quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Graffiti

Ainda estava longe a ameaça quando K. declarou que prescindiria do subsídio de férias ou do de Natal, ou de parte do salário, se essa fosse uma forma eficaz de aliviar problemas, prevenir males maiores. Não porque tivesse um particular peso na consciência. No que dependeu dele, não houve delírios despesistas, e pessoalmente K. não contraiu dívidas insensatas (embora não tivesse poupado). Foi sempre crítico da paixão nacional pelo betão e pelos investimentos frívolos. Não percebia porque, para o país, os melhores presidentes de câmara ou primeiros-ministros eram os que deixavam “obra”, no sentido que os empreiteiros davam ao termo. Atribuía isso a uma etimologia limitada: o povo não tinha sido familiarizado com a amplitude semântica das palavras e o erro trazia consequências à praxis dos eleitos, condicionava-lhes o desempenho (embora K. soubesse que os eleitos, iguais entre iguais, não faziam o que faziam por se sentirem constrangidos).
Porque não tinha passado de pobre a arrivista, K. abominara o espírito novo-rico da época, o consumismo exibicionista, o materialismo dominante. Quando um dia teve de trocar de carro, escolheu o segundo mais barato do mercado (por uma questão cromática, confessava esse capricho) e desagradou-lhe que não estivessem disponíveis unidades sem ar condicionado. K. não era ascético, mas de Inverno chegava-lhe a chauffage e de Verão gostava de circular de vidros abertos, cabelos ao vento.
O seu desprendimento do dinheiro não era revelação de um espírito luterano, nem era sintoma de masoquismo. Resultava da consciência de que havia pessoas em piores condições, pessoas para quem qualquer corte nos rendimentos seria literalmente (e não literariamente) um drama. E resultava também da consciência de que algumas coisas boas no país seriam postas em causa se a crise se abatesse com a máxima fúria.
Não foi por isso para K. um choque quando o Governo anunciou aquelas medidas de austeridade. O futuro, o seu futuro, preocupava-o, claro que sim, mas ele estava psicologicamente confortável com os sacrifícios. Pelo menos enquanto pensou que eles eram por uma boa causa. Ou inevitáveis. O desconforto veio quando K. percebeu que se ia atravessar a longa crise sem que fosse aproveitada a oportunidade para tomar medidas que moderassem os rendimentos dos mais ricos em favor dos mais desfavorecidos: os relatórios continuavam a indicar o crescimento descarado do fosso.

Quando caiu na rua, K. teve mais tempo para ver os grafitti, as palavras-de-ordem inscritas nas paredes. Lamentou que entre os seus talentos não estivesse o do desenho. Não gostava de pichagens abjectas ou esteticamente irrelevantes, medíocres, não gostava de borrões idiotas, palavras ocas, mas apreciava quando os autores sabiam transformar uma parede arruinada numa obra de arte, mesmo que subversiva, ou quando o humor ou a inspiração dos slogans se sobrepunham ao eventual prejuízo urbano. Ao contrário de palavras-de-ordem irónicas como «o último a sair apague a luz e feche a porta», não o costumavam entusiasmar slogans como «os ricos que paguem a crise». Mas agora, enquanto aquecia as mãos na fogueira improvisada, perguntava-se se ainda tinha razões para permanecer fiel ao seu pensamento razoável, se aquele não era o tipo de “demagogia” a que um sem-abrigo como ele estava moralmente autorizado a recorrer.


A vida de K. (3)

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