segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Still my guitar gently weeps

Há muito que K. não acompanhava a sua vida à guitarra. Quando se tornou feliz não soube que utilidade dar à velha Ibañez e encostou-a a um canto, a acumular pó. Não era de acordes festivos; se tinha de tocar, dedilhados e gemidos era o que tirava das cordas. A sua vocação perdeu por isso sentido, era um ofício de tempos cinzentos, desactualizou-se. Nos últimos anos, sempre que lhe pediam para tocar, K. recusava, preferia desiludir os convidados a dar o tom errado aos convívios. Se se pusesse a tocar sair-lhe-iam melodias pungentes, lamentosas, boas para embalar a melancolia. Estava totalmente fora de questão cometer essa indelicadeza, estragar as festas, deprimir a audiência. Os amigos recordavam-lhe o talento e sentiam-se vagamente saudosos de o ouvir, mas K. resistia a avivar-lhes a memória quanto ao carácter específico do seu talento — era quase tão perigoso referi-lo como exemplifica-lo. K. estava feliz, os convidados estavam felizes, se havia necessidade de música, o repertório teria de ser alegre. Entregava a guitarra a um dos outros sem sequer a afinar (mesmo essa tarefa seria plangente, nas suas mãos) e em poucos minutos a música era como devia ser.
Por mais de uma vez esteve para se desfazer da guitarra. Que interesse tinha mantê-la? Não era pessoa de acumular tralha, memorabilia. Desconfiava até que havia qualquer coisa de mórbido em conservar aquele instrumento de uma vida anterior, quase como guardar as relíquias de um morto. Censurava-se a inércia, a falta de coragem, perguntava-se se não devia temer a possibilidade de um objecto assim trazer má-sorte.
Depois os mercados entraram em pânico ou ficaram de mau humor, uma destas coisas, e K. deu consigo a pegar na guitarra. Inicialmente apenas a encostou ao peito, transmitindo os seus batimentos cardíacos à madeira. Chegava a casa, sentava-se e punha-a sobre as pernas, apoiando o tórax nela. Mais tarde, fez soar as primeiras notas. Quando deu por si, tinha deixado crescer as unhas da mão direita, voltaram os harpejos, os dedilhados, as melodias comoventes e lúgubres que saíam do nada.

K. nunca tinha tocado no metro. Agora que o fazia, perguntava-se se devia estar contente por ainda ter a guitarra ou se devia amaldiçoar-se por a ter conservado. Talvez a velha Ibañez se tivesse cansado do silêncio ou do uso indevido e tivesse exigido de volta a vida poética de antigamente. Talvez tivesse simplesmente atraído azar — mais do que atraía moedas para o chapéu.

A vida de K. (2)

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