quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Terras pequenas

O fenómeno repete-se de norte a sul. Há terras que se rejeitam a si próprias. Terras que se desprezam por serem pequenas, por serem peculiares. Que se envergonham de estarem onde estão e passam o tempo a olhar para lá das colinas, para os subúrbios da cidade. Que não querem ser acolhedoras ou simpáticas ou bonitas ou ter qualidade de vida. Terras que apenas querem ser grandes e indistintas. Terras que não querem ser amadas por quem esteja disposto a isso.

O forasteiro chega sinceramente disposto a gostar da terra. Percorre a paisagem em volta e apenas repara onde ela é bonita, como um convidado educado. Nas ruelas, ignora os atentados urbanísticos, os edifícios incaracterísticos, devolutos, as ruínas sem história. Só lhe interessam esta fachada, aquela varanda, a inesperada beleza de um portal, a rua inteligentemente preservada, quando ela existe. Os seus olhos filtram a feiura, programados para descobrirem o que a terra tem de melhor.

A memória do forasteiro está habitualmente solidária com o seu desejo de se encantar. É uma memória amestrada e grata, apenas pretende coisas boas para o portador. Se não houver percalços, se a terra se deixar abraçar e desfrutar com prazer, como os gatos quando se lhes passa a mão pelo dorso, o forasteiro ficará rendido e a sua memória escolherá as imagens para guardar como quem selecciona as melhores fotografias, as que vai de certeza desejar-se ver mais tarde. Uma terra assim será sempre uma localidade bonita e simpática. Recomendada. A que apetece voltar. Onde apetece viver.

Mas se a terra não fizer a sua parte, se não acrescentar algo de imaterial aos seus dotes, o forasteiro experiente não volta — sabe que a beleza passiva desmorona à segunda visita. Nenhum olhar é virgem duas vezes. No segundo momento, o feio insinua-se — e vence, se a terra não tiver outras armas, outras formas de seduzir. Sobretudo se, conquistado pela natureza, pela pedra, pela cal, pela arquitectura, pela história, o forasteiro não for embalado do mesmo modo pelas gentes da terra.

São as gentes que tornam as terras feias, não a pobreza, não a distância, não a natureza agreste. São as gentes que desfazem o encanto das terras pequenas; elas por si só, entregues ao tempo e à erosão, mantêm-se encantadas, por vezes reforçam o encantamento na proporção inversa dos telhados abaulados, das paredes que caem. O forasteiro não diz que ruínas tão feias, mas é natural que às vezes lhe sai-a com um suspiro que terra tão mal habitada. As ruínas permitem-nos imaginar vidas diferentes de outrora, povos amáveis, empreendedores, comunidades acolhedoras, em paz com a sua terra natal, a darem o melhor dos seus braços e da sua inteligência por ela, mesmo que depois um destino ingrato lhes troque as voltas. Uma terra habitada não pode disfarçar a sua hostilidade, a sua inércia, a sua amargura, a sua auto-complacência, a sua vontade de ir embora. Uma terra habitada vai ser cada vez mais deserta se não aprender a ver-se pelos olhos dos forasteiros. A tomar os forasteiros como os seus próprios olhos, os olhos da terra. Um forasteiro é um vizinho em devir — ou alguém que inconscientemente decide não voltar para não quebrar o encantamento que lhe ficou de algum momento em que as ruas estavam desertas de gente.

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