quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sofisma (Requiem)

Os amigos andavam-lhe a dizer que estava a compor melhor do que nunca. Tinha uma página no Myspace e fazia para ali upload das peças que criava ao piano no estúdio caseiro. No entanto, a crise acabara com os concertos, e os discos há muito não se vendiam. Gostava de compor, mas gostava mais que o ouvissem, de preferência em directo, em clubes de jazz. E os clubes de jazz também fechavam as portas, falta de clientela. Estava a compor melhor que nunca, mas estava também mais deprimido do que nunca. Estar deprimido era importante, crucial — a música saía-lhe do sofrimento, da melancolia, do desespero. Mas isso costumava ser suportável, porque a ideia de tocar ao vivo num ambiente de penumbra e fumo (também tinham acabado com o fumo) mantinha-o vivo, a expectativa de umas horas de felicidade relegava os dias de chumbo.
Numa primeira fase, pediram-lhe sem subtilezas que encurtasse as actuações, a maior parte da gente já não ia pela música, as despesas de funcionamento tinham aumentado, era preciso estimular o consumo dos clientes, facilitar o trabalho dos empregados que sobraram. Quer dizer, a música ainda era importante, fazia a diferença, mas três quartos de hora bastavam para cumprir o ritual, não era? Meia hora. Decerto não lhe interessava tocar se não o ouviam, e nos últimos tempos era notório que as pessoas se davam menos conta do que acontecia no palco. Não era também verdade que já nem os melómanos estavam para as quatro horas da ópera? Riam-se. Mais tarde decretaram em cartel regras que proibiam encores (a sua desculpa para prolongar as actuações), mesmo se algumas mesas esquecidas da linha da frente ainda os pediam.
O circuito de clubes, que em tempos fora a espinha dorsal da noite, estava agora reduzido a meia dúzia de apêndices obsoletos, em processo de reorientação, onde pernoitavam os saudosistas e os neuróticos. Bons consumidores, mas com dívidas e em número decrescente ano após ano. Morriam sem que fossem substituídos. Pertenciam a um povo que não se renovava. O circuito era agora um bas-fond sem charme.
De modo que estava a compor melhor que nunca, mas na verdade havia meses que não compunha, salvo uns adágios, uns esboços de tema, talvez promissores, inspirados, mas sem aprofundamento, continuidade. Sentia-se derreado de tristeza e frustração — o que normalmente o fazia correr para o piano —, mas sem um palco no horizonte achava supérfluo o exercício. Morria aos poucos do esforço. Recentemente eram mais as vezes que ficava na audiência a assistir ao afundamento do meio do que aquelas em que se sentava ele mesmo ao piano. Já nem tamborilava na mesa.

Quando na última noite consultou as estatísticas no contador de acessos da sua página, ficou a olhar para o gráfico de uma empresa em bancarrota. Descobriu que em dois meses, os últimos, ninguém sequer visitara o site, as mais recentes composições não tinham sido postas a tocar nem uma vez. A não ser que houvesse avaria no servidor, tinha de concluir que os próprios elogios dos amigos eram só uma tentativa educada, instintiva, de o animar.
Antes de pendurar a corda, ainda teve um pensamento optimista: o divórcio do público libertava-o do seu compromisso com a música — e, sem razões para compor, não tinha afinal necessidade de ficar deprimido.

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