sábado, 29 de dezembro de 2012

O fim da fé

Costumava acreditar no capitalismo e na automatização e informatização dos sistemas de produção. O capitalismo assegurava o crescimento geral e estimulava o desenvolvimento da democracia. A automatização libertava o homem para o ócio.
Entretanto perdi a fé.
Não me confundam: a automatização e a informatização são em si excelentes, mas não me parecesse nada evidente que hoje estejam ao serviço da humanidade. O capitalismo continua interessado em garantir a máxima produção com o menor custo, mas já não há ninguém (com poder) interessado em garantir emprego para os humanos. E, paradoxalmente, a aspiração ao ócio passou a ser uma vergonha, um pecado.
Já não temos como acreditar que os processos e os mecanismos do capitalismo e da investigação tecnológica garantem a renovação dos empregos. O crescimento global permanente é uma impossibilidade e a inovação tecnológica não está a assegurar suficientes novos empregos. O rácio entre chips e humanos é-nos simplesmente desfavorável.
Não havendo epidemias e cataclismos que dizimem suficiente população, o mínimo bem-estar geral só pode ser assegurado por uma diferente redistribuição da riqueza. Mas também isso é algo que o capitalismo não parece nada interessado em providenciar. O capitalismo, tal como praticado nos dias que correm, é uma bela ideia que nos condena.

À falta de outra inspiração, hoje no supermercado evito as caixas automáticas; procuro um funcionário de carne e osso, mesmo que isso signifique estar alguns minutos numa fila.
É uma espécie de luta. Uma luta que perderei, claro: no final, os custos da mão-de-obra extra serão acrescentados às minhas despesas e não deduzidos aos dividendos dos accionistas.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Do estado das artes

«(…) durante 30 anos de absoluta liberdade não apareceram “actividades culturais” de qualidade e consequência: em 2012 continua a não haver teatro, dança, ballet e tudo o resto.» Vasco Pulido Valente, in Público de 23/12/2012

No mesmo artigo em que reconhece que a cultura sempre viveu financeiramente mal neste país, Vasco Pulido Valente é capaz de cometer a frase tremendista acima e de afirmar que os produtores (culturais) «mais do que merecem» a ausência de público. Público que, aliás, tem um manifesto «desinteresse ou repugnância» pela «presença ou só o cheiro da Cultura».
Ora, é curioso que o anacoreta Valente, que reconhece a atávica alergia tuga à cultura e o subfinanciamento da dita, não hesite, como sempre faz, em culpar os produtores culturais pelo (suposto) fracasso das artes em Portugal.
Se não soubéssemos que a especialidade pulidiana são os raciocínios mancos servidos com prosa gourmet, talvez estranhássemos. Ou se não conhecêssemos a necessidade patológica que o arquétipo do velho rezingão tem de considerar Portugal um esgoto.

Curiosamente, nem estou de acordo com a premissa de que a cultura tem sido subfinanciada. Ou por outra: nos últimos dez anos houve orçamentos simpáticos para a cultura, o que acontece é que, como aliás VPV também refere, em Portugal a cultura é um chapéu de abas muito amplas. Tão amplas que tem sido possível acolher na sua sombra com uma regularidade e um cachet impressionantes o cançonetista Tony Carreira e uma miríade de epifenómenos.

Se não há público em Portugal para a cultura é porque aos portugueses têm sido servidas doses maciças de imbecilização nas TVs, nas rádios e nas escolas. Quase todo o espaço público português, incluindo a RTP e os artigos do triste Vasco, está ao serviço da estigmatização das artes. Para os media nacionais, teatro em Portugal são as comédias do sr. José Pedro Gomes. As comédias de J. P. Gomes (por vezes hilariantes) já eram quase tudo o que a maioria dos portugueses suportava e quase tudo a que a maioria dos portugueses assistia, mas a crise veio trazer uma súbita necessidade de humor ao país. Os nossos concidadãos, néscios e carentes como crianças órfãs, nunca foram encarados como seres inteligentes e interessados em alguma coisa diferente da anedota, mas agora a anedota é também caridosa e salvífica. Ainda ontem na Prova Oral da Antena 3, do sintomático Alvim, se reforçava esta crença, à sua maneira, natalícia.
Pelo seu lado, as escolas, na senda dos programas televisivos de talentos anónimos, estão mais apostadas em levar os meninos ao palco do que em sentá-los na plateia. As escolas, corpos docentes inteiros, como as TVs, seguem a ideia de que quem é capaz de gorjear uma cançoneta sem cair do palco é um portento das artes. E estão igualmente disponíveis para incensar o talento mimético e acéfalo. Na mesma medida em que, com honrosas excepções, estão indisponíveis para fazer qualquer pedagogia ou ilustração, aliás o seu mester.
(As universidades não contam para a educação nacional; são geralmente inúteis nesta equação das artes.)

E entretanto, ao contrário do que é apregoado no espaço mediático da paróquia, as artes lusas recomendam-se vivamente. (Posso sustentá-lo com uma lista, se alguém o desejar.) Concedo que seja necessário ir aos teatros e aos museus para saber disso — mas as televisões, as escolas e a opinião pública, incluindo a última página do Público ao fim-de-semana, não sabem como se sentar calma, anónima, regular e atentamente numa plateia. É este, e não outro, o drama das artes em Portugal.

Leitura natalícia: o lado B do Natal

Ontem li este livrinho com seis deliciosos "Contos de Natal que a avó nunca te vai contar". É uma colectânea adequadamente subversiva de quatro autoras e autores catalães e um português. A editora tem o belo nome de O Lado Esquerdo e um logótipo de causar inveja. Já vou tarde para o aconselhar como leitura obrigatória destas festividades, mas 1) Natal é quando um homem quiser e 2) mesmo que não queira, para o ano também há Natal. O livro foi editado em 2010 mas o que são dois anos em dois mil de cristandade? Em Vila Real vende-se na Traga Mundos. Outros povos podem talvez encomendá-lo do Alentejo à mãe Natàlia (a editora) através do site http://oladoesquerdo.org/.



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Impostor

Como alguém que há vários plebiscitos vota em branco, não me cabe defender a honra de quem quer que seja na política, incluindo a esquerda. A direita tem, aliás, boas razões para rebolar de riso com o caso do impostor da ONU. Quem espera um D. Sebastião, acaba por ter um, diáfano e inútil como todos os mitos e mitómanos. E a esquerda teve o seu com o sr. Artur Baptista da Silva.
Contudo, as gargalhadas da direita deviam acabar no momento em que estivesse disposta a reconhecer como também ela crê nos seus impostores. No caso, um bastante mais prejudicial ao país: o sr. Miguel Relvas.
Cedo se percebeu que Relvas era má rês, quando o vimos enredado nas suas contradições, nas suas ocultações, nas suas mentiras, na sua bazófia de chico-esperto impune. No entanto, a direita, tão desesperada para acreditar num governo mais liberal do que o costume (o que até é compreensível), foi sendo condescendente, relativizando, ignorando, fechando os olhos, contemporizando. O tipo era um desqualificado, um oportunista, um cretino, à sua maneira um impostor, mas era o impostor dela.
Hoje a direita bem pensante, Helena Matos e Vasco Pulido Valente vagamente incluídos, bastante depois de todo o português com dois neurónios e sentido de honestidade, já reconhecem que o sr. Relvas é uma voraz mancha no cadastro e um tiro no pé do Governo. (Embora nem sempre estendam o raciocínio para denunciar as más razões por que ele continua lá, as suas ligações perigosas a Passos.) Mas na verdade, tirando uma ou outra hipócrita indignação, ninguém faz muita coisa para que o homem saia. Sair Relvas é cair o Governo, como todos sabemos, e isso, um Governo de direita mais liberal, é coisa que a direita não pode perder, mesmo que tenha de continuar a aguentar, e nós com ela, os seus doutores que não o são, os seus ministros que não o são (não da república, pelo menos), os seus impostores.

A direita poder rir da estupidez da esquerda e dos jornalistas portugueses, mas infelizmente nós, os do voto em branco ou os da genitália no boletim, não vamos poder rir da estupidez da direita e do seu Governo de impostores. Não dá muita vontade de rir quando se está sem cheta no bolso a ver os negócios e a merda que fazem com o país. 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Civilização perdida

É claro que quando li Os Maias era um adolescente retardado e pensei que fosse um livro sobre uma civilização perdida...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Os Maias e o fim do Mundo

Não percebo esta coisa sobre Os Maias e o fim do mundo. Li o livro todo e não me lembro de nada sobre o assunto. (Já foi há muito tempo, é verdade.) Quem disse que era hoje? O João da Ega?

Passeio dilatório (da série "Jogging no Parque")

Ela está a passear no parque com o avô, mas a sua cabeça está noutro lado. Caminha sem convicção, absorta. Atrasa-se, o avô tem de vez em quando de a empurrar e repor no caminho com a bengala, carinhosamente, como se faz a um cabritinho distraído ou tresmalhado.
Não é muito comum virem passear os dois para o parque, mas hoje teve de ser, os pais dela precisavam de ir ao shopping fazer uma coisa e não queriam que ela fosse. Puseram-se a falar com meias palavras, como se ela não estivesse ali, a combinarem o passeio dela com o avô, que dia tão lindo para irem ver o rio... Como se ela fosse estúpida. Como se a tomassem por parva. Como se esta não fosse a quadra que é. Como se ela não percebesse que o objectivo deles era irem sozinhos ao shopping para se encontrarem com o Pai Natal e lhe apresentarem a lista das suas prendas. O avô escusa de ter pressa, ela bem sabe que há muita gente no shopping à espera de falar com o Pai Natal. (Não percebe por que o Pai Natal nunca está no shopping quando ela vai lá.) Os pais se calhar ainda estão na fila. E depois é uma seca ter de esperar por terça-feira. Tantos dias para fazer a entrega. O Pai Natal é como a Worten, que demorou quase uma semana a entregar o computador novo. Ao menos a Pizza Hut entrega na hora, se a gente telefonar. Os pais talvez pudessem ter telefonado ao Pai Natal. Escusavam de ir desesperar para a fila e regressar a casa chateados e irritadiços, como acontece sempre que vão os dois ao shopping. Tinham vindo passear no parque com ela e o avô. Não que alguma vez o tivessem feito, mas isto até é giro. Avô, viste como a ponte abanou quando aquele senhor passou a correr? Que divertido. Vamos abaná-la outra vez? Vamos? Vamos?

Tem razão

O Jornal de Notícias é que não acha justa a distinção de que é alvo o Correio da Manhã. E tem razão. Cada vez tem mais razão.

Correio da Manhã

Não há muitas coisas certas na vida, mas é seguro defender que se um cronista é de direita mais tarde ou mais cedo nos vai remeter para o Correio da Manhã, mesmo que surpreendentemente não escreva lá. Se queremos conhecer o país, dizem, devemos ler aquele jornal. Viver no país, passar a semana atulhado no país, ser quotidianamente atropelado pelo país não chega — é preciso ler o matutino.
A ideia daqueles cronistas é fazer-nos notar como o povo continua violento e selvagem, não estejamos nós por acaso distraídos. Mas não o fazem como uma forma de denúncia, de censura do primitivismo popular, de acusação por as instituições não estarem a melhorar a sociedade. Não insistem nisto para apelar à mudança do statu quo, como se poderia imaginar.
Não. Se os cronistas de direita acenam com o Correio da Manhã como sinaleiros de aeroporto é porque precisam de nos acusar regularmente de não vivermos neste país, de não conhecermos o país. Não importa que se cometam atrocidades em Portugal — o que é grave é nós ignorarmos alguma delas, que alguma nos escape. Não importa quantas violações, quanta violência conjugal, quantos roubos e assassinatos, quantos ossos partidos e membros decepados — desde que possam culpar-nos por não estarmos atentos. O grave não é o quotidiano ser horrendo — é nós pensarmos que ele pode ser diferente e tentarmos viver felizes apesar dele.
Estes cronistas não invocam o Correio da Manhã para nos lembrarem como o país é bárbaro e devia ser mudado. Fazem-no porque querem que partilhemos o seu fascínio pelo sangue. E, sejamos justos, esta vontade de partilhar até revela que há neles alguma coisa de bom.

1. O saca-rolhas

De trás do balcão, o cozinheiro assiste ao programa, divertido, enquanto deita um olho aos grelhados. Restam dois clientes nas mesas e um deles assiste ao mesmo programa. Trocam episódicas observações e piadas sobre o que vêem.
Na televisão aparece Manuel Luís Goucha. Riem mais um pouco. O cozinheiro insinua a dado passo que aquele apresentador também precisava de «um saca-rolhas», e ri-se da espirituosidade do seu dito. O cliente também ri, mas depois recompõe-se. Quer dizer, o crime foi uma brutalidade, mas, bem, o colunista era uma pessoa detestável. O tipo passou-se e vai apanhar uns anos, claro, aquilo não se faz, mas olhe que o outro era mesmo…
O cliente, habituée da casa, é uma pessoa assertiva, informada, cheia de opiniões e certezas sobre tudo e uns trocos. Com frequência atinge um certo grau de empolgamento e utiliza argumentos veementes, de autoridade. O cozinheiro costuma ficar a ouvi-lo, pendente da sua sabedoria. Desta vez também tomou um tempo a avaliar-lhe as palavras. Depois decidiu que aquilo era sanção. Voltou-se de novo para a TV, chocarreiro: «Gouchita, Gouchita...»

2. Cantado ao vivo

Num outro programa, de cantorias, duas figuras públicas mostram os seus dotes. Em rodapé a legenda: «Cantado ao vivo.» O que pretendem com aquilo? Que nos espantemos com o talento da dupla? Ou que desculpemos a sofrível qualidade do que se ouve? «Ao vivo», neste caso, é a informação que pede palmas redobradas ou que evoca as limitações da tecnologia? Alguém na régie daquele canal está entusiasmado com as vedetas e espera que leiamos o ponto de exclamação que se esqueceu de colocar no final da legenda ou aquilo é apenas o realizador a informar que não pode fazer nada quanto à desgraça que ouvimos? Talvez seja alguém suficientemente irónico e confiante na capacidade dos espectadores para decifrarem a sua pequena boutade. Não é impossível que haja alguma vida inteligente na TV generalista.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Do râguebi à Casa dos Segredos

Fruto de um desses equívocos que, repetidos displicentemente, se transformam em mitos, imaginava o râguebi como um desporto de cavalheiros, um reduto onde a força bruta andava a par das boas maneiras. O râguebi ilustrava mais do que outro desporto ou ofício a hipótese de a sensibilidade e a robustez coincidirem num mesmo corpo macho. No campo era preciso aguentar placagens violentas, mas também observar de bom ânimo as regras. Havia a dureza do embate físico e a compreensão do regulamento. Era uma luta primitiva conduzida com as rédeas do sangue-frio. Os jogadores de râguebi, habituei-me a pensar, eram super-homens, mais pelo autocontrolo emocional do que pelo poder muscular.

Ilusão minha. Hoje, na mesa ao lado, trataram de fazer ruir o mito. Falavam de uma equipa universitária de râguebi, mas podiam estar a falar de uma quadrilha de rufias. Os jogadores ali mencionados eram tipos que, se não estivessem bêbados, estavam a andar à porrada. Geralmente acumulavam. Se saíam em viagem, faziam questão de aterrorizar os empregados de estações de serviço e partir algum mobiliário, como as mais aplicadas claques de futebol. Não concebiam estar em público sem demonstrar de alguma forma violenta o seu poder, como machos alfa de um grupo de símios. De alguns dos espécimes descritos pareceu-me difícil assegurar se tinham sido recrutados numa universidade ou num asilo de doidos furiosos. Não ouvia suficientemente bem a conversa para ter a certeza.

De tudo isto os comensais, três machos e uma fêmea, riam, divertidos, sem espanto, conhecedores e apreciadores da fauna. Ninguém naquela mesa deve ter crescido na mesma ingenuidade que eu.
Havia, contudo, alguma inexactidão nos relatos, porque quando um deles mencionava certos jogadores célebres havia quem dissesse que a esse a idade tirara o ímpeto, enquanto outros diziam que, pelo contrário, estava mais combativo do que nunca. E retorquiam que o façanhoso antes referido pela outra parte é que estava já numa pré-reforma de chá e rotary club.

Talvez porque tivesse havido algum exagero nas façanhas descritas e percebessem que com os celerados do râguebi o sangue na mesa diminuiria (a não ser que eles próprios o fizessem derramar insistindo nas divergências), os comensais passaram logo que puderam para o estudante universitário comum, esse vândalo sem prática desportiva obrigatória cuja selvageria era mais consensualmente reconhecida e admirada.
Ouvi-lhes que, a propósito da prática frequente de atirar copos de vinho tinto à alvura do tecto, houve um restaurante cansado de manchas rubras que passou a servir apenas vinho branco em jantares universitários. E isso levantou na mesa a difícil questão de saber se a culpa da excitação púbere é da permissividade dos estalajadeiros se da zurrapa que dão a beber aos discentes. Outro assunto em debate era se os proprietários de restaurantes teriam meios de, por si sós, impedir os grupos universitários de sair sem pagar quando isso lhes apetecia ou se teriam sempre de recorrer à polícia. Apresentavam exemplos, referiam casos de sucesso, de jantares por cobrar.

Não era preciso olhar-lhes os rostos para perceber que os meus co-comensais não tinham abandonado a universidade assim há tantos anos: havia naquela mesa semi-domesticada certas saudades da selva.

Mas os feitos académicos já não me interessavam. Deixei de ligar à conversa, matutando na possibilidade de a equipa de râguebi daquela mesa não ser representativa do râguebi em geral — não desistimos facilmente das nossas ilusões, da nossa candidez.

Voltei a reparar neles quando ouvi que de novo litigavam em matérias candentes. Sexo em público? Todos tinham testemunhado, claro. No Brasil, dizia um. Naquela ilha espanhola (como se chama?, Palma de Maiorca), gabava-se outro. Na Madeira, subiu a parada a moça, dentro de água. Isso era vulgar, desvalorizou um terceiro, admiração seria na areia. Está bem, insistiu ela, mas viam-se mesmo os movimentos.
Isto, percebi depois, vinha a propósito da Gabriela e da importância de perceber se na telenovela original «elas» andavam assim tão descascadas e, presumo, se se viam mesmo os movimentos. A mãe de um assegurava que sim; a mãe de outro que não. A do terceiro dizia que era possível, porque lá no Brasil as coisas sempre tinham sido assim mais…

Como na Casa do Segredos, aliás. Tinham visto aquela parola? Não, a outra, a que se gabava de ser formada e dar aulas e mais não sei o quê e num concurso tinha falhado ao apontar no mapa Vila Real. Quer dizer, como pode alguém não saber onde fica Vila Real, admirou-se o geógrafo que um dia tinha visto sexo na ilha de «Palma de» Maiorca.

Os parolos sempre acham que a suprema ignorância é alguém não saber onde fica a nossa terra. 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Cavalo de Turim: abertura e encerramento


Se O Cavalo de Turim não fosse uma obra de arte por várias outras razões, sê-lo-ia suficientemente pelos quatro minutos e vinte e dois segundos do vídeo acima, a cena de abertura. Durante esse tempo, tudo o que nos é mostrado é a evolução no terreno de um cavalo que puxa uma carroça com um homem sentado nela.
É certo que se ouve a peça musical de Mihâly Vig, e esta poderia ser desfrutada de olhos fechados durante todos os quatro minutos. Mas quando a ouvimos olhando convictamente o ecrã fruímo-la melhor, temos uma experiência mais forte, somos conduzidos a um outro nível de sensações. Imagem e som funcionam como uma peça única, uma instalação. Se fosse curador de um centro de arte contemporânea, gostaria de obter licença para projectar numa sala, em loop, estes poderosos 4’22’’, e duas ou três vezes por dia eu seria um dos visitantes da sala, como uma personagem de Don Delillo ou um gestor onanista candidato às listas de desemprego deste Governo.

O cinema pode ser uma coisa para fruir contemplando, como quadros em museus ou orquestras em palcos. O Cavalo de Turim é uma obra dessas, que durante duas horas e meia nos pede que contemplemos. A maioria das pessoas ignora o apelo. Se não ignorasse, se adquirisse um bilhete, talvez irrompesse um tumulto na sala ao fim de vinte minutos, pateadas, assobios, indignações, exigências de reembolso. Béla Tarr não fez o filme para valer os seis euros que custa um bilhete de cinema num multiplex. O filme incomodaria as pipocas, os comentários jocosos, as trocas de sms. Seria aborrecido.
Para O Cavalo de Turim não há mais de umas poucas de dezenas de espectadores que se submetem ao ritual colectivo do silêncio e da contemplação. Exibi-lo não é uma actividade lucrativa, do ponto de vista monetário. Contudo, exibi-lo é um trabalho que alguém tem de fazer, se queremos comunidades decentes, que respeitam os interesses das suas minorias silenciosas e contemplativas. Da sua reserva de inteligência e bom gosto, talvez nos seja permitido dizê-lo.
A democracia não é uma questão de escolha, é a questão anterior da possibilidade e liberdade de escolha. Que o mercado não assegura. Talvez o Governo tivesse o dever de pensar nisto antes de fechar a RTP2 e preparar o terreno para outros males de lesa-intelecto. Se quisesse ser respeitado.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A televisão a cores…

Já fui um gajo de fé. Em rapaz acreditava no progresso. A televisão lá em casa era a preto e branco, mas eu tinha a certeza de que mais tarde ou mais cedo ela ia começar a dar a cores. Em certos filmes da minha preferência, os céus iam azulando, adivinhavam-se já pontinhos de verde nas árvores, pinceladas de vermelho nas poças de sangue. Era o aparelho a esforçar-se. Púnhamos-lhe a mão e ele estava quente, com a febre de se colorir. Mesmo a desoladora areia que em tantas noites de Inverno ocupava o ecrã em horário nobre amarelecia de semana para semana, a caminho de ser um Saara tremeluzente.

…e O Cavalo de Turim 
Ontem, enquanto via o filme O Cavalo de Turim, evoquei aquela fé antiga. Era o meu espírito num contraponto entre a juvenil alegria da crença na cor e a não menos prazerosa melancolia da escala de cinzas. Naquela fase, o filme ainda hesitava entre o vazio do branco e a opressão do negro (não havia outras escolhas). Depois toda a evocação cessou, a resistência era inútil, desajustada: o filme rendeu-se definitivamente a um negrume formal e metafórico. E eu com ele.

Banda sonora

 ...para o post anterior e para o que se seguirá dentro de duas horas:


(Belíssima peça musical de Mihâly Vig para e omnipresente em O Cavalo de Turim.) 

1. Correr à noite

Gosto de correr com a noite instalada. Bem, gosto de correr sempre, mas de uma forma particular quando, no Inverno, as trevas já desceram sobre a cidade. Uma parte do percurso que faço, no vale estreito do rio, não tem iluminação pública, e em noites sem nuvens e sem Lua é uma insensatez correr ali, no breu profundo. Insensatez que cometo repetidamente, sem hesitações, com uma alegria intransmissível. Por (raras) vezes encontro outras pessoas (quase vou de encontro a outras pessoas), e nessas ocasiões pigarreamos um aviso mútuo no derradeiro instante ou rimos uns para os outros da iminência de chocarmos, cúmplices anónimos, sombras sem rosto, felizes debaixo dos nossos capuzes ou dentro dos nossos gorros e da nossa insânia.
Nas noites nubladas, em particular naquelas de nuvens baixas, quase névoa, o percurso fica razoavelmente alumiado, efeito do reflexo da iluminação da cidade nas nuvens. E a noite é então ali um mundo levemente estranho, com uma luzência avermelhada, como um dia de eclipse solar, uma insónia no Árctico ou em Marte, assim surreal e acolhedor.
De todas as noites, a mais fascinante para a corrida nocturna é a de Consoada, na hora em que as pessoas se estão a instalar para a ceia e deixam as ruas desertas excepto nos largos onde ardem madeiros. Na Consoada, não se imagina que andemos na rua, que desçamos ao parque. A margem do rio é o último sítio onde somos esperados. Correr ali nessa hora é o mais próximo que se pode estar da solidão adâmica ou do isolamento pós-apocalíptico. Quem quereria isso, não é? Quem quereria experimentar uma ausência primitiva ou pós-civilizacional de seres humanos?
Na noite de Consoada, a vontade de correr lado a lado com o rio (e só com ele) digladia-se em mim com os sentimentos filiais e fraternais que a quadra me exige. E perde quase sempre — tenho isso a favor da minha humanidade. 

2. Correr na quarta dimensão

Sítios acolhedores para correr não são apenas o Éden e o the day after, esses lugares de ausência. Mantendo isto num registo de sci-fi, a quarta dimensão também se revela assaz recomendável. Ambos os mundos oferecem possibilidades excitantes. Calcorrear a solidão ou cruzar a urbe paralelo como um fantasma — capaz de ver, ouvir e cheirar mas invisível, silencioso e inodoro, um ectoplasma de Reebok, sweatshirt e curiosidade impertinente —, eis as duas faces da minha moeda. Na primeira, sou apenas eu e o mundo não-humano: o ímpeto ruidoso e instigador do rio nas represas e nos rápidos e o seu balsâmico murmúrio nas zonas de abrandamento, o canto livre de rouxinóis ou melros insones, salamandras em vagares de lesma, com sorte a minha garça-real a patinhar num baixio, como há três noites. Na outra face da moeda é todo o mundo — e eu ausente dele, interceptando-o apenas com o olhar e com o vício de efabular, coexistindo sem conviver.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Such a lovely day (jogging no parque)

Quilómetro 2
O miúdo gostava do pai e da mãe. Eles não gostavam um do outro. Quando finalmente deram o passo certo, o miúdo ficou triste como se diz da noite. Nos dias de custódia do pai, ele informava-o de tudo ao contrário, ao falar de casa. No regresso, fazia o mesmo ao apresentar o relatório do dia à mãe. Imaginava-se capaz de, mentindo quanto ao que diziam os pais um do outro pelas costas, voltar a uni-los. Depois pensou melhor. Quando eram uma família, o pai nunca o levava a passear no parque, nunca jogava à bola com ele nem lhe comprava gelado. Não o levava ao cinema nem se ria das piadas e das tropelias. Talvez aquele divórcio não tivesse sido má ideia. Ao contrário do que diziam na escola, agora é que ele tinha pai, mesmo que só de quinze em quinze dias.

Quilómetro 4
Duas miúdas ainda com cara de anjos e roupas de marca macaqueiam sem inocência o andar e as expressões de membros de um gangue. Detêm-se num cruzamento. Hesitam quanto ao caminho a seguir. Uma delas sugere a esquerda, tem menos gente e mais árvores. Vão de certeza fumar às escondidas.

Quilómetro 6
São um casal, pouco mais do que adolescentes, fotografam-se e fotografam o parque inteiro. Fazem poses. Escolhem ângulos. Demoram-se. Parecem sensíveis à beleza outonal.

Quilómetro 8
Um homem pára o carro. Dir-se-ia saído de uma máquina de envernizar e de engomar. Os sapatos pretos brilham, têm reflexos prateados, de tão novos. As calças, com um vinco como um fio-de-prumo, e o blusão anguloso, de corte impecável, parecem adereços de uma produção de moda. O bigode foi acabado de aparar, milimetricamente. O cabelo, branco como farinha, ainda molhado do duche ou embebido em gel, tem desenhados os riscos do pente, paralelos e direitos como carris na estepe russa. O carro é um BMW e, apesar da propensão do dono para os alinhamentos perfeitos, foi estacionado numa diagonal negligente, ignorando as marcas no pavimento, ocupando dois lugares. À patrão, diz o povo.

Quilómetro 9
Lá estão de novo as miúdas clandestinas, casacos pendurados na cerca de madeira, os braços nus em Dezembro para reforçar o desafio façanhoso com que nos olham. Batem os maços de tabaco na mão como vêem fazer aos mais velhos, forçando a saída de mais um cigarro. Mal podiam esperar para o fazer. Mas, olhemos melhor: não é um maço de tabaco. É o telemóvel. Talvez tenham vindo só passar a tarde no parque, raios.

Quilómetro 10
O casal de fotógrafos está agora à saída da última ponte pedonal a sul. Ele de joelho no chão, ágil, ela a sorrir para ele, tímida e encantadoramente, nas suas calças sexy e inesperado casaco comprido. São amorosos e sensuais. Mas depois ele fala, com voz grossa, grosseira, sotaque de guna, «Tá quéta, caralho! Foda-se, tá quéta!», e o (meu) idílio acaba-se, não importa como lhe responde ela.

Quilómetro 12
Último cruzamento. O percurso transforma-se numa rampa em paralelos. Na esquina, duas figuras, versões femininas de Dom Quixote e Sancho Pança. Cada uma delas tem a sua própria preocupação. A da frente, alta, magra, calções curtos sobre meias pretas, pernas torneadas, camisola de gola alta realçando estrategicamente o peito, diz que o problema são os saltos, que se enfiam nas juntas da calçada. A outra, baixita e redondita, sapatos rasos, tentando acompanhar, diz que o problema é a subida. E eu, esbaforido, concordo com ela.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Voz

Por vezes lamento ter-me cruzado com os dois volumezinhos mágicos de Uma Campanha Alegre. O país não precisava de mais um queirosiano.
Tenho mentido quando digo que não houve nenhum livro que mudou a minha vida. Aqueles mudaram. Não porque tenha decidido imitar o estilo do autor, mas porque me era impossível evitar fazê-lo. Desde novo imito (ou tento) o que quer que me tenha encantado na hora anterior. Se havia mundial de futebol, no fim das transmissões não queria mais do que jogar à bola; quando o hóquei tinha a importância de passar na RTP1 (o único canal português que apanhávamos lá em casa em certa altura), os meus velhos sapatos ganhavam rodas e tudo servia de stick. Havia hipismo nas Romanas? No dia seguinte estava a saltar briosamente obstáculos, às costas de mim mesmo. Festival da Canção? Subia ao palco, Vítor Espadinha esforçado. Super-Homem? Saltava do terraço. Coboiadas? Filmes de guerra? Ficção-científica? Aceitava qualquer papel, versatilidade era o meu nome. Quando dei com as Farpas era inevitável que elas contaminassem tudo o que escrevi a seguir. A questão é que as coisas que imitava antes não tinham o génio do Eça de Queirós e, consequentemente, o impacto duradouro de um trauma de infância.
A prosa queirosiana é uma armadilha (enreda-se sobre si mesma), uma maldição. Usa as palavras como quem usa o lápis do caricaturista e usa as palavras, no sentido em que se aproveita delas para os seus lúdicos e pouco sérios intentos. O escritor queirosiano tem aliás a seriedade de uma anedota num funeral. E a conveniência de um inimigo do defunto. Quando se senta a escrever, até pode ter boas intenções, vontade de elogiar isto ou aquilo, mas acaba sempre a distorcer, a exagerar, a procurar os vícios e os defeitos, a procurar o pior — e formas imaginativas de o afirmar. 
Malogradamente, o exercício é prazenteiro. Vicia. Voltamos sempre a ele como ao pó. É preciso esforço (ou neura) para escrever alguma coisa noutra perspectiva, noutro tom.
Quando passei a tentar a ficção, insisti em livrar-me da influência do mafarrico do monóculo. O meu Aranda (opus II), por exemplo, cometeu a proeza de se inspirar num livro de Martins Amis (esse queirosiano inglês) sem lhe imitar a prosa, o melhor do autor. O que demonstra como podemos ficar estúpidos quando queremos ser órfãos.
Talvez tenha entretanto encontrado a minha voz. (Ou mais do que uma — sabem como é, esquizofrenia, transtorno bipolar, essas coisas). Parece que os escritores são pessoas que passam o tempo à procura duma voz, como certos religiosos literais ou certos hóspedes de manicómio, e eu não me esquivo à presunção. O que de resto, com o narcisismo, me parece bastante típico de um queirosiano. 

***

P.S. Queriam post mais auto-evidente? Pretendia falar de coisas boas, espectáculos que vi, livros que li, músicas que ouvi, sítios que visitei — matérias de que o país precisa —, mas acabei previsivelmente na caricatura.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cretinos ideológicos

O fim do Câmara Clara é um exemplo de como a crise tem as costas largas. É a prova de que estes tipos que nos governam são, entre outras coisas, gente tosca ou cretinos ideológicos. Quer dizer, era aquele programa uma das «gorduras do Estado»?
Seremos um país pobre por erros nossos e fado, fatalidade. Mas seremos um país espiritualmente pobre porque somos governados por pobres de espírito, apoiados por outro género de cretinos (de carreira ou opção) que não tiram o cu do sofá para ver um espectáculo e quando nele instalados não lêem um livro*.

*Alguns lêem-nos, mas como se sabe a literatura não evitou os nazis, como evitaria estes pequenos preconceituosos?

«Pequeno ensaio caricatural sobre o Casanova»?

O «pequeno ensaio caricatural sobre o Casanova», ontem aqui mencionado, seria um escrito desnecessário ou redundante, dei-me hoje conta ao voltar a passar os olhos pelo artigo que o crítico da Ler escreveu sobre David Foster Wallace. Desnecessário porque quando Rogério Casanova escreve sobre Infinit Jest já parece uma personagem da própria obra a fazê-lo, pelo espantoso conhecimento que revela do livro, pela idiossincrasia da sua prosa e mesmo pelo carácter de coisa abstracta do crítico. Casanova poderia também, facilmente, ser um avatar de DFW, lêmo-lo com o mesmo fascínio e a mesma estranheza. Ou talvez um misto de programa informático e implante neurológico do escritor, deixado por este para se activar após a publicação (americana) do livro. As crónicas de Rogério Casanova e as suas críticas literárias, não há como pensar de outro modo, são decerto apêndices d’A Piada Infinita. (E esta caricatura, embora pareça, não é pejorativa).
Mas o tal «pequeno ensaio» seria também redundante porque Casanova tem uma breve caricatura n’Os Idiotas, livrinho que, se pedirem mesmo muito, talvez uma editora tenha a bondade e a sageza de publicar no ano de eleições autárquicas que se aproxima.

Periférica


Uma amiga recente anda a ler a Periférica e diz que, «carago, é como estar apaixonada por um namorado morto!». Gosto desta abordagem, pela boa-disposição e pela franqueza médico-legista.
O post «Expectativas», surpreendentemente popular, trouxe evocações da revista que um dia fizemos, quando éramos jovens e tesos. É agradável recordar aqueles tempos, mas pouco útil sentirmo-nos órfãos deles. Por definição, os órfãos não recuperam a progénie.

Que sentimento então?

A Periférica deveria ser uma coisa para nos lembrarmos daqui a quarenta anos, em jantares de velhos combatentes ou no lar, em robe e babete, se o alzheimer o permitisse. Entretanto, deveríamos ser deixados em paz a escrever os nossos livros, a plantar as nossas árvores, a fazer os nossos filhos, a casarmo-nos e a divorciarmo-nos, a fingirmos que temos uma carreira útil. A Periférica deveria ser o projecto que nos orgulharíamos de ter oportunamente morto e que nos arrependeríamos tarde demais de não ter desenterrado, quando confrontados com o fracasso das nossas vidas individuais. A hipótese necrófila não deveria ser posta uma década apenas depois de o bicho ter visto a luz do dia, meia dúzia de anos após o óbito. Quer dizer, desenterrar-lhe o cadáver agora pode trazer surpresas desagradáveis, como haver ainda carne agarrada aos ossos, um corpo incorrupto que certos fanáticos quereriam de imediato pôr numa vitrina e adorar religiosamente, organizar peregrinações, criar uma seita.

De resto, uma Periférica é coisa que se faz aos vinte ou trinta, e da última vez que olhei havia gente dessa idade no país. Por favor, rapaziada, não nos façam passar pelo ridículo de vedetas dos eighties a voltar aos palcos. Não somos génios como o Morrisey. Somos o Cliff Richard, temos vinhas para plantar no Algarve e exemplares da primeira edição para assinar. Não estamos velhos, bem sei, mas temos pneus e colesterol. Uma dor aqui e outra ali. Prenúncios. Ou preguiça, pronto.

Não, não estamos de novo a ficar jovens — mas estamos de novo a ficar tesos, sem cheta, e isso é perigoso. Era agora que uma rapaziada qualquer nos pedia para usar o nome da rosa, a cedência do título, o direito à criatividade sob a égide periférica. Era agora que o país se surpreendia com outros pretensiosos zés quaisquer que se punham a fazer uma nova Periférica a partir duma moita na Beira Alta ou duma fraga em Melgaço. Agora. Antes que fiquemos mais pelintras e isso nos dê ideias estúpidas. Antes que nos despeçam e fiquemos sem nada mais útil para fazer. Antes que imaginemos que o nosso projecto para os anos cinzentos que aí vêm é tirar a capa e as calças de lycra do armário, é encenarmos a noite dos mortos-vivos, é fazermos o número 15 da Periférica — em vez de algo com sangue fresco, algo que inclua bombas e atentados, por exemplo.

Talvez haja um projecto para quarentões lisos e desempregados, mas não tem de ser o de zombies quebra-corações, não tem de ser uma ridícula reunion band. Ou tem?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Expectativas

Faz mais de 10 meses que, por razões financeiras, deixei o luxo de comprar a Ler. Hoje não resisti, tive uma recaída, interrompi o processo de recuperação da frugalidade. Confio que os avalistas da minha transformação num homem parcimonioso aceitem que a tentação era demasiado grande, mesmo para um cristão-novo como eu: entrevistas a Philip Roth e Vítor Silva Tavares, Rogério Casanova sobre David Foster Wallace…
Infelizmente a aquisição da revista implicou a queda noutro vício em remição: leitura em espaço público com copo de vinho à frente. Não são os malefícios mais previsíveis da exposição e do álcool que temo, mas a frustração que posteriormente me toma. Enquanto leio a revista em ambiente de fumo e copos, encho-me de um espírito de tertúlia, mesmo que à mesa não haja mais ninguém. Registo mentalmente tantos comentários e considerações sobre os textos que leio, acometem-me tantas ideias que temo precisar de fundar hoje mesmo uma outra revista só para recolher toda a prosa que me ocorre. Talvez comece mais um romance ou livro de contos. Um longo post cúmplice sobre o «what if?» que Roth diz ter levado à escrita de todos os seus livros. Quem sabe um pequeno ensaio caricatural sobre o Casanova.
Mas nesta idade já não há embriaguez que dure. Caminho os duzentos metros até casa, ligo o computador, calço as pantufas e aqueço o chá e… fico cinco horas acordado para escrever aquela coisita sobre os albaneses que nenhum de vocês queria ler.

Já fiz quarenta há quatro, mas apetece citar o Pedro Mexia na sua crónica de sábado, comemorativa da entrada no clube da ternura: «Aos 40 anos, vivo com “expectativas diminuídas”, diminutas, em diminuição.»
Felizmente, ao contrário dele, as minhas expectativas tendem a voltar quotidianamente, mesmo que para esbarrarem uma e outra vez na dura realidade.

Os albaneses

Vítor Silva Tavares, entrevistado para a Ler e falando dos seus ódios de estimação, refere a dado passo a figura dos albaneses, esses inimigos que temos de instituir para balizar as nossas palavras e as nossas acções, para que nós mesmos tenhamos mais sentido. (A ideia virá do livro A Tia Júlia e o Escrevedor, de Vargas Llosa, que não li.)
Um albanês não tem necessariamente de ser alguém que nos provoca antipatia pessoal, mas é em todo o caso um indivíduo que voluntária ou involuntariamente representa algo que detestamos e nos puxa pela língua.
No debate público nacional, os albaneses não são forçosamente pessoas concretas. A designação original pretende aliás remeter para um protótipo, uma categoria, uma abstracção. Um determinado indivíduo pode ser um albanês pela sua intrínseca capacidade de representar a espécie odiada, mas albaneses podem ser (e são-no demasiadas vezes) apenas uns fantasminhas modelares que dão jeito para o tipo de discurso que queremos proferir, para o tipo de ideias que queremos defender.
Convém estar alerta para os perigos que o abuso de albaneses acarreta. É preciso perceber que a albanização do debate cria uma realidade artificial. Quando de um lado e doutro das questões os contendores apenas argumentam contra os seus albaneses, na verdade não argumentam contra ninguém — ou deixam de fora do debate as pessoas moderadas, sensatas, capazes de verem os prós e os contras das coisas, de verem os erros alheios e reconhecerem os próprios.
Os jornais e os blogues estão cheios de gente que, infelizmente sem talento queirosiano, se dedica a ridicularizar o adversário ou a estigmatizá-lo, pondo em prática uma ancestral e desleal forma de desvalorizar argumentos. Ora, quando isso não cumpre a função de nos entreter com qualidade literária, limita-se a dar corpo à expressão «diálogo de surdos».
Na magna questão da crise é assim que acontece: há uma catrafiada de gente a discutir com as suas caricaturas, a esmurrar os seus imaginários sacos de boxe, e a deixar desolados e sem interlocutor os cidadãos moderados que sobram. E são os moderados que podem salvar o país.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Alentejo

Durante a maior parte da minha vida, fui de paisagens montanhosas. Talvez ser transmontano tivesse nisso um papel (mesmo que o meu “patriotismo” sempre tivesse sido débil). Achava a planície monótona, sem segredos, com todas as possibilidades demasiado à vista, sem espaço para a imaginação, para fantasiar sobre o que se oculta por trás de um monte ou na sombra de um vale profundo.
Hoje o Alentejo Interior é o meu paraíso na terra. A luz, a profundidade de campo, a linha do horizonte, toda aquela cúpula celeste, a fauna, a arquitectura, o interior das casas, os terraços, o meu alpendre de Verão, o vinho, o Vovó Joaquina — está lá tudo o que preciso para ter dias felizes.
Nestes tempos sem soluções económicas nem ofertas de emprego, façam do Alentejo a Florida da Europa e de mim um anafado alemão na reforma. Aceito que o façam compulsivamente.

Pensar pela própria cabeça

Muitos anos atrás, à entrada de uma discoteca, um de nós invocou uma qualquer passagem do Guerra e Paz para sustentar uma opinião ou ilustrar uma ideia. Um tipo que hoje é juiz censurou-lhe a bengala: «Deixa lá o Tolstoi em paz. Não consegues pensar pela tua cabeça?»
Não tenho a certeza de que a observação do futuro magistrado tenha sido uma legítima defesa da independência de espírito. Talvez ele apenas quisesse proibir as referências literárias com receio de não ter nenhuma para aduzir (não era garantido que as suas leituras fossem muito além do Código Penal). Mas por alguma razão este episódio sobreviveu na minha memória. Recordo-me dele com frequência. Nos dias que correm, mais do que nunca.

O debate político é hoje dominado por gente que não frequentava aquela discoteca (embora seja da geração que o fazia) e portanto não ouviu o sábio conselho. O que é pena. Impressiona a quantidade de tipos, sobretudo de direita (a esquerda é mais instintiva, menos escolar), que tem uma bibliografia no lugar do cérebro, um cânone de pensamento político que consulta como a Bíblia e a que obedece como ao Corão. A Ciência Política é, para estes espécimes, como um manual de etiqueta ou um guia para uma vida saudável. Habituados a mergulhar nos calhamaços e a tentar decorar as ideias dos outros, esqueceram-se de construir as suas, e agora, perante qualquer dilema no quotidiano, não pensam no que fazer, mas no que fariam as suas fontes bibliográficas.
A ideia romântica de que a direita e a esquerda tinham acabado, de que a dicotomia não fazia sentido, não havia explicações ou soluções só de um lado, durou pouco tempo. As novas gerações políticas activas são acerrimamente de esquerda ou de direita. Muniram-se para a vida como alguém que vai às compras e traz todos os produtos da mesma gama, compra todas as peças da colecção, o pacote completo.
Este comportamento é meticuloso em certos exemplares de direita. Refira-se um assunto, apresente-se um problema e eles logo se perguntam interiormente o que diz o cânone sobre aquilo. Só depois comentam ou agem, como um capítulo animado de uma das suas obras de referência. Fazem-no sem mencionar as fontes, é certo, mas percebe-se que a ironia, o cinismo ou a fleuma são em segunda mão, já vistos, prototípicos.
Finanças? Indústria? Agricultura? Artes? Já alguém pensou por eles, e escreveu artigos ou livros sobre o tema. Sexo? Os seus autores também fornicavam, sai um volume de capa dura.

Por vezes fico com a ideia de que a direita actual não tem militantes entre as novas gerações, mas segundas e terceiras edições encadernadas a tecido riscado e todas contentes por não estarem na prateleira.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Mulheres a fumar

Vejo-as com alguma frequência ao domingo, duas tipas sentadas no lancil baixo do passeio a fumarem. É uma rua com uma certa constância de tráfego, e do outro lado há edifícios com arcadas e um ou outro café. Daquele lado, um passeio mais estreito, árvores e uma ravina para um nível mais baixo da cidade.
Porque escolhem sentar-se ali, num lugar de estacionamento vago, mesmo numa noite fria como a de ontem? Que fascínio pelo lugar improvável, segurando os cigarros com sorrisos mútuos, sorvendo o fumo com evidente prazer? Não são adolescentes que necessitem de sair de casa para esconder o vício recente ou que sintam a ânsia de o exibir ao trânsito, em desafio. Embora haja algo de desafio nelas, uma certa cumplicidade que nos deixa ostensivamente de fora enquanto estacionamos o carro.
Vestem roupas do género das que se podem encontrar na Sport Zone, na secção de ar livre (montanha, trekking, essas coisas). Talvez tenham acabado de chegar de uma caminhada e fumem um cigarro revigorador antes de subirem para jantar. Talvez uma delas esteja de partida para uma semana de trabalho fora e o cigarro seja a forma de se despedirem. Ou terá chegado e aquilo é o reencontro? Riem por terem os maridos em cima, na cozinha, a prepararem o jantar? Ou são elas um casal e esta é apenas uma das muitas formas que têm de estarem bem uma com a outra?
Não lhes vou perguntar — mas não porque o pudor se imponha. É que não preciso de respostas. Preciso de cenas daquelas, portas abertas à indagação e ao devaneio. À intrusão. É esse o meu vício.

Salários e responsabilidades

Lembro-me que, anos atrás, fiquei contente quando descobri que certos pedreiros ganhavam o dobro de mim. Não era exactamente o meu gene comunista a manifestar-se, era a ideia de que se algo corresse menos bem, se tivesse de sacrificar-me e ir trabalhar ao ar livre na intempérie, no inferno do Verão ou no gelo do Inverno, pelo menos teria o consolo de saber que poderia ganhar bom dinheiro, se trabalhasse mesmo muito.
Parecia-me uma correcta organização do mundo, o capitalismo a funcionar da forma certa. Maior produtividade, maior vencimento. Boa remuneração para trabalhos difíceis, mas necessários, que a generalidade dos homens de bom grado recusaria.
Mas cedo descobri que aqueles casos eram excepções no tempo e no espaço. O capitalismo, pelo menos na versão portuguesa, não premiava o esforço, não tinha incentivos para as profissões duras. A pessoa tinha sorte ou azar, era tudo. Ter uma profissão dura não era uma opção com um bom salário em vista, era uma desgraça, algo em que se caía por falta de alternativas. As tabelas salariais das profissões e das empresas não estavam feitas a pensar na dificuldade do serviço. Na verdade, quanto mais sorte se tinha maior era o vencimento. Quanto mais limpa e menos custosa fosse a função, mais bem paga ela era. Supostamente porque a função mais limpa e mais confortável era também a que tinha mais responsabilidade.
Só que responsabilidade não é um conceito lusitano. A palavra existe no nosso dicionário, mas com outra semântica.

Para muita gente, conquistar uma posição mais alta na hierarquia de uma empresa ou instituição é obter um privilégio, ascender a uma espécie de estado de nobreza medieval. A sociedade portuguesa está cheia de viscondes e duques, gente cujo vencimento superior ao dos seus subordinados não se destina a pagar a responsabilidade, a liderança que devem assumir com dedicação. Um salário alto é um dote, um tributo, algo que cai na conta ao fim do mês como a renda devida ao sangue fidalgo. Um direito natural que não precisa de mais justificação do que titulo outorgado ou herdado. Ser chefe de secção ou director de serviços não significa que se tenha de chefiar ou dirigir coisa alguma. Significa apenas que se tem uma comenda, que se conquistou o direito a receber mais do que o comum dos mortais e a trabalhar menos do que eles.
Este tipo de viscondes tem aversão a ser incomodado com as questões do serviço. É um ultraje que os subordinados lhes peçam uma orientação ou uma decisão. Suas altezas não podem ser aborrecidas com matéria tão vil. Se ascenderam ao estado ducal não foi para sujarem as mãos ou matarem a cabeça. «Eu não posso ser incomodado com estas coisas», ouve-se-lhes com frequência, em tom enojado ou escandalizado, sendo «estas coisas» o serviço por que são responsáveis. O seu trabalho quotidiano, que lhes toma geralmente um décimo do dia, segue uma vetusta tradição lusa: tratar do despacho. E o despacho, como o próprio nome indica, consiste em despachar para os funcionários menores toda a documentação e assunto que careça de resolução, sem mais nenhuma directriz do que um seco «resolva» e a respectiva assinatura e carimbo. Caso o funcionário pretenda manifestar dúvidas ou solicitar instruções deve preparar-se para lidar com a impaciência ou a ira do superior — e para não obter nada do que necessite. Se tiver a veleidade de insistir, talvez perceba de uma vez por todas o que significa liderar ou dirigir, o que significa a responsabilidade: «O amigo trate de resolver o assunto como bem entender e sem demoras», é a resposta que obtém. «E fique sabendo que se isto der para o torto não vou ser eu a cair». E o chefe tem razão, porque em Portugal aos chefes não se lhes exige mais do que o pleno usufruto dos seus privilégios. Jamais ocorre em nenhuma instância da hierarquia a peregrina ideia de pedir responsabilidades aos… responsáveis. Mesmo as inspecções ou os tribunais, nas raras vezes em que são chamados a pronunciar-se, desconhecem o conceito de responsabilização, a não ser que ele se possa aplicar a um qualquer lacaio sem perigo para a nobreza.
Portugal não chegou aqui vindo do nada.