quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Botões-de-punho

A Sábado traz na capa um padre com uma elegância irrepreensível. Parece que se trata do líder do Opus Dei. Não li a reportagem que a capa ilustra, mas presumo que não é sobre fé, altruísmo ou bondade, não é sobre preceitos cristãos ou nobres sentimentos humanos. É talvez sobre dinheiro e poder. Os botões de punho na camisa do senhor padre alimentam a suspeita.
Talvez, talvez a reportagem padeça da síndroma de Brown, não custa imaginar. No entanto, há questões. O que fazem aqueles botões-de-punho na camisa do senhor padre? Foram lá postos pela revista?
Certos monárquicos, alguns industriais e muitos yuppies adoram botões-de-punho. Padres que se querem mostrar iguais aos outros homens vestem calças de ganga, bebem minis ou jogam à bola. Botões-de-punho não igualizam — distinguem. Distinguem geralmente quem está do lado do dinheiro.

Das virtudes da austeridade, digamos assim

A Ler faz 25 anos e eu deixei de a comprar com regularidade. Não porque me tenha zangado com ela ou a ache supérflua. Também comecei por vezes a mudar de corredor para não passar em frente à Bertrand local. Estou a portar-me bem e a viver de acordo com as minhas posses.

Debate

É certo que ainda tenho Pedro Lomba como um tipo de direita sensato e que, quando o lia há uns anos, apreciava boa parte do que escrevia António Barreto, mas na conjuntura actual pergunto-me o que será um debate com Pedro Lomba e José Manuel Fernandes, moderado por António Barreto.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

As coisas que Francisco Assis evoca

Há uns vinte anos havia eleições e o nosso baterista arranjou um gig, como se diria hoje, para tocarmos num comício que tinha como orador convidado Francisco Assis, então presidente da Câmara de Amarante. Éramos na altura suficientemente generosos para não estranharmos que alguém da nossa idade fosse presidente de câmara. E gostasse de o ser. Não recordo se nos pagavam (espero que sim) e recordo menos ainda o que tocámos, certamente as coisas inadequadas do costume. Andávamos a evitar uma carreira-padrão: não éramos punks, não nos excitava o hard rock ou o heavy metal, os Ramones, os Deep Purple ou os Rolling Stones. Não para emular. Não queríamos aliás imitar nada; a ânsia da originalidade foi talvez o que nos condenou. Ou isso ou uma das mil coisas que fizemos mal. Como subir ao palco do Rock-Rendez-Vous (versão pechisbeque da RTP2) com o percussionista usando o fato de casamento, camisa de folhos, laço blue velvet e tudo. (Eu era o do fato de três peças verde-claro, camisa creme de belo riscado vermelho, gravata rosa, a desafiar com o baixo Epiphone uma turba de teenagers contratados no bas-fond lisboeta, com um tipo da produção a tentar segredar-me sobre o ombro irrequieto, a meio do concerto, câmaras a gravar, que não devia excitar as feras, podia correr mal, os putos gostavam era dos Xutos, não estavam preparados para uma linha trad/folk/urbano/pop/rock/glam/foleira como a que nós acabáramos de inventar. Uma felicidade não existir Youtube.)
Tocar coisas inadequadas não era uma obsessão, um capricho, mas acontecia-nos. Num bar minhoto chamado O Comboio, onde as pessoas se sentavam em reservados, como nas lanchonetes americanas ou no Alfa Pendular, teimámos durante uns quarenta e cinco minutos em apresentar as nossas versões de standards jazz e folk americanos, para tédio geral. Pouco antes do intervalo, demos finalmente alegria à terra quando ao guitarrista lhe ocorreu dedilhar o nome do bar numa alusão pimba (apita o comboio, estão de certeza a ouvir a cena). Era uma ironia, uma piada, mas os clientes adormecidos levaram a coisa a sério: levantaram-se e dançaram, como mortos obedecendo a, digamos, Emanuel (não o Messias). Perante aquilo, o resto da banda teve de acompanhar uma extended version do tema. A segunda parte, se recordo bem (e espero que sim, que o passado se vergue aos interesses da minha memória), preenchemo-la com improvisos minimais repetitivos de Roadhouse Blues — foi a nossa vingança.
No comício, não posso jurar que tenhamos tocado depois de Assis falar, mas o longo discurso da figura empatou-nos de qualquer maneira, ficámos pendentes do seu término, ou para finalmente passarmos vergonha em palco quando já nos tinha passado a bebedeira ou para desmontarmos a aparelhagem. E como ele falou. Não as horas ininterruptas de Castro, mas ainda assim mais do que era humanamente suportável. Desconfio que a maioria dos que assistiram ao comício correu no domingo seguinte a votar no adversário do candidato que ele defendia.
Não é que não acerte — não há muito para discordar no seu artigo de hoje no Público, era este o meu ponto —, mas um tipo arrepia-se só de lhe ouvir o timbre. Para o ler é preciso tapar-lhe a cara e o nome com o polegar. Viram alguém a segurar o jornal assim? Era eu.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Álcool a mais

São três, duas delas de mini-saia, todas de tacões. Madrugada. Cambaleiam um pouco e gritam muito: estão eufóricas, é assim que se exprime o sentimento, tanto quanto sabem. Por vezes ensaiam coros, mas, porque lhes falta o talento ou sobra o álcool, não chegam a dar-lhes corpo, não chegam sequer a decidir-se por hinos desportivos ou canções da moda. Enquanto atravessam a estrada, partem nos paralelos os seus copos ou as suas garrafas de cerveja, como vêem fazer aos rapazes noutras noites. Congratulam-se ruidosamente pelo feito, como se tivessem superado uma prova, acertado num alvo difícil, embora aquilo não lhes tivesse exigido qualquer perícia ou cálculo. Não precisam de méritos ou motivos para celebrar, celebram, é tudo. Do outro lado da estrada há carros parados. Uma delas faz um desvio e, puxando a saia, experimenta levantar a perna, acertar com o tacão num farolim. A gravidade e o chão irrequieto não ajudam. Desiste à terceira tentativa, antes de cair. Contorna então o veículo e, ameaçadora, ataca o espelho lateral com mão bamba. A menos cambaleante das três espreita por cima do ombro e diz «chega» e repete a voz de comando, mas não arrisca desacertar o passo. A primeira insiste, tenta um novo golpe, mas sai-lhe outro safanão frouxo, dos que se dão com piedade a um gato arisco ou a um bebé caprichoso. Talvez receie magoar-se ou a capacidade para golpes firmes já não se lhe equipare à vontade de os aplicar. Urra agora de frustração e depois levanta o queixo, com desdém. Que se foda. Considera-se à mesma vitoriosa, aprendeu que o pode fazer mesmo que não vença nada. Junta-se por fim às outras duas num novo cambalear rua abaixo. O espelho sobrevive.

Se confrontado de manhã com a ameaça a que esteve sujeita a sua propriedade, o dono do automóvel por certo hesitaria entre verberar a bebedeira das raparigas e agradecer a bebedeira das raparigas. Afinal: ia tendo prejuízo devido a álcool a mais ou álcool a mais fora a sua sorte? 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A arte portuguesa a gostar de si própria


Elisa Rodrigues - "Dumb" (com Júlio Resende).


Certa opinião publicada gosta de escarnecer das artes e da vida cultural portuguesas. Aparentemente, não temos produção nem talentos nem circuitos que justifiquem um orgulho nacional e muito menos o investimento de um centavo. Tais juízes têm na mente, é fácil presumir, Shakespeare, Mozart, Rembrandt e talvez Jonh Ford, poucos mais. Como se o estrangeiro fervilhasse de talentos históricos automáticos. Ou como se fora das circunscrições da Broadway, de West End e de Hollywood nada valesse realmente a pena. A arte, para estes árbitros do gosto, não é uma coisa viva, mas um estrato geológico que se apreciaria melhor num museu natural do que em auditórios, teatros, galerias, clubes, bares e antros afins. Por isso, não saem de casa, não se afastam das suas bibliotecas e dos seus CDs e DVDs (ou VHS), a não ser para uma ritual (ou turística) ida aos clássicos a Londres ou a Nova Iorque. Ironicamente, assemelham-se às massas na sua proverbial falta de curiosidade, com a pequena diferença de que as massas têm as televisões e as revistas sociais e a escola a atrofiar-lhes a atenção e o gosto e estas elites induzem a si próprias o ensimesmamento — reivindicando o alto patrocínio da História, como quem atesta a nobreza da família pelos fantasmas que lhe assombram o castelo.
E no entanto bastaria alguma atenção e uma pequena dose de generosidade, de abertura de espírito, para descobrir inúmeras possibilidades de prazer estético no país.
Os opinion makers em apreço estão para a pátria como certas populações para as suas cidades: é o mesmo provincianismo que constrói os dois géneros de passividade e ignorância. E se na província muitas vezes as pessoas partem duma vitimização genética, reflexa para denunciarem que habitam o deserto, o resultado final é que ambos os extractos sociais terminam exibindo com a arrogância dos néscios o seu desprezo pelo que existe e eles ignoram e juram não existir.
Recordo como numa das cidades mais bonitas e turísticas do interior do país, que frequentei, alguns autóctones diziam que aquela era uma terra onde não se passava nada, não havia sequer cinema. Havia (ainda há). Mas eles ignoravam, não procuravam, não estavam atentos, não tinham curiosidade. Havia cinema — e concertos e teatro (com menos frequência ou interesse) —; não havia era multiplex, ou shopping, ou pipocas, essas manifestações de uma outra contemporaneidade. Havia um auditório bem simpático e confortável (com programação comercial e alternativa) que infelizmente era por vezes um pouco prejudicado pela vozearia boçal na rua dos universitários que, não o frequentando, juravam pela sua inexistência, um ou outro fingindo até lamentá-la.
Em muitos lugares da província poucos reconhecem ou participam numa vida cultural interessante, quando ela existe, porque se habituaram a imaginar que isso apenas é possível numa grande cidade — construído e alimentado pelos outros. Como alguns escribas imaginam que uma vida cultural decente só é possível nas grandes capitais europeias — ou em certas épocas históricas do passado. Trata-se de um processo de auto-exclusão, de “boicote”, até, assente em ideias limitadas do que é ou pode ser uma vivência cultural. Trata-se de um processo de absentismo que não favorece o crescimento da oferta e, tantas vezes, promove o seu definhamento.
Quem viaje pela internet (e até há pouco tempo pelo país) munido do seu próprio mapa e de ânimo descobridor, disposto a fruir de experiências e não de preconceitos, pode ter belas surpresas e bons momentos. Portugal tem talentos nas artes suficientes para, se postos a circular, assegurarem um quotidiano interessante à maioria das cidades do país, pelo menos às capitais de distrito. Nos mais diferentes géneros musicais, na dança, no teatro, com as suas múltiplas expressões, nas artes plásticas. Quem, dos muitos que opinam, conhece de facto esta realidade ou está realmente disposto a conhecê-la (ou a reconhecê-la)?
As políticas culturais em Portugal são determinadas por um povo deixado na ignorância e na apatia — e pela idiossincrasia dos influentes. Não estando pessoalmente interessada nos assuntos ou sendo a eles avessa, esta espécie permite-se ainda assim emitir pareceres e estigmas sobre eles. É com este historial e neste ambiente que se espera agora em Portugal que o povo pague bilhete para as artes.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Guerra de trincheiras

A dilatória viagem que teimo em fazer por umas duas dezenas de blogues, com diferentes enfoques políticos, é uma rotina demasiadas vezes desoladora. Não é fácil encontrar na blogosfera espíritos independentes, e isso faz-me interrogar se é porque eles quase não existem ou porque a amostra que escolho não é representativa.
Nos dias tristes que vivemos, a opinião está dividida entre os que apoiam e os que são contra. Não esta ou aquela matéria em particular, mas todo o pacote. De repente, não há espaço para concordar ou discordar em parte, concordar com isto e discordar daquilo, achar bem isto, mas também aquilo. A síntese não tem lugar. A opinião deixou de ser antecedida de um menu de onde cada um escolhia os pratos da sua refeição: vem já servida da cozinha e os comensais ou a mastigam vorazmente ou atiram a bandeja à cara do cozinheiro. Não há meio-termo e por vezes nem boas maneiras à mesa. Muitos bloggers, mesmo que apetrechados de argumentos, parecem-se com os tipos que escrevem nas suas caixas de comentários: radicais, indefectíveis, sem paciência para o adversário. A bengalada verbal ocorre amiúde, não no melhor espírito oitocentista romanticamente defendido por João Pereira Coutinho, mas no mais contemporâneo estilo claque de futebol. É, aliás, a camisola o que parece sustentar a opinião que se escreve e não a inteligência, a argúcia, a ponderação.
É assim pouco provável um debate que possa encontrar caminhos diferentes para os anos que nos esperam. Os que são pelo Governo acreditam no milagre da austeridade e não estão dispostos a discutir sequer os pormenores da sua implementação, a coisa é para ir à bruta, sem contemplações, não há nuances, particularidades, equilíbrios ou compromissos que se possam considerar. O tom colérico, moralista ou desdenhoso que adoptam presume uma pureza que despudoradamente se outorgaram. A ironia que por vezes praticam é apenas uma arma de arremesso, não uma ferramenta de auto-avaliação. Levam a sério uma licença para punir e expurgar que os próprios emitiram, com uma autoridade que não se dão ao trabalho de questionar.
Do outro lado, há uma horda reaccionária que está pronta a refutar todas as medidas, a recusar todos os cortes, todas as alterações, todas as reformas, crendo num outro milagre, o da multiplicação dos pães e dos peixes. Uma horda que, na sua inflexível e irresponsável oposição, facilmente emparelha com os interesses das corporações, não se dando conta que a soma de todas os interesses corporativos é o desastre. Aqui o tom é o da guerrilha, da piromania.
Se os primeiros são insensíveis ao sofrimento e às dificuldades individuais, os segundos desvalorizam os malefícios colectivos da revindicação desmesurada, sem critério. O que os primeiros defendem não é sempre estranho à mecânica dos autoritarismos — os segundos brincam levianamente com a anarquia.
Os factos noticiosos são hoje abordados (ou ignorados) de forma a servirem os interesses do juízo preconcebido. Cada facção destaca ou desvaloriza os aspectos que podem servir ou prejudicar a causa. De repente já não é a notícia o que importa mas as partes dela que beneficiam (ou contrariam) o argumento, que nos beatificam ou denigrem o adversário. Não há, aliás, factos: há interpretações e a interpretação das interpretações, a exegese e a crítica da exegese.
Claro que a margem de manobra de Portugal é mínima, mas confrange que o nosso contributo para a resolução da crise tenha o nível argumentativo de um adepto do Benfica, que as balizas do debate sirvam apenas para contabilizar golos das facções e não para perscrutar com seriedade e consequência o futuro. Talvez o capitalismo esteja a precisar de ser repensado — estamos num desses momentos da História — mas em Portugal o que é relevante é a semântica desprezível ou heróica de Passos Coelho e a cartilha que cada um escolheu deste ou daquele momento histórico e que quer à força ver aplicada aos tempos que correm.
O debate entrincheirado esquece que a guerra de trincheiras provou a sua perniciosidade há cem anos. Pretenderá comemorar-lhe o centenário?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Optimismo

Perdemos. Se o governo falha — e, sobretudo, se o governo sai vitorioso.

Resolução

Calar. Assistir. Deixá-los escrever o seu próprio epitáfio. Depois fazer copy/paste para um obituário então fácil de redigir.

Resignação

Esperar. Deixá-los falhar a prova de que têm razão. Depois falharmos nós em sermos o último a rir: não se ri quando entretanto acabam com as razões para isso.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Criatividade

Uma das coisas em que a esquerda está prodigamente errada é na crença de que a criatividade teve distribuição abundante e uniforme pelo mundo. Não é um exclusivo seu, mas diria que se empenha particularmente no equívoco. Sob a sua égide, as crianças deixam de ser estimuladas a descobrir uma eventual vocação artística para serem encorajadas a acreditar terem uma vocação. As más consequências disto são várias, e não passam todas pela tortura a que os nossos sentidos são diariamente submetidos.

Com uma infinidade de “talentos” pululando por aí, torna-se difícil definir (e comunicar) o que há de especial num talento, por que devemos admirá-lo, que proveito há (para nós e para a comunidade) em nos submetermos ao dom dos outros. A criatividade tornou-se um assunto relativizável, do âmbito da democracia e do gosto ou opinião maioritários. A qualidade do que se produz é, pois, afectada por este ambiente.

Nas escolas, os miúdos quase deixaram de ser instigados a descobrir a beleza que outros produziram ou produzem. A palavra de ordem é fazer de cada aluno um artista e colocá-lo, literalmente, no palco que supostamente lhe pertence, com cumplicidade e gáudio das famílias. O défice de público em Portugal, com causas anteriores talvez na falta de instrução e na baixa condição económica da comunidade, continuou o seu caminho por aqui. Só a ignorância ou a fé cega podem convencer alguém de que, de tanto frequentarem o palco, as crianças vão gostar de estar na plateia.

Compreendo que para a esquerda (bem, para alguma esquerda) seja difícil aceitar a autoridade, defender a atitude passiva, mas é imperativo ultrapassar o trauma, porque a arte o exige. Não há arte onde todos cantam e ninguém ouve. Não há arte onde todos escrevem e ninguém lê. O que o mundo contemporâneo precisa urgentemente é que se formem leitores e espectadores exigentes, não multidões de “criativos” medíocres e inúteis. As escolas têm de começar a ensinar que os gostos se discutem, ainda que não se imponham; têm de começar a ensinar a ouvir, a ler e a compreender, a ver, a decifrar, a reter informação e a criticar com base no cruzamento de dados e experiências.

É pateticamente comum em Portugal haver “pintores” que não frequentam museus, galerias ou livros de arte; “escritores” que não leram nem tencionam ler; “músicos” que não assistem a concertos a não ser os da moda (por razões sociais e não artísticas); “actores” (e “encenadores”) que não vão ao teatro. A lista continua, mas pode-se resumir: Portugal é um autodidacta fechado à História e ao mundo — ninguém pode esperar dele grandes feitos.

A necessidade de formar público para as artes não tem, por isso, que ver com o interesse dos artistas, mas com o interesse da sociedade e de cada pessoa em particular. Um público instruído, curioso, crítico, participativo e exigente eleva o nível da criatividade nacional, com óbvio proveito para si próprio — e com possibilidades de osmose em relação a outras áreas, como a política e a economia. Na ausência de riquezas como petróleo ou diamantes, ou de uma providencial (e improvável) indústria, um país não pode esperar desenvolver-se com massas impreparadas e estupidamente convencidas de talentos que não têm.

A Secretaria de Estado da Cultura e o Ministério da Educação, se querem fazer alguma coisa, podem começar por desfazer este equívoco.

A política é talvez mais para palhaçadas

«…não se pode fazer política com coisas tão sérias».
Miguel Relvas

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Mais blogues

Adicionei um novo blogue à lista, um dos bons. O Acordo Fotográfico mostra-nos pessoas a ler, mas não se fica por aí: fala delas e dos respectivos livros, da circunstância da fotografia. Poderia ser uma compilação de raridades, de resistentes em tempo de guerra, e já era bom. Mas a autora diz que não, diz que «há cada vez mais gente a ler», e nós sentimos uma súbita esperança.

E porque este blogue me lembrou a série «Leituras em lugares públicos», do Alexandre Andrade, recuperei também o umblogsobrekleist, injustamente esquecido quando o Canhões regressou à vida.

Foi um dia bom, este.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Carnaval

O ócio é uma aspiração antiga e legítima da humanidade. Certas etapas do progresso tecnológico foram aliás propagandeadas como sendo libertadoras do homem. O capitalismo, até há pouco tempo o pior sistema com excepção de todos os outros, foi progressivamente piorando a sua capacidade de lidar com esta aspiração, vindo até a estranhar e a recusar o conceito.

Parece mais ou menos evidente, para quem tenha uma ideia positiva para o destino da humanidade, que o ócio não deveria ser tratado com desprezo, como infelizmente é por algumas pessoas — quando tratam, claro, do ócio dos outros.

O ócio pode, evidentemente, ser reduzido (ou, no limite, suspenso) quando as circunstâncias a isso obrigam. Mas não deve desaparecer do horizonte filosófico e político, e muito menos ser ilegitimado, diabolizado, censurado como um capricho ou um vício desprezível da humanidade.

Isto dito, é bom recordar que a folga no Carnaval é uma tolerância, não um feriado instituído. Esta é uma altura em que o bom senso nos diz que a tolerância deve ser levantada. O recurso intensivo à indulgência não devia dar uma nova semântica as palavras, instituir pela tradição o que não está instituído pela legislação. De momento, precisamos de trabalhar — para estarmos no futuro de novo em condições de reclamar e aumentar o nosso direito ao ócio, por mais que isso venha a desagradar aos donos da economia.

Velhas tradições

Passos Coelho disse que manter a folga no Carnaval era ficar «agarrado a velhas tradições». Esperemos que em relação a outros assuntos que exigem igualmente desvalorizar «velhas tradições» ele mantenha este espírito progressista.

Das virtudes do jogging

O prédio foi hoje visitado por missionários, não sei de quê fé. Sei apenas que não eram da religião capitalista: as imagens que espreitavam nos folhetos, que vi enfiados debaixo da porta de cada apartamento enquanto subia as escadas, não eram publicidade a bens de consumo ou a superficialidades imprescindíveis: eram cruzes.
Tinha-os avistado na rua; deve ter havido um encontro, eram algumas dezenas e eram inconfundíveis. Com as suas pastas, os seus trajes formais, gravata, gabardina, vestidos sóbrios e, nalguns casos, chapéus, pareciam-se com vendedores de tupperwares numa convenção dos anos 50 americanos, o mesmo sorriso, o mesmo sentido de grupo e de missão. No entanto, como estamos em Portugal, anos 10 do século XXI, e como já não é Natal, aqueles atavios e aquele ar beatífico só podiam significar gente recrutada pelo divino.
Subi as escadas com certa ligeireza, duas a duas, como se me empurrassem para cima, com dedos de veludo, os anjos do Senhor. O meu espírito estava enlevado, eu sorria, a vaga de frio tinha passado e o fim de tarde parecia de Primavera. Estava com o astral que Paulo ganhou quando, na estrada de Damasco, viu, não as tropas de Bashar al-Assad, mas a luz que o cegou. Cheguei à entrada de casa e notei com um sorriso reforçado que o meu era o único apartamento sem literatura evangélica.

Além da virtude, há que louvar aos missionários a perspicácia. Não por terem poupado um folheto ao perceberem ser esta a casa de um iconoclasta — mas por se terem dado conta que o inquilino saíra para fazer jogging. É que um homem ganha o seu estado de graça e a sua leveza espiritual (pelo menos esta) quando corre doze quilómetros — dispensa nessa altura outras bênçãos.

Estatística dos proselitismos

Não se leia no post acima desdém em relação às Testemunhas de Jeová ou aos Mórmons. Pelo menos não mais do que em relação aos católicos ortodoxos e a outras espécies proselitistas. Se puder julgar pela minha experiência, aqueles enviados de Deus são geralmente mais afáveis e não mais insistentes do que os vendedores de seguros, de produtos bancários e de pacotes de chamadas para telemóveis. E são mais inofensivos: a eles não os podemos acusar de qualquer responsabilidade na crise.
É certo que, como o Mestre Karamba, nem sempre respeitam o dístico publicidade não solicitada aqui não, obrigado, mas são bem menos insistentes do que os postilhões das superfícies comerciais, dos stands automóveis e até do que a propaganda municipal. A tradicional alergia às suas visitas é, portanto, preconceituosa, contra a liberdade religiosa — e sobretudo ignorante das estatísticas. 

Uma canção contra o tédio

Uma banda punk cá do burgo cantava há anos uma letra que reescrevia o poema de Augusto Gil, mas cujo humor precisa de ser actualizado. Rezava mais ou menos assim: Batem leve, levemente, como quem chama por mim. Será chuva? Será gente? Oh c…... São Testemunhas de Jeová!
A visita mais temida nos lares portugueses é agora a do inspector das finanças ou do administrador de insolvência, mas se a questão é o tédio, talvez a letra devesse esquecer os pobres missionários e adaptar-se aos novos moralistas, os que andam por aí na blogosfera e na imprensa, ataviados com o seu luteranismo luso, a tentar convencer-nos de que na última década habitámos Sodoma e Gomorra. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Domingo desportivo III

A ideia era por aqui o video, mas o que me interessava mostrou-se sucessivamente resistente ao meu saber tecnológico e a paciência esgotou-se. Fica aqui o link.

Vocação para ler

Quando tudo nos falha na vida, resta-nos sempre o talento dos outros. Se escrevesse um livro de auto-ajuda, seria esta a lição que eu transmitiria. Um lição inexacta, contudo.
Desde cedo alimentei indecisas ambições artísticas. E também cedo aprendi a definir-me, antes de mais, como alguém que assiste ao que os outros criam. Isto não foi o prémio de consolação que atribuí aos meus escassos talentos, mas a consciência de que me vinha mais prazer do acto de ler, ver ou ouvir do que de “criar”. Mesmo agora, quando a escrita me recruta quotidianamente, me comprazo em saber que um livro me aguarda com paciência na mesa-de-cabeceira. Não porque tema falhar e precisar de conforto nas palavras dos outros, mas porque estou ciente da minha vocação para ler. O talento dos outros não é, afinal, uma panaceia para o mal d’être, mas o território onde as nossas próprias aptidões se exercem e exercitam. Assistir é viver.

Vasco Graça Moura e a arte contemporânea

Vasco Graça Moura, conhecido opositor dos subsídios à arte “contemporânea”, escreveu para o S. Carlos o libreto da ópera Banksters, inspirado na peça Jacob e o Anjo, de José Régio. A ópera (de Nuno Côrte-Real, encenada por João Botelho) foi levada ao palco presumo que com dinheiro público, mas acredito que VGM, fiel aos seus princípios, não tenha cobrado um tostão pelo libreto.

Aparentemente, se um texto for escrito para o género “ópera” não é considerado criação contemporânea, mesmo que a ópera seja encenada à “moderna”, com música de um autor ligeiramente mais novo do que Rossini, digamos assim. Talvez a ousadia criativa do nosso tempo seja admitida se se submeter aos géneros clássicos*. Afinal, o que importa não é a qualidade da obra, mas a gaveta onde se pode arrumar. Não importa se Nuno Côrte-Real é inferior a Mozart — importa que escreveu uma ópera. Não importa se Vasco Graça Moura é inferior a Martin McDonagh ou a Jacinto Lucas Pires — importa que escreveu um libreto. Um libreto cujas personagens, aliás, se chamavam Angelino Rigoletto, Santiago Malpago e Mimi Kitsch.

*Desconfio que não, desconfio que ainda teria de passar pelo crivo do gosto de VGM.

Adenda

Se a Secretaria de Estado da Cultura, citada nesta notícia do I, estiver certa (e espero que esteja), o meu post anterior perde uma parte da sua razão. Salvam-se contudo as considerações sobre o métier opinativo em Portugal. Era assim antes, é assim agora.

A instituição sou eu

As pessoas concordam com a resistência de Vasco Graça Moura ao acordo ortográfico e por isso aclamam-no. À direita, transformam-no mesmo em herói. Estão dispostas a passar por cima da irregularidade da sua decisão no CCB.

É assim que se constrói opinião em Portugal. As acções estão certas ou erradas de acordo com a ideia que as inspira e aquilo que pensamos dela. Os fins justificam os meios, se forem os nossos fins. Não há espaço para leis, normas, procedimentos, ética, deontologia, razoabilidade, divergência, prudência, nada. A nossa opinião (e dos nossos compadres) é a baliza final, ela determina o valor das coisas, certifica a sua conformidade. As leis, as normas, a ética apenas têm valor se precisarmos que elas integrem o nosso arsenal argumentativo, quando a opinião parece não nos ser suficiente. Mas se for o adversário a invocá-las, de pronto as desvalorizamos. Agir à margem delas é legítimo para os nossos correligionários — e é inadmissível para os nossos oponentes.

O cidadão comum habitua-se a estes modos tão ligeiramente adoptados por políticos, dirigentes e opinion makers. Como esperar dele respeito pela justiça ou pela política? Nestas condições, surpreenderia que o povo português tivesse um perfil cívico exemplar. Significaria que as pessoas se regiam por valores não partilhados pelas elites do poder e por aqueles que as sustentam nos jornais e nos blogues. Significaria também um contra-senso: um povo capaz de reconhecer e recusar para si a iniquidade mas desinteressado de a derrubar dos círculos influentes.

Temos uma elite opinativa demasiado contaminada pela clubite futebolística. Talvez porque muitos dos seus membros são também frequentes comentadores desportivos. Por alguma razão — inadvertência ou talvez fraqueza de espírito —, esta gente perde referências e julga-se permanentemente no terreno da paixão futebolística, onde, por jovial estupidez, se convencionou poder suspender-se a razão e a inteligência e se erigiu como máxima definição de carácter o amor camisola.

Em entrevista de véspera ao Público, Vasco Graça Moura deu sinais de sensatez ao dizer que a sua opinião pessoal sobre as artes seria subordinada ao superior desígnio da entidade que ia dirigir*. Neste contexto, a sua decisão sobre o acordo ortográfico é contraditória e permite-nos desconfiar com certa legitimidade de como será o seu mandato à frente do CCB também no que respeita à estratégia de programação. Depois desta atitude, só podemos temer que a instituição será ele.

P. S. Para que conste, sou contra o acordo ortográfico, e toda a desobediência civil neste caso me parece muito bem-vinda. Também será para mim bem-vindo todo o esforço que, depois de acatar as regras da democracia, Graça Moura faça junto do seu governo para que este promova a suspensão do acordo.

* Basicamente, foram declarações preventivas. VGM quis evitar que a controvérsia emperrasse desde o início o funcionamento da instituição e o impedisse de brilhar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Acontece

Leio a crónica da última página do jornal de hoje e estranho: o JN mudou de grafismo? Pouco provável. Coço a cabeça: o Manuel António mudou-se para o Público? Não. É o Vasco a ter razão completa. Também lhe acontece.

Depois do futuro, com o passado nos iludimos

Alguns procuram nas memórias da infância e da adolescência — quando elas têm mais de vinte e cinco anos — alívio ou uma forma de relativizar os problemas que aí vêm. Suponho que os afortunados de antes são os optimistas de agora. Também tenho a minha versão de infância feliz, pobrete mas alegrete. Escrevi episódios de uma epopeia dessas na anterior vida do Canhões. A espaços, conto-os de novo, quando reparto pão e vinho (mais pão do que vinho, que a generosidade tem limites) nas agora raras despreocupadas ceias de condiscípulos. Depois dos factos, somos (quase) sempre capazes de assobiar e ver o lado brilhante da vida. Se por vezes relatamos tragédias é apenas para aumentar o contraste dos momentos bons. Como quando saímos da tropa, fanfarrões, as agruras e a humilhação a servirem para dar o tom heróico aos quinze meses de aquartelamento. Nas nossas narrativas, o drama é, por inversão, o palhaço rico que apenas existe para fazer brilhar o palhaço pobre — que, naturalmente, é o mais feliz dos dois.

Acontece o mesmo com a evocação do mundo rural. A singeleza, os bons sentimentos, a solidariedade, o ar puro, a honestidade, a franqueza, os dias a decorrer ao ritmo natural, a confiança, o amanhecer e o pôr-do-sol, o sol a pino e a três quartos, e a chuva purificadora e a neve imaculada e o murmúrio do vento nas searas de trigo ou no veludo das parras em Agosto ou nas coloridas folhas outonais. Nunca a lama e as frieiras e o uivo sinistro e cortante da nortada nas frinchas das paredes e do tecto e os alguidares a apanharem as pingas e os cobertores da cama inteiriçados pela geada (e os percevejos e os ratos) e os pés enfiados em sacos de plástico para impermeabilizar as botas furadas e as camisolas sempre curtas ou rotas ou insuficientes, os casacos largos, feios, constrangedores, igualmente rotos ou sujos, ferrete da condição inferior; nunca a estreiteza de horizontes, a rédea curta da ambição, a renúncia do sonho, o atrofio da vocação. Ou tudo isto, sim, tudo isto quando precisamos de azul para o oiro da retórica.
O mundo rural, se invocado de memória, é o paraíso na terra — apenas um pouco condimentado, para lhe requintar o sabor. Não se percebe como as pessoas, aqui como ao redor do mundo, teimam em abandoná-lo. Mesmo os que assim idílico o recordam, ameaçando poeticamente um regresso às origens que, na verdade, não querem corporizar, a não ser no bom tempo ou num monte alentejano com piscina, num financiado turismo rural com piscina, no velho solar recuperado, melhorado — e dotado de piscina.

Usando um apelo muito em voga, o mundo rural e a maior parte das infâncias precisam de um Correio da Manhã para nos revelar que o passado, como a índole lusitana, é menos bondoso do que gostamos de crer. É apenas lindo na nossa memória facciosa e em admiráveis páginas de literatura. Nas melhores destas, a beleza que experimentamos é intrínseca à obra, não ao que ela ficciona. É por isso que quando queremos mesmo sentir o passado devemos talvez ler relatórios, estatísticas, correspondência e diários de cidadãos comuns, inventários, registos — e não sentarmo-nos melancolicamente a recordar ou a ler romances.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Vasco, o retratista

Consta por aí (uma simpática leitora até me escreveu a informar disso) que em três pinceladas Vasco Pulido Valente pintou no Público o retrato certeiro e definitivo do Portugal recente — com o nobre intuito de fazer o enterro do socialismo. Um reverente blogue de direita reuniu as palavras sagradas num post que pode ser lido neste link. (A direita sempre precisou de um papa, e em Portugal a oferta aumentou exponencialmente nos últimos tempos, mas algumas almas fascinadas parecem tê-lo encontrado sobretudo na encantadora figura do decano cronista.)

Despertado na minha caverna pelo correio amável que me enviaram, lá fui eu ler a trilogia pulidiana “Esquerda e direita”, prometendo a mim próprio não voltar a embirrar com o homem. Em vão.
Como retratista, Vasco não usa a paleta toda, pelo que as suas telas resultam um pouco artificiais. Aquilo é real, sabemos penosamente que sim, o autor tem talento para o desenho. Mas, como recusa uma mais plausível prolixidade cromática nos acabamentos, a obra parece velada por uma fina gaze, como se o mestre pusesse um filtro à frente do olho que deita ao modelo. Num relance, chega a parecer uma daquelas gravuras vendidas em lojas de decoração que apostam numa limitada gama de cores: uma serra em escala de azuis, o pôr-do-sol em escala de laranjas, estão a ver o género.

Sem piedade, a trilogia conclui que o socialismo (ou a social-democracia) foi responsável pela crise nacional e europeia — e o Estado Social foi o seu instrumento. Ora, os americanos, mormente a feroz percentagem republicana deles, parecem não concordar. Começam, aliás, por não concordar que exista uma crise europeia. Parece, diz-se na campanha republicana, que a pátria da liberdade (e da recusa do Estado Social) está terrivelmente endividada, tem um défice preocupante, cresce menos do que desejaria, entrará provavelmente em recessão, vê o desemprego aumentar com perigo para a estabilidade social, etc. Os sintomas, dirão eles para proteger o orgulho ianque, são “europeus”, agravados por um presidente “socialista”. Mas nós sabemos o quão socialista Obama tem podido ser, e como a economia americana divergiu profundamente da sua ortodoxia.

O retrato pulidesco tem assim, talvez, de ser retocado — antes que os óleos sequem. (Depois disso, só uma equipa de restauradores do Louvre o poderá fazer, e nós não temos assim tanto tempo para esperar.) Se eu próprio não tivesse abandonado os pincéis e o atrevimento, propunha portanto ao insigne artista que matizasse a sua tela com uma das duas seguintes cores (ou ambas):

1) Talvez não tenha sido a social-democracia a falhar, mas o próprio capitalismo, tal como posto em prática;
2) O despesismo, a corrupção, a incompetência da máquina fiscal, a mitigada redistribuição de rendimentos, a especulação financeira, etc. são em si responsáveis pela crise, independentemente do sistema em que ocorrem.

(Quando se pinta um retrato de uma entidade viva, convinha, de resto, não esquecer 2008. A elipse foi uma figura de estilo inventada por Estaline para a fotografia, não para a pintura.)

Claro que o pulido cronista, quando isso não lhe atrapalha a argumentação para uso no flagelo doméstico, estende o problema ao Ocidente inteiro, sem que então lhe interesse assim tanto distinguir sistemas. Ou seja, para ele a peçonha é, consoante os dias, uma particularidade da Europa (que tem no socialismo e em Portugal os seus mais desprezíveis cultores) ou do Ocidente inteiro (se a prosa tiver uma ambição mais universal e exacta e menos luso-moralista). De uma forma ou doutra (e aqui não se engana nada), a crise é dos países que tiveram preocupações com o bem-estar dos cidadãos. Daí alguma direita (não só ela) andar agora fascinada com a China, esse sábio sistema que aproveita o melhor do capitalismo sem se tornar sentimental. Os sentimentos sempre foram um empecilho quando se trata de criar riqueza. Para alguns. 

Outro retratista, melhor retratista

Quem aprecie retratos, deve ir ler o texto de Antonio Cazorla no El Pais (“La socialdemocracia perdida, otra vez”) e perceber como é possível reconhecer frontalmente culpa à esquerda e à social-democracia sem concluir muito futebolisticamente que a solução da crise passa pela sua obliteração.

Perplexidade

Mesmo para leigos como eu, que apenas lêem uns artigos e uns raros livros, há coisas que não podem deixar de causar perplexidade. A extensão da crise e a forma como as medidas aplicadas nos dois lados do Atlântico não a fazem recuar nem um pouco pareceriam implicar acima de tudo uma revisão (mais ou menos profunda) do capitalismo ou da sua prática, não esta involução na continuidade.
Há quem invoque a História (diferentes momentos da História, na verdade) para defender diferentes soluções. Mesmo que concordemos que a ortodoxia seguida pela direita em Portugal e na Europa é a pior escolha (e são cada vez mais os economistas a dizer que sim, até já doem os ouvidos), não parece ser certo que soluções mais keynesianas, digamos assim, fossem eficazes. Um número crescente e heterogéneo de autores fala na irreversibilidade do declínio ocidental — para lá das questões sobre a culpa. (E no entanto há entre estes autores quem proponha que ainda era possível evitar “um mundo de soma zero”, onde os interesses de uns países competem com ou anulam os interesses de outros.)
A ascensão dos BRIC não implica necessariamente um bem-estar generalizado para as suas classes sociais e certamente não significa que a democracia mundial (se sobreviver) passa a ser defendida (nem mesmo tutelada) por outros quadrantes geográficos.
Estes dois cenários, a crise ocidental e a ascensão económica mas não mais democrática dos países emergentes, parecem pôr em causa o capitalismo, a sua actual eficácia ou até pertinência. Mas o que vemos? Políticos incapazes de pensar fora do arquétipo. Comentadores ocupados nos seus jogos florais de demonização do outro. A Inquisição à procura de quem viveu acima das posses ou teve ilusões. Ideólogos de blogosfera a achar excelente a oportunidade para aplicar finalmente velhas receitas muito lá de casa.
Em Portugal não admira que assim seja, a política e a gestão da coisa pública há muito estão entregues a dinossauros e a jotinhas (querem culpados?), o pensamento independente e crítico não é bem-vindo. Mas na Europa não haverá quem meta algum senso nas cabecinhas dirigentes?