sexta-feira, 28 de outubro de 2011

No supermercado

1. Limões
Veste de ganga e caminha apressada. De costas, tem o corpo e o ar de uma adolescente magra, desengonçada. Dirige-se sem desvios para a secção de frutas e hortaliças. A mercadoria que fica pelo caminho não a distrai, não sente o apelo consumista. Detém-se em frente à grade dos limões. Escolhe dois. Pousa o saco na balança e parece baralhada, não se entende com a máquina.  Vira-se para pedir ajuda — e então vemo-la, subitamente envelhecida, um rosto de anciã, desgastado, carcomido, com expressões no entanto quase juvenis. Uma impossibilidade na forma de pessoa, duas idades num mesmo corpo, num mesmo rosto. Demasiado nova para ser velha, demasiado degenerescente para continuar jovem. Feita a compra, retira-se com a mesma pressa e balanço de braços. Tem lá fora o cavalo à espera.

2. Careca
Traja com elegância irrepreensível. Careca precoce, escolheu rapar o cabelo na totalidade. O crânio é perfeito, sem uma mossa, um alto, uma ruga, um sinal. Adivinha-se uma suavidade de porcelana, embora quente. Com certa incidência da luz, dir-se-ia envernizado, tal o brilho, o aspecto de esmalte. Quando mais tarde entra no carro, reluzente na sua pintura metalizada, percebemos que trata de ambas as coisas, a careca e a chaparia, com esmero — e cera.

3. Sorriso
Tarde demais para travar na passadeira. Pede-se desculpa e o tipo devolve um ar carrancudo. Sujeito antipático. As voltas do destino (e do parque de estacionamento) põem-nos de novo em rota de colisão, mas agora com tempo para cedermos gentilmente a prioridade. Desta vez, recebemos de volta um sorriso generoso, encantador, carismático, desarmante. Uma punição pelo julgamento precipitado.
Contudo, a esposa, impaciente junto ao carro, chama-o — e volta o ar carrancudo, o sujeito desagradável que víramos antes.