ela ao telefone e já venho.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Melancolia

Diz a Wikipédia que é «um estado psíquico de depressão com ou sem causa específica» e se caracteriza «pela falta de entusiasmo e predisposição para actividades em geral». Não parece a descrição da minha patologia. Se é certo que a maioria das actividades em geral me parece repulsiva quando me inclino para ouvir “Gallows” em loop, a verdade é que nestes momentos sinto um grande entusiasmo literário. Os frívolos dirão que literatura não é actividade, e terão a sua razão terrena. Mas quem se interessa por actividades quando tem as CocoRosie a sussurrar-lhe ao ouvido canções de assombramento, uma pilha de livros à distância de um braço e disposição para reescrever o mundo em vários tomos? Quem se interessaria por um emprego, uma comunidade, um país ou um planeta se pudesse simplesmente permanecer arrebatado?

A única parte triste da melancolia é termos de desligar a música, fechar os livros e ir picar o ponto nessa coisa a que chamamos vida adulta e responsável.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

November song


A carranca do vizinho

Parque de estacionamento, à espera que o portão se abra. O vizinho chega ao fundo da rampa e o morador recua. O vizinho cruza com o seu automóvel a entrada assim franqueada, passa ao lado do Chevrolet-dos-tesos do morador e nem um gesto de gratidão, nem um meio sorriso de reconhecimento, nem um aceno de cabeça que o faça descer do pedestal de repulsiva sobranceria a que ascendeu. Também costuma, na sua impaciência de ridículo aristocrata, subir a rampa ao mesmo tempo que as pessoas a descem a pé, obrigando-as a colar-se à parede.

O morador recorda-se de o ver no parque, «um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo». Felizmente que neste jogging arrastado em dia de alma de chumbo são outros os bichos que passeiam. Alguém traz um cão vivaço e curioso. Trocam olhares cúmplices a propósito do bicho e abrem-se sem resistência os sorrisos. Dois perfeitos estranhos cruzam-se e desnudam a alma numa partilha espontânea, despretensiosa, franca, uma repentina felicidade a propósito de nada, um nada que a carranca do vizinho obviamente desconhece e que ao morador faz esquecer a carranca do vizinho pelo resto do dia. Até à hora ritual em que os demónios são convocados para exorcismo. Xô!

domingo, 24 de novembro de 2013

«A esquerda sem povo»

A propósito deste pragmático artigo de Jorge Almeida Fernandes no Público, recordei uma passagem do meu ainda inédito Aranda, escrita há três anos:

«Era difícil, mesmo para alguém de esquerda como ela teimava em se dizer, refutar tal argumentação. O povo que a esquerda queria defender — as classes inocentes, oprimidas, ansiosas pela emancipação económica e intelectual — era um grupo residual ou não existia para lá do imaginário socialista; a História ultrapassara as ideias, retirara-lhes massa humana a que elas se pudessem aplicar, e essa era uma vitória do capitalismo e da democracia. Talvez por isso a ecologia tinha a importância que tinha para os pensadores de esquerda, pessoas no fundo com a consciência de que tinham perdido os humanos. Viravam-se para as outras formas de vida porque a Natureza se prestava facilmente, credivelmente, ao papel de vítima, tão necessário ao socialismo. Era o povo quem tornava as coisas difíceis. Como se podia defender mais democracia, uma maior identificação da política com a comunidade se ambas eram já o reflexo uma da outra? O que a esquerda tinha a fazer, achava Inês, era tornar-se realista e reconhecer que não tinha uma base social de apoio: o inimigo era a direita e o povo, afinal intensamente reaccionário, burguês e corrupto.»

«Uso de explosivos na agricultura»

Uma eloquente recensão literária...

(Foto/leitura de Ricardo Carneiro Ferreira. Clique)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Conservador

Nos anos do Independente sentia-me um pouco de direita. Não exactamente por partilhar de ideais politicamente conservadores. Mas porque, consciente ou inconscientemente, queria estar do lado da inteligência, do humor, da rebeldia, da iconoclastia, e estas coisas, como se sabe, no Portugal dos anos 90 estavam no Indy (e na Kapa). Posteriormente, aprendi que o liberalismo da direita era final bem pouco liberal em demasiados assuntos e afastei-me. De qualquer modo, o jornal e a revista tinham acabado. E a direita estava a ficar cada vez mais estúpida também no que se referia às artes e à paisagem, coisas para mim caras. Com a crise iniciada em 2008, um decidido misantropo como eu descobre a sua paradoxal costela humanista e solidária e chega-se mais à esquerda do que nunca, embora a nenhuma esquerda organizada politicamente.

Hoje sou sobretudo um desiludido do capitalismo, essa oligarquia, e um conservador. Sim, leram bem, um conservador. O que se vê na foto é parte do que eu conservaria rigorosamente sem alterações, sem uma árvore abatida, caso mandasse. Claro que se mandasse, também restringiria implacavelmente o acesso ao local. Todos os conservadores são na verdade antropófobos, e o direito à propriedade, que aqui reivindico, é instrumental para o cumprimento da vocação.  

[Romanas, 17.11.2013]

As costas largas da crise

A Lua este domingo pôs-se antes de nascer. Cerca de 12 horas antes. Como ela, também tenho dias de acabar antes de começar, apesar de todos os planos, de todas as expectativas. Mas no meu caso não há nada daquela exuberância da lua cheia, que inspira e promete quer esteja a subir no firmamento, quer esteja no seu ocaso. Comigo é um balão a esvaziar-se, com o silvozinho embaraçoso e tudo. Um desânimo, uma desistência, um drama de nada vale a pena nem que a alma seja grande.

Que sorte haver uma crise a quem deitar as culpas — e isso não ser completamente mentira. 

(clique)

domingo, 17 de novembro de 2013

Casal a vozes

Nos sessentas, bem-parecidos, melhor vestidos, ele tem voz de castrato e ela, por um daqueles mecanismos compensatórios da natureza ou pelo espírito de contradição habitual entre alguns casais, dir-se-ia que imita Tom Waits. São por isso um par curioso mas verdadeiramente complementar. A cantar a vozes não ficariam nada mal perante a dupla Simon & Garfunkel, mas a discutir desafiam os nossos mais embaraçosos preconceitos. Sobretudo quando ele guincha que as mulheres são todas iguais e ela, com uma baforada e voz cava, lhe chama machista de merda.

Amigos

São clientes um do outro e como a jornada de trabalho se prolongasse acabaram a jantar juntos. Entre as manteiguinhas e o prato foram as juras de amizade. «Tu sabes que eu sou teu amigo.» «Fiz aquilo porque sou teu amigo.» «Com os meus amigos é assim.» «Digo-te isto porque sou teu amigo.» «Se não fossemos amigos…» À sobremesa a amizade entrara num outro nível. «Ouve, eu sou teu amigo!» «Se és meu amigo…» «Um amigo não…» «Não é por seres meu amigo que…» «Teu amigo o caralho!» Depois do café e do bagaço tiveram de ser separados pelo chefe de mesa, com a ameaça de que chamaria a polícia. 

A manchete do JN

Ainda não percebi se o vizinho do rés-do-chão deixa quotidianamente o jornal à sua porta depois de o ler ou se lho entregam tarde e ele apenas o recolhe no dia seguinte. Seja como for, todos os dias leio a manchete do JN ao regressar a casa — e, graças sejam dadas aos cinquenta e quatro degraus que entretanto venço, todos os dias a tenho já esquecida quando entro em casa.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A perdulária arte de chegar tarde

Depois de quase todos o literatos do país terem dado o seu contributo para o debate facebookiano que espoletou um post de José Mário Silva sobre um comentário (crítico) de Luís Quintais a uma crítica (elogiosa) de José Mário Silva no Actual, a coisa provavelmente esmorecerá. Mais uma vez, cheguei tarde. Damn it!

terça-feira, 12 de novembro de 2013

De donde és?

Aquelas duas aldeias eram conhecidas pelo afinco que os habitantes tinham à terra, particularmente a rapaziada mais nova. Numa altura em que a juventude estava toda a emigrar, os moços e as moças dali permaneciam, raramente se afastando das povoações, aliás. Também eram conhecidos pela timidez, mas nunca ninguém ligou muito as duas coisas. Ou se ligavam era com um raciocínio incompleto: imaginavam que a timidez se devia a nunca terem saído, a isso lhes ter gravado no carácter um proverbial acanhamento provinciano. A verdade era um pouco diferente. Não saíam porque tinham vergonha de responder se alguém nos longes onde fossem parar lhes perguntasse de onde eles eram — e eles eram, sem culpa disso mas embaraçados por isso, do Monte das Pitas e do Sítio da Éguas.

(Ideia de e dedicado a A. P.)

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Talvez coisar

Ouço no programa do provedor de uma rádio que ouvintes se queixam de passarem ali músicas com palavrões. (Um dos exemplos é “Anos de bailado e natação”, o belíssimo tema dos Mundo Cão com letra feliz de Valter Hugo Mãe de que já aqui falei.) Isto no mesmo santo dia em que a televisão dedica todo o período da tarde a fazer desfilar um inesgotável repertório de grosseria e brejeirice.
Pergunto-me se os provedores das TVs (existem?) recebem queixas de badalhoquices verbais no pequeno ecrã, mas suspeito que não. A cultura pimba é ali hegemónica ou exclusiva. E, mesmo que não primem pela subtileza ou pela elegância, os letristas pimba conseguem nos seus trocadilhos soezes evitar nomear as coisas de que obsessivamente se ocupam. Ora, a hipocrisia nacional tolera o mau-gosto, o machismo, a misoginia, a homofobia, o kitsch mais obsceno e a mais estridente ausência de talento — mas nunca o vernáculo radiotransmitido.

Se não tivesse há muito sido banida qualquer forma de arte da TV lusa, os Mundo Cão teriam na conjugação do verbo foder, ainda que poética, a razão do seu ostracismo hertziano. 

sábado, 9 de novembro de 2013

O elogio do grupo

(Ensaio de um ex-baixista frustrado)

Não sei se por ter sido baixista e na definição clássica um baixista ser um guitarrista sem talento e frustrado, sinto grande simpatia pelos membros esquecidos das bandas. Por exemplo, fico retrospectivamente contente quando leio que Morrissey perdeu o diferendo jurídico que manteve com o baterista dos Smiths. É que, embora se saiba que o génio de um grupo é quase sempre individual ou, vá lá, bicéfalo, não é menos verdade que na maior parte dos casos tudo o que de realmente genial esses génios individuais fizeram aconteceu enquanto estavam no grupo. O que são Lloyd Cole sem os Commotions, Roger Hugdson sem os Supertramp, Roger Waters sem os Pink Floyd, John Lennon e McCartney sem os Beatles, o próprio Morrissey sem os Smiths? Génios, é verdade. Mas génios menores. Talvez eu pudesse idolatrar o trabalho deles a solo se não os tivesse ouvido antes, quando tinham um grupo. Assim, apenas posso amar as suas carreiras a solo.
Há algo num colectivo que faz o som de uma banda. Uma banda pode ter num tipo que se limita a abanar a pandeireta um elemento fundamental. Toda a gente sabe abanar uma pandeireta, mas só quem bebe connosco ou fuma connosco abana a pandeireta daquele jeito que o grupo precisa. É corrente gozar-se com Ringo Starr, mas o que seriam os Beatles se na bateria tivessem John Bonham? Diferentes, claro, mas também piores, acreditem. A genialidade dos grupos pop/rock não está apenas no talento dos seus instrumentistas ou compositores, mas no cozinhado que eles conseguem fazer com as diferentes capacidades e contribuições dos seus elementos. Um hit pop é um acidente no universo da música. Tem menos a ver com o virtuosismo das partes do que com o cruzamento delas. Em rigor, não há filhos sem pai ou sem mãe. Frequentemente, apenas um dos progenitores tem genes que se aproveitem (e, tantas vezes, nenhum), mas a beleza de alguém é sempre um cocktail que resulta da sacudidela conjugal. Ou de haver sorte no banco de esperma.
Os génios que se lançam numa carreira a solo cometem o pecado da soberba. Se não conseguem deixar de se zangar com os bandmates, deviam ter a coragem de se reformarem ou morrerem para deixar o mito intacto. Mas não, suas excelências acham que ainda têm muito para dar (e é verdade) e vão para estúdio com um conjunto de tipos contratados à espera que a magia aconteça entre estranhos como entre íntimos. Os músicos contratados ou requisitados para acompanhar vedetas recém-divorciadas são tratados com paninhos quentes (no caso de serem eles próprios vedetas de outras proveniências) ou como escravos. Ora, com escravos fazem-se pirâmides, não música. E a cordialidade entre pares dá palmadinhas e salamaleques coreográficos, não canções.
Acresce que o génio desagrupado tende a achar que, desde que tecnicamente correcta, é indiferente a linha de baixo, a malha de guitarra, a agitadela da pandeireta que passam a acompanhar a sua música. Na sua arrogância recém adquirida (ou exacerbada), julgam auto-suficiente a canção que compõem. E por isso gravam discos sem personalidade, ou com a personalidade de um grupo de swing (um grupo de adeptos da troca de pares sexuais, excitante, mas inconsequente). Pressente-se ali o talento melodioso do compositor, a voz distinta, a interpretação temperamental — mas como ecos do passado. The Pros and Cons of Hitch Hiking podia ser um bom álbum, mas sem os Pink Floyd é um fraco sucedâneo de The Wall. (Pelo seu lado, A Momentary Lapse of Reason por não ter Roger Waters tem muita dificuldade em parecer música.)
Quando se esteve num grupo, não se devia pretender a arrogância de uma carreira a solo. Quem quer uma carreira a solo chama a si próprio desde o início David Bowie e calça-lhe os sapatos de plataforma.

Fica aqui o meu elogio aos grupos — e a minha frustração por, enquanto ex-baixista, não ter um grupo a quem pedir indemnização.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

«Vá cortar as unhas!»

Coisas que me dispuseram bem no Facebook hoje:
- Chamarem Tico e Teco aos dois neurónios de Margarida Rebelo Pinto.
- Dizerem-lhe: «Vá cortar as unhas»

Coisas que me dispuseram mal:
- Um link para um artigo do Público onde Pedro Lomba mostra como também sabe ser hipócrita. Ou parvo.

Há uns tempos o problema era a produtividade, a função pública precisava de trabalhar mais horas. Hoje soubemos que afinal a função pública pode trabalhar menos horas e que isso, levar mais horas mas menos dinheiro para casa, é bom para as famílias. O empobrecimento passou de necessário a bom.
É como a demografia: a direita tonta que Lomba frequenta (e que, por contágio, o entonteceu) não se cansou durante anos de alertar para a o problema de uma demografia envelhecida, era preciso combater o aborto e fazer filhos, ter grandes e sólidas famílias tradicionais, monárquicas também podia ser. Depois os tontos, muito educadinhos e aperaltadinhos e sabujinhos, abriram a porta à tia troika e foram para o poder com pins na lapela (ler a crónica de Lobo Antunes é imprescindível) e afinal já não importava nada envelhecer o país mandando os jovens emigrar.

Estes bebés prematuros, espermatozóides de gravata ao pescoço, acham que os outros tiveram o mesmo tipo de desenvolvimento intelectual que eles, que também formaram pensamento e currículo na incubadora da Alfredo da Costa. A desfaçatez é tão grande e tão óbvia que num acesso de ternura, como os que por vezes se tem perante os tolinhos da aldeia, somos inclinados a pensar que tomarem-nos por parvos é a maneira deles um elogio, é dizerem-nos que nos consideram seus iguais.
É que tipos destes chegam a acreditar nas imbecilidades que dizem. Não se importam de ser parvos em nome da causa. Sacrificam a sua inteligência (considerando a possibilidade de terem mais do que um Tico e um Teco debaixo da melena beta) e a sua honra em nome de um bem superior (uma entidade tão insondável quanto os mercados, possivelmente um heterónimo destes). Tais secretários de estado e assessores so british, com muito ciência política à inglesa (a francesa é hó-rro-ro-sa!), são as tias louras da direita tonta portuguesa.

Ok, talvez Pedro Lomba tenha mais um neurónio do que Margarida Rebelo Pinto (um Huguinho, um Zezinho e um Luisinho, digamos, ou os Irmãos Metralha), mas a sua argumentação está ao nível da da escritora, é tão possidónia quanto a dela. Não se admire, por isso, sr. secretário de estado, se na rua alguém lhe disser com a igual escárnio: «Vá cortar as unhas!»

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Portugal na cauda da Europa

Sobre esta notícia, se alguém lhe ligar, haverá duas escolas analíticas. A vasco-pulidiana dirá que é assim porque somos um país subdesenvolvido economicamente: só o bem-estar económico favorece o ócio e a curiosidade intelectual ou cultural. A oposta dirá que temos uma economia fraca porque somos subdesenvolvidos cultural e intelectualmente. E, enquanto as elites debatem entre si o velho e na verdade fútil enigma da galinha e do ovo, o país, entregue a si próprio, contínua desinteressado quer da cultura, quer da economia.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O amor em Portugal

— Não ficavas feliz se te saísse [o euromilhões]?
— Feliz fiquei foi quando a conheci.
A confidência, inesperada, embaraçou por instantes os comensais. O tom era rude, mas segundo se diz nada impede os brutos de amarem.
Na verdade, havia uma cumplicidade amorosa entre o casal. Corroboravam-se mútua e jovialmente na conversa animada que mantinham com o resto da mesa, nas histórias que contavam. Havia um ligeiro tom dissonante: os episódios acerca da mulher eram quase sempre elucidativos da dureza dela — eram os feitos ao volante, os feitos ao balcão, a sua resistência física ao esforço e os copos que ela aguentava —, mas quem não está disposto a dar uma oportunidade ao amor?
Riam bastante das coisas um do outro e em nova tirada repentina, como que a sublinhar o entusiasmo e o orgulho nela, ele anunciou à mesa que nessa noite pinariam.
Tudo era afeição e brejeirice e picardia. Como quando, respondendo a uma pequena divergência num relato, ele anunciou no mesmo tom folgazão, com a mesma aparente intencionalidade histriónica, que lá em casa ela apanharia. Ou quando, ela reincidindo, o eufemismo e o verbo mudaram para enfardar. À terceira originalidade da mulher ele perguntou-lhe, como antes lhe revelara o desejo sexual, se ela queria ser humilhada já ali na frente de todos.
Talvez ele estivesse, de novo, a ser apenas jocoso, certo de que o seu rude e provocador sentido de humor tinha já sido percebido por todos. Talvez a insinuação de bruteza fosse instrumental, constitutiva da persona dominadora mas apaixonada que ele interpretava.
Ou talvez ela não tivesse ensaiado mais nenhuma dissidência por ter notado que nenhum dos circunstantes contestara que apenas ela seria humilhada se enfardasse ali diante de todos. Ou onde quer que fosse, incluindo mais tarde, em casa.

Hermenêutica futebolística

O amigo chegou, encomendou a sandes e a mini ao balcão e virou-se para a TV, onde passava um jogo de campeonato estrangeiro. O outro, quando se deu conta, arrastou-se lá do fundo e, depois do cumprimento, atirou:
— O árbitro está a ser tendencioso a favor dos azuis.
O tom era neutro, indiferente, de quem invoca as condições climatéricas para início de conversa.
Reflectindo nas palavras, fiquei na dúvida se aquela observação de circunstância significava que:
a) É possível dedicar-se uma atenção mecânica mas minuciosa a um jogo de futebol mesmo que se desconheça os clubes ou eles não sejam suficientemente importantes para merecerem ser fixados;
b) A parcialidade da arbitragem ou a crença de que há parcialidade na arbitragem são tão inerentes aos jogos quanto a rotundidade da bola;
c) Os rituais de desculpabilização e a hermenêutica televisiva mudaram o foco do jogo para a incidentalidade.
d) O autor da observação era um irredimível benfiquista.

Mas, pensando bem, talvez fosse apenas verdade que o árbitro estava a ser tendencioso a favor dos estrunfes.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Perder tempo

Uns vinte anos depois de ter pousado a viola-baixo, dei por mim na última madrugada a assistir online a lições sobre matérias prementes como walking bass lines, slap e the secret triplet (admirável técnica), ministradas por um tal Scott Devine. Não tenho qualquer intenção (ou esperança?) de voltar a pegar na guitarra e as tarefas que nos próximos tempos me esperam não convivem bem com este diletantismo fora de horas. Acresce que, tirando certas facetas parvas do emprego, todas as tarefas que me esperam têm a particularidade de serem prazerosas — ou necessárias, úteis e prazerosas — e envolvem livros.
Porquê então esta tendência para a perda de tempo? Racionalmente, não comungo da definição de liberdade expressa no poema de Fernando Pessoa (Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer! / Ler é maçada, / estudar é nada. / O sol doira sem literatura.) Emocionalmente, também não, já que o meu prazer mistura o sol, a brisa, o rio, a bruma, danças, flores, música e luar (passo as crianças) com livros.
É isto uma manifestação de irreprimível curiosidade? De fome de conhecimento? Ou uma forma velada de descer à franca humanidade dos que passam os serões e as décadas vendo novelas, futebol ou reality shows como se não houvesse outro sentido para a vida?
Vou por esta prova de fraqueza, da minha iniludível pertença ao género humano. Uma parte de mim também desiste a espaços perante o absurdo de uma existência efémera. Para quê fazer um gesto que nada muda se podemos ficar simplesmente à espera?

Ou talvez não, talvez isto seja apenas um problema de gestão da curiosidade. Lembro-me agora que depois dos vídeos, já se descarregavam as hortaliças no mercado, ainda fui perceber a razão por que o baixista Devine tocava com luvas. Distonia Focal, descobri, uma doença neurológica que afecta um músculo ou conjuntos de músculos e causa espasmos involuntários. O uso de luvas de seda (terapêutica chique, de ambivalente delicadeza) altera a sensibilidade e engana os neurónios avariados, bloqueando as contracções.

Descoberta útil, não? Não?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Padrinho

Na Periférica, a coluna de J. Rentes de Carvalho tinha o título deste post. Todas as rubricas eram na revista nomeadas a partir de filmes e a sugestão de O Padrinho para a crónica dele foi absolutamente incontroversa — não sendo a boutade o argumento principal, já que em rigor não havia uma boutade no título.
Mais de uma dezena de anos depois, aquilo de sábado na Traga-Mundos não foi bem um debute, uma entronização que JRC apadrinhasse. Foi um reencontro afectivo. De vez em quando, para revermos amigos, para podermos ter aquele abraço reconfortante, para recebermos a bênção balsâmica de um patrinu, de um pater, temos de trocar as voltas à vida, criar situações onde tal possa ocorrer. No sábado, todos (até eu) exagerámos dizendo que estávamos ali a propósito d’Os Idiotas — mas ninguém escondia com muita convicção que estávamos ali para recebermos afecto e um pouco daquela espantosa energia vital de Rentes de Carvalho.
Il padrino, pelo seu lado, não foi avaro, foi aliás desmedido — para meu embaraço. O texto com que se prontificou a participar na instrumental apresentação do livro, o trecho que se me refere, deve por isso ser lido apenas como uma enorme e paternal demonstração de generosidade.

(Texto da apresentação aqui ou aqui.)

sábado, 26 de outubro de 2013

Diz que há vinho

E pronto, é hoje. Quem quiser conversar sobre idiotas comigo e com Rentes de Carvalho, apareça às 21h30 na Traga-Mundos. Diz que há vinho.
(Os que estão longe, não se impacientem, novas apresentações serão anunciadas já, já.)

(clique para ampliar)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Da praxe no parque à escatologia: ensaio taxonómico sobre a academia

A propósito de uma sucessão de casos, ou antes, da cobertura jornalística de casos de francos excessos nas praxes académicas, e em sequência de uma débil pressão social ou de uma réstia de escrúpulos, algumas universidades lá assumiram que lhes cabiam desempenhar um papel, não exactamente na formação de carácter dos seus alunos (não exageremos), mas de moderação da selvajaria. Passaram a existir regras um pouco mais restritivas para a praxe em alguns campus. Como em certas cidades mais progressivas do farwest, os alunos foram convidados a deixar as armas no portão. Se querem brincar aos índios e cowboys, que o façam lá fora. A academia nada tem contra os tiroteios e a caça ao escalpe — desde que essas românticas actividades ocorram extramuros.

E também assim a academia volta as costas à comunidade, ao mesmo tempo que renega as suas incumbências fingindo que a sua jurisdição sobre o estudante é limitada pela vedação do campus.

Os grupos de praxe, aliás, parecem não caber no âmbito jurisdicional de nenhuma instituição, civil ou uniformizada. Desde que notoriamente envolvidos — quer como vítimas, quer como algozes — nessa fundamental ocupação dos vinte anos que é a praxe, é-lhes passado um livre-trânsito, uma espécie de carta de alforria para a ignomínia e o vandalismo, sem limitação de decibéis.

Se você, caro cidadão, dando-lhe na veneta, resolvesse, como por aqui se faz, chafurdar ou fazer bodyboard na relva húmida de um parque até transformar o círculo do seu enchafurdamento num lamaçal, ou arrancar, com sequelas para o futuro botânico do sítio, qualquer vestígio de relva no percurso do seu reiterado deslizamento, provavelmente teria um funcionário municipal ou um agente da autoridade a censurar-lhe o comportamento (por mais genuinamente divertido que você estivesse) e a sacar do bloco de multas para lhe pedir contas. Tratando-se de grupos de praxe, as instituições do Estado quando muito abanam a cabeça com aquela indulgência que se oferece às crianças e aos malucos da terra.

Tempos houve em que as cidades médias viam no estudante universitário a galinha-dos-ovos-de-ouro e temiam incomodar a debicante espécie com os seus escrúpulos e as suas preocupações cívicas (se as tinham). Galinhas desta estirpe, achava a mentalidade mercantil dos burgos, deviam ser deixadas a cacarejar estridentemente antes de cada postura. A caca de galinha com que revestiam abundantemente as calçadas da urbe não devia ser censurada, pois saía do mesmo sítio de onde saíam os áureos ovos. A escatologia era assim preocupação dominante nestas pequenas ou médias comunidades, quer na sua acepção científica (relacionando a merda estudantil com a saúde económica do condado), quer na sua dimensão filosófica (o fim dos universitários era o fim do mundo).

Claro que da ignara e vil burguesia mercantil e das instituições dos burgos, constituídas tantas vezes por meros perus emproados ou galináceos da mesma cepa estudantil, não se esperariam conhecimentos zootécnicos. Era natural que desconhecessem serem inúteis as asas das aves poedeiras e, por isso, desadequado o temor melodramático quanto à fuga das galinhas. Seria talvez uma iconoclastia humilhante e traumática alguém informar as comunidades que os Gallus gallus aureos, vulgo estudantes universitários, arrendariam igualmente casas, se alimentariam quotidianamente e quotidianamente apanhariam pifos mesmo que algumas regras da civitas lhes fossem impostas.

Deve ter sido por isso, para não ferir o frágil amor-próprio e os doces sentimentos das forças vivas das terras universitárias, que a academia se demitiu de lançar luz sobre o assunto. (Talvez também para não melindrar o orgulho arrivista e vindicativo dos progenitores no entremez académico das suas crias.) Ou isso ou as reitorias, em vez de faróis, confundem os seus gabinetes insonorizados e de vistas bucólicas com torres de marfim.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Embirrando com a leitura

Na forma como cita parece revelar-se algo do carácter (ou da formação) de um autor. Leio um ensaio onde as fontes francesas são citadas em francês e as italianas, russas, alemãs e mesmo as anglo-saxónicas são-no em português (quando não também em francês).
Talvez o autor tenha optado por citar as suas fontes na língua em que as leu, é um critério. E, nesse caso, estamos perante um afrancesado, por formação e/ou por afinidade cultural.
Com a minha mania de imaginar biografias, decidi tratar-se de um pavão vaidoso do seu francesismo, do seu domínio da língua de Sartre. Como não tem idade para ser um ex-expatriado ou para se ter formado no tempo em que quase toda a gente em Portugal era culturalmente afrancesada, decido também que viveu em França, nasceu ali, talvez filho de emigrantes orgulhosos da sua (dele) carreira académica.

Assim tomado por esta animosidade ficcionalmente refocalizada, decido que os livros citados no ensaio têm edições portuguesas, que o autor não aplica às fontes francesas o critério que geralmente aplica às russas e às alemãs (citando-as em português) por presunção, gosto ostentatório. E encontro então explicação para a forma arrevesada como escreve o seu ensaio, num português engalanado e hirto: é prosa de calça vincada e gola alta, ou enrolada num cachecol parisiense. Não exactamente elegante — apenas afectada.

Ideologia e competências autárquicas

Já se sabe que para os contribuidores do Blasfémias o Estado devia desaparecer, e nesse sentido é esclarecedora a visão caricatural das competências autárquicas que Rui A. (nome artístico ou timidez juvenil?) apresenta neste post:
«Em vez de tapar os buracos das ruas, licenciar novos prédios*, dar um destino decente ao Bolhão e resolver os problemas do trânsito, o programa da coligação municipal Rui Moreira/PS tem por objectivos “as prioridades que foram amplamente sufragadas pelos portuenses: Coesão Social, Economia e Cultura”. “Coesão Social, Economia e Cultura”? E nas mãos do PS? Tremam, portuenses!»
É generoso da parte do blogger blasfemo confiar os buracos e o trânsito às câmaras (quando lá no íntimo acredita que a iniciativa privada é melhor a repor paralelepípedos e a programar semáforos), mas conceder que sejam necessárias licenças de construção é uma absoluta extravagância da sua parte. E a livre iniciativa? O empreendedorismo sem burocracias? Mais um pouco e Rui A. ainda acha que os mercados devem ser regulados.

* Já agora, num país onde se construiu demais e onde as empresas de construção estão falidas, «licenciar novos prédios» parece estupidez ou utopia — raio de lapso num blogue tão seguro da sua clarividência.

Crueldade instrumental

Eis como numa frase (longa, é certo) se condena a crítica à irrelevância (implícita, mesmo que não conscientemente, fazendo o elogio do marketing):
«(…) embora eu não creia que os leitores deixem de ler os apontados como sobrevalorizados se já gostarem deles nem comecem a ler os subvalorizados só por alguém dizer que lhes deviam prestar mais atenção (…)»*
*Maria do Rosário Pedreira, editora, referindo-se ao célebre dossier do Actual sobre autores sobrevalorizados e subvalorizados.

Apresentação III

(clique na imagem)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

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Livro do dia na TSF

Os Idiotas foi hoje o livro do dia na TSF. Ouça o programa de Carlos Vaz Marques clicando neste link:


http://www.tsf.pt/Programas/programa.aspx?content_id=2316097&audio_id=3475854

«Um romance que surge como a confirmação de um talento já adivinhado por quem o lia na Periférica e como uma revelação para quem só agora venha a descobrir o autor.»

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Más notícias


 A Piada Infinita foi de tal maneira uma leitura fascinante e lúdica que depois desse livro mal tenho conseguido pegar noutros. Acumulo uns seis ou sete na mesa-de-cabeceira, eu que não costumo ali ter mais do que dois: o que leio a cada momento e um qualquer outro que, por piedade a fingir desleixo, fica ali esquecido durante meses numa desistência camuflada de adiamento.

É injusto para os autores terem o azar de surgir na minha lista depois de Foster Wallace.

Meio enganado por uma qualquer referência que li, avancei a certa altura para Cinerama Peruana, convencido que havia ali ecos de A Piada Infinita. Como se usar notas de rodapé fosse suficiente para aproximar os dois livros. Não são próximos. Talvez haja ecos de Bolaño no livro de Rodrigo Magalhães, mas não vi nada de Wallace. E, lamento dizê-lo, a despeito do talento do autor, aborreci-me. Certamente pela enorme sombra que lhe fez a leitura anterior. Mas também um pouco pelo género: aquelas espécie de fábulas eminentemente literárias e literariamente tautológicas não me apaixonam, mesmo quando são assinadas por Borges. Foi para arquivo, a um terço do fim. Decidi ser condescendente comigo mesmo, poupar-me o esforço.

Hoje fui buscar Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer — o que me parece más notícias para os restantes autores da pilha.

«Todos os meninos do papá chegam a presidentes»?

Recensão de Os Idiotas na revista online Rua de Baixo:

http://www.ruadebaixo.com/os-idiotas-rui-angelo-araujo-10-10-2013.html

sábado, 12 de outubro de 2013

Lobbies e doping na genitália alheia

O José Mário Silva diz na sua página de Facebook que «a edição desta semana do 'Actual' é capaz de dar polémica», e acrescenta um link para um post do blogue Bibliotecário de Babel que, dá para perceber, lista os temas da secção de livros do dito suplemento. O problema é que chegamos ao blogue e deparamo-nos com um artigo sobre Viagra.
Num primeiro momento concluímos que é spam ou vírus. Regressamos por isso ao Facebook e espreitamos os inúmeros comentários (de críticos e outros literatos) que entretanto foram surgindo.

Dada a temática e o teor da discussão gerada, ocorrem dois pensamentos: 

a) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker que não tem conseguido entrar no lobby do Expresso.

b) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker com sentido de humor: quando se trata de medir pilinhas, a questão do doping na genitália alheia não demora a chegar.

(Ok, mais tarde compro o jornal para não falar de cor.)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Tontarias

Como posso aspirar a tornar-me um escritor respeitável se ultimamente etiqueto a maioria dos meus posts como «tontarias»?

Entusiamo

O corrector ortográfico do meu Word não está acertado pelo Acordo Ortográfico — está acertado pelo Mia Couto. Quero escrever «entusiasmo» e sai-me «entusiamo», com uma estratégica elisão do segundo «s». Aos outros desacertos o corrector reage sublinhando-os a vermelho. Este deixa-o laconicamente sem marca, esperando que eu dê pelo caso e sobre ele pondere etimologicamente.
«Entusiamo» será assim a fusão de dois termos: «entusiasmo» e «amo». «Amo com entusiasmo», quer certamente o corrector que eu conclua, com romântico exacerbamento.

Ou talvez devamos atribuir raciocínios mais libidinosos ao meu corrector ortográfico e considerar aquele amor meramente carnal, o entusiasmo do domínio da intumescência, acentuado na segunda sílaba.

Moldando o entusiasmo

Senti um entusiasmo inadequado e embaraçoso ao ler que Pedro Mexia escolheria Javier Marias como um dos seus dois favoritos para o Nobel deste ano. O entusiasmo foi inadequado porque o senti de um modo pessoal, como se fosse eu o nomeado. E foi embaraçoso porque pueril, ou melhor, servilmente penhorado. Não que sonhe ombrear com Mexia em cultura e sabedoria literárias, mas escusava de ter acessos de entusiasmo tão obnóxios, tão avassalados por uma lisonja dirigida a um objecto de estima mútua.

Compreendo porém o meu próprio entusiasmo. Não tendo lido muitos títulos de Marias, entre as leituras que fiz estão os três volumes de O Teu Rosto Amanhã, uma obra que só por si vale um Nobel. E a minha satisfação com essa magna leitura tem equivalência em grau à perplexidade de ver os anos passar sem que a tradução portuguesa seja retomada (a Dom Quixote editou o primeiro volume em 2005 e ficou-se por ali).
A relativa ignorância a que obra de Marias é votada em Portugal concede-lhe aos meus olhos (ou aos olhos do meu entusiasmo) uma certa aura de autor de culto. A simpatia pela obra e a sensação de injustiça traduzem-se numa identificação com as suas tribulações e os seus sucessos. Admiração semelhante de outros é sentimento de união, irmana.

Por isso, se o meu entusiasmo não fosse tão voluntarista, perante a referência de Mexia a Marias ter-se-ia manifestado mais dignamente na forma de mero regozijo pelo reconhecimento de um igual. Se as minhas emoções se dessem ao trabalho de se intelectualizarem um pouco, a nomeação de Javier Marias por Mexia seria recebida, adequadamente, com um entusiasmo de classe, de membro de um clube restrito, exclusivo, reagindo ao nome do escritor como ao santo-e-senha do clube. Talvez permitindo-se (o entusiasmo) um sorriso irónico e levar dois dedos ritualizados ao Borsalino.

Mas temo que se derem o Nobel a Javier Marias, Pedro, o meu entusiasmo celebre plebeiamente dedicando aos editores portugueses um daqueles gestos revanchistas de jogador de futebol.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

José Rodrigues dos Santos ou Educação para a modéstia

Educado para a modéstia (a soberba descobri-a por mim mesmo mais tarde, junto com a ironia), fascina-me a forma despudorada como José Rodrigues dos Santos fala dos seus próprios livros. No meu quadro educacional, e se descontarmos as conversas de balneário, a hipérbole reservava-se para os feitos dos outros, se tínhamos a generosidade de os admirar; os nossos tratávamo-los com reserva, rubor e olhos baixos. Por isso, quando leio entrevistas do autor de A Mão do Diabo — presumindo sempre que são registadas fora dos locais onde tradicionalmente os rapazes cotejam as suas galgas —, uma parte antiquada de mim pensa que ele está a falar de livros escritos por outros. Depois lembro-me de certas teorias da conspiração, que metem cálculos de tempo e ghost writers, e por instantes dou-lhes crédito: se calhar está. E assim se compreenderia a enfatuação.

Mas se considerarmos que o entusiasmo de Rodrigues do Santos não resulta de ele se distrair e involuntariamente revelar o seu apreço pelo trabalho dos colaboradores (o que até seria bonito); se considerarmos que ele escreve os seus próprios livros, todos eles, temos então de perceber se a sua arrogância tem a legitimidade da de um Mourinho, por exemplo.
No caso do futebol, estamos dispostos a engolir a bazófia de Mourinho se depois ele ganhar os jogos e conquistar os títulos. Podemos achá-lo um parvalhão emproado, mas é um parvalhão emproado que no fim leva a taça e milhões de euros.
Deste ponto de vista, e embora custe equiparar a literatura a um campeonato de gajos depilados em calças curtas, Rodrigues do Santos está também autorizado a ser um parvalhão emproado — afinal, a sua equipa ganha fortunas e tem já uma série de internacionalizações. E se não conquista as taças literárias é porque elas, anacronicamente, ainda são atribuídas por críticos e júris, não pelo terceiro anel da Luz. (Eis algo que urge alterar.)
Claro que se pode dizer que José não tem um jogo bonito, o seu futebol é tosco, ganha muitos jogos recorrendo à mão de Deus, para baixo todos os santos ajudam, etc., mas no fim do mês lá está ele nos tops e as suas filas para autógrafos, di-lo ele mesmo, dobram esquinas.

Os historiadores do futebol podem argumentar que houve noutras épocas treinadores melhores do que Mourinho e talvez a contabilidade de títulos ainda nem lhe seja inequivocamente favorável, não sei, mas isso importa pouco aos adeptos actuais se ele continuar a vencer. O mesmo se passa com os rodriguinhos de dos Santos: críticos e historiadores (como Rui Bebiano, neste post) podem defender, com razões de sobra, que a entrevista do escritor ao I no sábado foi um «vendaval de futilidade, desconhecimento e espírito mercantil», mas a sua massa associativa (e mesmo hooligans de outros ramos) continuará a dedicar-lhe olas e cânticos épicos.

Para além disso, na mesma entrevista de sábado e antes que a História se pusesse com coisas, Rodrigues dos Santos tratou de a arrumar num só parágrafo. Falando de Equador como espécie de profeta que anunciou os seus livros messiânicos, o jornalista disse: «Demonstrou várias coisas. Que os portugueses tinham disposição para ler um autor português, o que até aí era como o cinema português, de que se fugia. (…) Porque não entendiam, o que era escrito, é a terrível verdade. Os nossos autores eram ilegíveis.»
Diria que nem Mourinho seria farofeiro o suficiente para defender que antes dele não havia futebol, mas talvez Rodrigues dos Santos tenha evocado na sua mente o panteão das letras portuguesas e concluído melancolicamente que não tinha de facto razões para humildade.

Espantou-me, por isso, que noutra passagem da entrevista ele concedesse, acerca de diferentes atitudes literárias, que «umas são tão válidas como as outras». Havia, afinal, uma reserva de modéstia no bravo best-seller. Ou então ocorreu-lhe que também ele poderia um dia querer levar «duas páginas a descrever um armário», como o sádico James Joyce em Ulysses, e mais valia sancionar preventivamente o recurso. Just for the record.

Ou será que temia incomodar uma importante facção dos seus leitores censurando o «exercício de masoquismo» que disse ser ler o calhamaço de Joyce?

Além disso, depois de Dan Brown, o seu catavento literário pode muito bem estar a sintonizar-se nas cinquenta sombras sadomasoquistas de E. L. James. Rodrigues dos Santos tendo prazer a infligir sofrimento literário? Não é impossível.

sábado, 5 de outubro de 2013

Machetada

Provavelmente — e decerto com particular incidência nas últimas legislaturas —, sempre houve gente nos governos com alguma incapacidade para defender os seus currículos. Quer porque eles (os currículos) eram má ficção, quer porque eram facilmente confundidos com cadastros. Mas no governo de Passos Coelho isso parece uma especialidade, uma cláusula. Um tipo põe-se a pensar que, se os lugares de ministro e secretário de estado (ou assessor) fossem a concurso, Coelho mandaria lavrar anúncio no Diário da República com a alínea: «Dá-se preferência a quem tenha rabos-de-palha; da sua elisão trata-se a seguir, com corrector Bic ou Pelikan, depende de quem patrocinar.»

Os currículos de Gaspar e Santos Pereira, bons rapazes e sem mácula no carácter, pertenciam ao lote da ficção, poderiam ter sido escritos por José Rodrigues dos Santos num dia inspirado. O de Relvas também, mas acumulava vilanias. Agora, a ministra das Finanças e o dos Negócios Estrangeiros são o topo hierárquico de uma lista de governantes cujos currículos os habilitam com distinção ao governo passista mas logo depois têm de passar pela lavandaria para serem apresentáveis ao resto do país.

Desde Junho de 2011 há um campeonato para ver quem mente-mais-e-pior e, em simultâneo, tem o raio-de-uma-lata. Os melhores nestas duas disciplinas mantêm-se no governo ad nauseam, até aparecerem cartazes no tour de França e na Estação Espacial Internacional. Só saem quando a sua reputação não se distingue da lama onde nadam.

Maria Luís Albuquerque e Rui Machete estão bem colocados, são esperanças particulares de Passos (o próprio, como se sabe, um peso-pesado da peta, patranha, baldroca, da pantomima e do entremez). E todos somos testemunhas de como eles se têm esforçado, com enorme lata, no campeonato de mentir muito e mal.  Maria Luís tem a desvantagem de ser até há pouco tempo uma desconhecida. O seu currículo, de menor extensão, é mais facilmente arruinável. Já Rui Machete, com aquela longa e velha fama de senador e general na reserva do partido, tem tudo para ganhar a taça. Depois das estratégicas elipses curriculares e das extravagâncias da sua memória, este episódio com a Rádio Nacional de Angola mostra como ele está disposto a tudo.

«Machete: s. m. sabre de artilheiro com dois gumes, faca de mato, viola pequena, cavaquinho.»

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A fé nunca morre

No Blasfémias aproveitaram o rescaldo das eleições para verter mais cera na hagiografia de Vítor Gaspar (1 e 2). Já se sabe, os santos morrem para que a fé possa sobreviver.


sábado, 28 de setembro de 2013

O civismo e a caça ao Raposo

«O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.» (Henrique Raposo, in "Uma cidade sem cães, s.f.f.", Expresso)

Por acaso, até concordo em boa parte com esta frase de Henrique Raposo. Não concordaria que fosse ele a decidir o que é “civismo” — o homúnculo é demasiado reaccionário (não misturar com conservador) e confunde demasiado os seus interesses e os do country club a que aspira ser membro com o interesse geral para que o deixemos ditar unilateralmente leis para a urbe. Como ele desejaria.
Raposo utilizou a frase num artigo onde revelou a sua utopia («pessoal, intransmissível e impraticável», concedamos-lhe) de cidades sem cães.  Eu, por exemplo, também tenho utopias semelhantes, entre as quais as de cidades sem crianças. Parafraseando Henry Fox (ele há-de gostar da versão british do nome, não?, no seu fato de riscado e tudo), cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um puto a rosnar, cidades onde um sujeito não tem de aturar a petulância dos pais, ai, esteja descansado que ele (o puto) não morde, nem lhe berra aos ouvidos, nem desperta em si o instinto assassino da espécie.
Outra das utopias que tenho é a de cidades onde os fumadores não são excepções e são decapitados de cada vez que deitam com o maior desplante a beata ao chão, a enterram na areia da praia ou despejam os cinzeiros dos carros nas bermas das estradas. Mas a maior e mais utópica utopia que tenho é a de cidades sem teenagers e universitários aos berros símios pelas ruas, a partirem garrafas e copos como quem deita a beata por cima do ombro, com a mesma naturalidade dos gestos comuns e aceites pela civitas, a mijarem pela cidade inteira como se a humanidade de que com generosidade nossa ainda os deixamos fazer parte não tivesse inventado a retrete e o recato da retrete, a mijarem-me a porta do prédio com o mesmo à-vontade e conversas imbecis e desprezo que têm nos balneários da escola pública que tanto custou a instituir e que eles não merecem nem em bebés.
Os cães de Raposo são um problema na cidade, evidentemente. Há falta de civismo por parte da uma grande parte dos donos de bichos (que, menos mal, já não põem as suas crianças a cagar no espaço público, embora ainda as ponham a mijar ali com irritante frequência). Há um desprezo egoísta desses mesmos donos pelas pessoas que não simpatizam ou mesmo têm pavor dos bichos que para mim até são geralmente amorosos. A trela ou o açaimo não são imposições da Inquisição, são formas sensatas de procurar o equilíbrio entre quem quer passear os seus bichos e quem a eles tem aversão ou medo. (Ainda que, se pegássemos nas ideias neoliberais para a humanidade e as aplicássemos aos canídeos, devêssemos na verdade soltar todos os animais da terra e deixá-los, como os rafeiros do Lemon Brothers, competir livre e selvaticamente pelo território, pelo mercado, pelas canelas do Raposo.)

Voltando à frase de abertura (até porque tenho de ir trabalhar, o Expresso não paga os meus devaneios), o civismo não nasce, de facto, «no coração dos homens e não está na genética de um povo». Não de todos os homens, não por certo de todo o povo. O próprio Estado de Direito é uma aberração histórica que apenas foi possível implantar porque houve um tempo em que homens bons, cultos, inteligentes, intelectuais e, por um acaso na história da humanidade, sensíveis e solidários, houve um tempo, dizia, em que este género de homens tinha acesso ao poder. Hoje, os partidos e os imbecis que lhes permitem a existência, os mesmos imbecis que amanhã, 29 de Setembro, vão eleger dinossauros, seus delfins ou siameses, não estão para aturar homens destes.


Não digo que o civismo «nasce na espada que protege a lei», mas em certas alturas não passa sem ela, ou — vá lá, não sejamos tão raposisticamente medievais na escolha das metáforas — não passa sem a multa ou o tribunal, versões extremas, mas por vezes necessárias e ainda civilizadas, da hoje inexistente censura social a comportamentos egoístas, cretinos e lesivos da liberdade alheia. O Estado de Direito e os seus tribunais são, aliás, o único obstáculo entre mim e o meu desejo selvático de anunciar ao Bloco ou ao MRPP que a caça ao Raposo é legal durante todo o ano.

Dia de reflexão

1. Muitos acham ridícula a lei que impõe um dia de reflexão antes das eleições. Eu acho ridículo que a lei não imponha 15 dias de reflexão antes das eleições — incluindo o mesmo silêncio e pacatez dos sábados de véspera de urnas.

2. Não me parece provado que se forme melhor consciência política na histeria do circo do que no silêncio dos cemitérios.

3. Todos os dias deviam ser sábado de reflexão ou, em alternativa, inscrevia-se na Constituição o dever de os partidos com mais orçamento guardarem 1440 minutos diários de silêncio em memória da honra que lhes faleceu.

4. Preventivamente, o dia depois das eleições devia ser também sábado de reflexão. E os 1459 restantes (1824, no caso das presidenciais).

5. Na verdade, o sábado de reflexão devia começar às 00h00 de um belo e chuvoso dia de Outono (como o de hoje, por exemplo) e continuar em vigor enquanto a Terra tiver voltas para dar ao Sol.

6. É certo que neste regime algumas pessoas ficariam de certo modo dispensadas de existir, mas, como eles (não) dizem, alguém tem de se sacrificar, não é?