quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Três quadros de Inverno

1. A árvore da vida

Altura da poda. O homem novo, talvez numa ocupação de férias natalícias, usa uma escada de metal reluzente e, por vezes, uma tesoura com uma extensão que lhe permite trabalhar a partir do solo. O idoso sobe para os galhos por uma velha escada de madeira camba e, em equilíbrio vertiginoso, apara os ramos com a clássica tesoura preta que também se lhe vê nas mãos em época de vindimas. Há a história do velho, o rapaz e o burro, mas é inadequada. A partir de certa idade, a poda é uma questão pessoal. O velho mais depressa treparia a oliveira, como quando em rapaz ia aos figos, do que usaria a escada nova e a ferramenta fashion do filho ou genro. É este que precisa dos apetrechos e das luvas do Mestre Maco. As mãos do velho estão calejadas, e subir a pulso a árvore da vida fará parte do seu quotidiano até ao último dia na terra. Vive enquanto a pode subir, morrerá de não a poder subir.


2. A vil existência

Pouco depois das quatro da tarde ocorrerá o pôr-do-sol. Embrulhados nos seus kispos e forros polares, os caminhantes cumprem apressados a prescrita hora ou hora e meia de marcha junto ao rio. Os amantes da corrida fazem desfilar calças de licra, gorros e mp3. Ela usa calções de perna comprida e justa e uma sweatshirt larga. Numa curva, a última curva antes de a sombra estender por todo o lado o seu manto irrevogável, ela tem a intuição do fim da luz e detém-se. Abre os braços, levanta o rosto ao deus-sol e sorri. É bom estar viva, apetece abraçar o astro. Cinco segundos de carícia e alheamento, e ei-la de novo num trote firme, o sorriso agora embaraçado, talvez por a vil existência ter regressado nos olhares dos transeuntes, que tentam encontrar-lhe no rosto sinais de um espírito débil ou excêntrico.


3. Encruzilhada

Vestidos com as prendas de Natal — casacos Lanidor e Massimo Dutti, calças Tiffosi ou da Salsa, peúgas e roupa interior a expensas rituais de tias idosas —, passeiam no parque o carrinho de bebé. Com uma criança dentro, deduz-se, não se vê. Eles também não a vêem: ela senta-se num banco a olhar um ponto fixo, talvez do passado, ele fica de pé a observar o trânsito de famílias e casais. Ambos com rostos graves, diferentes do cliché de uma tarde bonita no parque. Entre os dois, o carrinho. Estático porque o terreno é plano — ninguém o segura, jaz por instantes abandonado, troféu de um jogo de forças em que possivelmente fica com o prémio quem perde. Talvez numa parte dos seus espíritos apetecesse que o carrinho começasse a deslizar para fora das suas vidas, pudessem sair dali cada um por seu trilho do parque, desejando esquecer que um dia estiveram numa encruzilhada. Mas um deles há-de voltar a empurrar o carrinho, provavelmente a mãe, mesmo que seja para seguir o seu próprio caminho. Ou as catorze estações do Calvário.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

As pessoas em concreto

Há muito tempo que não lia Pacheco Pereira e já não recordo quão frequentemente ocorria a palavra «imbecis» nos seus escritos, para mais impressos. Mas é bom lê-la, sobretudo no contexto: 
«(…) Há uns imbecis nos blogues que acham que falar dos problemas concretos das pessoas que não são fils a papa, publicitários, gente de glamour, neoliteratos, assessores de várias eminências, yuppies sem mercados, consultores, advogados de sucesso, é neo-realismo. A única coisa que se lhes pode perdoar é não saberem o que a palavra significa, mas tudo o resto não e perdoável nem mesmo com muito "espírito de Natal".»*
Infelizmente, o meu problema com as coisas concretas é inverso. Salvo excepções, é quando penso em concreto nas pessoas que me torno entusiasta de Passos Coelho. E de Torquemada.

Alguns estão prontos a insinuar, por isso, que o uso da abstracção faz de mim um utópico da laia de Rosseau. Mas diferimos, o francês e eu. Ele via bons selvagens. Eu vejo selvagens — mas não acho isso bom.

Por outro lado, os liberalecos da direita e eu não estamos, de certa forma, em radical desacordo. Números, índios-de-cu-ao-leu: é indiferente como encaramos as pessoas — desde que não tenhamos de sociabilizar.


*Público de 24/12

Pacheco

Reencontrar a prosa de Pacheco Pereira (no blogue ou nos jornais) e ver nela alguma coincidência de pontos de vista reforça a convicção de que não é preciso ser-se de esquerda para perceber a intrínseca leviandade ou estupidez de certo discurso tão propalado pela gente de Passos, no Governo, nos jornais ou nos blogues.
«É particularmente irritante, e socialmente perigoso, que acrescentem à miséria uma lição moral do género "têm o que merecem porque viviam acima das suas posses", todos contentes com a purga moral do país pelo empobrecimento. O empobrecimento pode ser inevitável, mas deixem de lhe atribuir qualquer valor catártico e vender como nova propaganda que, no dia em que estivermos mesmo muito pobres, vai começar a nova aurora económica, a ascensão de uma economia de sucesso, livre do Estado, competitiva e dirigida por uma "nova geração" liberal e desempoeirada.»

Sedução do eleitorado

Proposta de estudo sociológico: averiguar que percentagem (masculina e feminina) da população convertida ao discurso da miséria se deixou seduzir literalmente pelos lindos olhos de Passos Coelho.

Agência Rangel

Se Paulo Rangel concretizar a sua agência de emigração, tem cliente. Desde que pague as passagens. (Ou a passagem, sabemos que é só de ida.) Em Vimioso diz que oferecem mil euros a casais que aumentem a população. Não ficaria mal ao Governo (e seria coerente com as suas opções políticas) pagar quantia semelhante a quem se voluntarie para desemparar a loja. Com mil euros há todo um mundo de possibilidades e destinos. O amor à Pátria aumenta na exacta proporção de quanto ela está disposta a pagar para se ver livre de nós.

Mas claro que a Agência Rangel há-de ser mais exactamente uma agência de aventuras, uma coisa que inclua o risco e o revivalismo. Os clientes farão, digamos, um investimento de risco (mas com risco mesmo), embarcando numa aventura old fashioned, como agrada aos conservadores. Rangel talvez tire do museu de cera um guia que nos acompanhe até à raia, mas a fronteira há-de ser passada a salto, os rios cruzados a vau e as distâncias percorridas a calcantes. Tudo brindado a vinho verde, que é do nosso Portugal!

domingo, 25 de dezembro de 2011

Males do couro cabeludo

O rapaz está sentado na cadeira do cabeleireiro. A funcionária, munida de pente e tesoura de dentes, vai desferindo golpes vigorosos. Com exuberância de gestos, levanta compridas repas da cabeleira e ataca-as como se disso dependesse a continuação do mundo. A determinado momento do labor, questiona o cliente:
— Estou a magoar?
O rapaz, com uma expressão torturada no rosto, ombros encolhidos como se tivesse deflagrado uma granada, responde o não mais sim de que K. se lembra.

(A espreitar tão discretamente quanto pode pelo vidro da montra, K. conhece o tormento do rapaz — também foi um dia cliente daquele salão. Houve um tempo em que K. podia recorrer àquele género de serviços, o luxo de um corte de cabelo a doze euros. Lembra-se de como a figura dócil, de prima carinhosa, daquela funcionária escondia uma harpia, que se revelava no momento em que as pessoas tinham o azar de coincidir no seu turno de trabalho. Também K. quis muitas vezes dizer não quando dizia o seu sim educado. Até ao dia em que começou a espreitar pela montra antes de entrar — e a retroceder nos seus passos se estava de serviço tal instrumento da Inquisição.)

Depois o equilíbrio nas forças em conflito altera-se. Acabado o desbaste, a cabeleireira entra nas minudências, e aí o rapaz tem uma palavra a dizer. Há que assegurar determinada proporcionalidade entre a forma como a nuca é rapada e os lados se penteiam para a frente. Um gesto em falso e é a vez da senhorita experimentar a violência do rapaz, patente nos olhares que lança ao espelho e nos monossílabos escandalizados que solta se ela avança por onde não deve.

O penteado de um adolescente é uma problemática que não deve ser abordada de ânimo leve. Nisto, não difere muito a época actual dos tempos de K., talvez apenas na banda sonora. K. teve o seu momento Duran Duran numa altura em que os demais rapazes deixavam crescer cabeleiras à Iron Maiden ou permaneciam nos seus cortes medianos e clássicos de burgueses anódinos ou sucumbiam à escalpelização periódica das famílias mais pobres. Também nessa altura o drama maior de uma vida se relacionava muitas vezes com uma tesoura que progredia em terreno proibido — na adolescência, o tempo que leva a repor uma madeixa é exasperante, tem escala cósmica.   

Agora K. submete-se sempre que há uma máquina disponível à estética militar, a clássica, a do pente zero. Há ameaças antigas que regressaram, piolhos, lêndeas, e quando se anda na rua dispensam-se contratempos extra. Já não estão presentes mães que nos passem com zelo pelos cabelos, acariciando agudamente o crânio, pentes de dentes juntíssimos, que nos desenriçam e livram de parasitas e outros males do couro cabeludo.

A vida de K. (5)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Onde está a piada

Exercício interessante: decifrar o tipo de riso que deflagra em cada indivíduo que se confronta com o cartoon anterior. A forma como rimos e as coisas de que nos rimos, o ponto da narrativa onde encontramos a piada — se a encontramos ou consideramos —, também nos definem.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Tirado daqui.

Palcos

K. passou a adolescência a querer pertencer a uma banda rock. Hoje suspeita que passará a meia-idade a lastimar não ser um velho rocker. Pelo meio subiu a uns palcos, mas nada que possa ser visto no Youtube e de que as pessoas possam agora rir-se ou sentir saudades.

A vida de K. (4) 

Fim-de-ano-mundo

São dez a jantar, o quadro de pessoal de uma empresa. Natal, sabem como é. Na televisão há futebol e são elas que anunciam os golos. Também são elas que falam de traições ao matrimónio. São ainda elas que discutem aspectos do fim-do-mundo em 2012. Não o que resulta da crise económica. O outro, o da profecia Maia, o que se pode realmente discutir. Parece que há discórdia quanto à data específica. Haverá quem afiance ser a 12/12/12, outros colam-no ao fim-de-ano. Mas estes serão empresários oportunistas, a planearem uma passagem-de-ano de arromba. Não está cientificamente provado (enunciaram-no mesmo assim) que o Armagedão coincida com o reveillon, mas não é exagerado dizer que naquela mesa se tratou do fim-do-mundo como se trataria do fim-de-ano (opções de vestuário incluídas).
E talvez venham a dar no mesmo. Não são as melhores festas aquelas em que gozamos como se não houvesse dia seguinte? Em 2011 será talvez precoce, mas em 2012 esse espírito é garantido.

Feia

A certa altura, os homens também falaram, um em particular, o patrão, não poupando nos decibéis, depois das libações. E o que disse? Eis a transcrição, textual:
— Não consigo gostar daquela filha da puta. Penso que não passa de uma cabra de merda. Olho para a cara dela e apetece-me espancá-la.
Os outros machos da mesa estranharam ou quiseram ser irónicos:
— Não há lá nenhuma rapariga que não seja uma querida!
Ele não se comoveu:
— Para mim é mais uma filha da puta que não faz a ponta dum corno. Olho-lhe para a cara e é isto que penso.
— É feia? — perguntou uma das mulheres, mas não há certeza que estivesse a ser sarcástica, que se tivesse servido da palavra para denunciar o interlocutor.

Emigrar

O problema não está na emigração, rapazes. Emigrar é, consoante os casos, uma saída, uma alegria, uma revelação, uma necessidade, um percalço, uma tragédia. O melhor de uma vida ou o fim de uma vida. Uma oportunidade ou o fim do mundo. Cada um sabe de si.

Emigrar era, como sempre, um receio ou um desejo, um pesadelo ou um sonho. Agora é talvez uma premência. Não só porque há uma crise. 

Ridículos

O Governo está a fazer, digamos, o que pode? Aceitemos que sim. Mas não se está a transcender, isso é certo. Como tal, é um manifesto exagero incensá-lo, lamber-lhe as botas. Vocês parecem os indefectíveis de Sócrates, rapazes. Tão ridículos quanto eles foram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Graffiti

Ainda estava longe a ameaça quando K. declarou que prescindiria do subsídio de férias ou do de Natal, ou de parte do salário, se essa fosse uma forma eficaz de aliviar problemas, prevenir males maiores. Não porque tivesse um particular peso na consciência. No que dependeu dele, não houve delírios despesistas, e pessoalmente K. não contraiu dívidas insensatas (embora não tivesse poupado). Foi sempre crítico da paixão nacional pelo betão e pelos investimentos frívolos. Não percebia porque, para o país, os melhores presidentes de câmara ou primeiros-ministros eram os que deixavam “obra”, no sentido que os empreiteiros davam ao termo. Atribuía isso a uma etimologia limitada: o povo não tinha sido familiarizado com a amplitude semântica das palavras e o erro trazia consequências à praxis dos eleitos, condicionava-lhes o desempenho (embora K. soubesse que os eleitos, iguais entre iguais, não faziam o que faziam por se sentirem constrangidos).
Porque não tinha passado de pobre a arrivista, K. abominara o espírito novo-rico da época, o consumismo exibicionista, o materialismo dominante. Quando um dia teve de trocar de carro, escolheu o segundo mais barato do mercado (por uma questão cromática, confessava esse capricho) e desagradou-lhe que não estivessem disponíveis unidades sem ar condicionado. K. não era ascético, mas de Inverno chegava-lhe a chauffage e de Verão gostava de circular de vidros abertos, cabelos ao vento.
O seu desprendimento do dinheiro não era revelação de um espírito luterano, nem era sintoma de masoquismo. Resultava da consciência de que havia pessoas em piores condições, pessoas para quem qualquer corte nos rendimentos seria literalmente (e não literariamente) um drama. E resultava também da consciência de que algumas coisas boas no país seriam postas em causa se a crise se abatesse com a máxima fúria.
Não foi por isso para K. um choque quando o Governo anunciou aquelas medidas de austeridade. O futuro, o seu futuro, preocupava-o, claro que sim, mas ele estava psicologicamente confortável com os sacrifícios. Pelo menos enquanto pensou que eles eram por uma boa causa. Ou inevitáveis. O desconforto veio quando K. percebeu que se ia atravessar a longa crise sem que fosse aproveitada a oportunidade para tomar medidas que moderassem os rendimentos dos mais ricos em favor dos mais desfavorecidos: os relatórios continuavam a indicar o crescimento descarado do fosso.

Quando caiu na rua, K. teve mais tempo para ver os grafitti, as palavras-de-ordem inscritas nas paredes. Lamentou que entre os seus talentos não estivesse o do desenho. Não gostava de pichagens abjectas ou esteticamente irrelevantes, medíocres, não gostava de borrões idiotas, palavras ocas, mas apreciava quando os autores sabiam transformar uma parede arruinada numa obra de arte, mesmo que subversiva, ou quando o humor ou a inspiração dos slogans se sobrepunham ao eventual prejuízo urbano. Ao contrário de palavras-de-ordem irónicas como «o último a sair apague a luz e feche a porta», não o costumavam entusiasmar slogans como «os ricos que paguem a crise». Mas agora, enquanto aquecia as mãos na fogueira improvisada, perguntava-se se ainda tinha razões para permanecer fiel ao seu pensamento razoável, se aquele não era o tipo de “demagogia” a que um sem-abrigo como ele estava moralmente autorizado a recorrer.


A vida de K. (3)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Naufrágio

Há algo de naufrágio declarado quando o governo e os blogues que o formataram e lhe abanam as folhas de palmeira nas faces se obstinam tanto em mandar bugiar emigrar os conterrâneos. O barco está a ir ao fundo, é notório, tanta água mete. E a culpa há-de ser em grande parte dos que estão dentro do barco, todos nós. Mas desconfio que o capitão não vai ser o último a abandoná-lo. Por enquanto, ainda é jovens e professores primeiro, mas mais para a frente há-de ser o salve-se quem puder — na esteira, aliás, de um passado exemplar.
Ainda um dia havemos de ser elucidados sobre como é que esta aposta na emigração de jovens e quadros se coaduna com aquela mágoa tão típica da direita com a infertilidade do país, o envelhecimento da população. Afinal, a juventude faz ou não falta para viabilizar economicamente a pátria?
Posso adiantar-me e esclarecer o paradoxo. A preocupação com a natalidade existia no tempo em que era preciso defender com estatísticas a falência iminente do Estado Social, agora que ele está em processo de desmantelamento já não são precisas muletas dessas.
Não tenho ilusões quanto ao que é possível o governo fazer nas condições actuais. E há uma boa dose de pragmatismo na exortação à debandada, claro que sim. Só que não precisamos de um Governo para nos dizer o que fazer quando a coisa fica preta, não é exactamente para isso que o elegemos. Seria insensato (é insensato) pedir-lhe que nos assegure o nível de vida anterior, como pedem as diferentes corporações no seu habitual egoísmo. Sempre foi insensato exigir ao Estado que garantisse emprego para todos nas profissões escolhidas, saídas automáticas da universidade para o mercado de trabalho. É estultícia conceber-se um Estado assim. Mas, por outro lado, o mínimo que pedimos a um governo é que lute pela diminuição do desemprego e estimule algo de patriotismo, ou melhor, de participação colectiva no bem comum. As pessoas sentir-se-ão mais confortáveis a pagar impostos e aumentarão mais facilmente a produtividade se o fizerem em nome de um país que se entristece com a saída dos nativos, não de um que os menospreza ou dispensa jactando-se de “frontalidade” e “pragmatismo”.
Não me repugna, porém, que o Governo exorte os conterrâneos a mudar de área profissional (como aliás também fez, diga-se em abono da verdade). Mas para que este apelo fosse mais do que mera hipocrisia, seria preciso que a economia estivesse a ser estimulada para criar emprego. Seria preciso que passássemos da fase do castigo moral (a “solução” exclusiva e beatífica da austeridade) à do vamos lá tentar resolver esta merda, nem que fosse com campanhas de repovoamento do interior, regresso ao sector primário. Está o Governo a fazer algo mais do que gerir a insolvência? Tem planos neste âmbito? Tenciona mostrar na União Europeia que assim não vamos lá e que eles também têm culpa no que nos aconteceu, que os juros que pagamos são inibidores? Não, claro que não. Por isso, quando o Governo indica a porta de saída aos seus cidadãos, não está a ser frontal — está a confessar a derrota, a anunciar que desistiu. Provavelmente antes mesmo de ter tentado.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Nem tudo está perdido

«Hello, I am 15 years old. I would like to apologize for what my generation has done to music. That is all.»

[Comentário no Youtube a um vídeo dos Beatles]

Still my guitar gently weeps

Há muito que K. não acompanhava a sua vida à guitarra. Quando se tornou feliz não soube que utilidade dar à velha Ibañez e encostou-a a um canto, a acumular pó. Não era de acordes festivos; se tinha de tocar, dedilhados e gemidos era o que tirava das cordas. A sua vocação perdeu por isso sentido, era um ofício de tempos cinzentos, desactualizou-se. Nos últimos anos, sempre que lhe pediam para tocar, K. recusava, preferia desiludir os convidados a dar o tom errado aos convívios. Se se pusesse a tocar sair-lhe-iam melodias pungentes, lamentosas, boas para embalar a melancolia. Estava totalmente fora de questão cometer essa indelicadeza, estragar as festas, deprimir a audiência. Os amigos recordavam-lhe o talento e sentiam-se vagamente saudosos de o ouvir, mas K. resistia a avivar-lhes a memória quanto ao carácter específico do seu talento — era quase tão perigoso referi-lo como exemplifica-lo. K. estava feliz, os convidados estavam felizes, se havia necessidade de música, o repertório teria de ser alegre. Entregava a guitarra a um dos outros sem sequer a afinar (mesmo essa tarefa seria plangente, nas suas mãos) e em poucos minutos a música era como devia ser.
Por mais de uma vez esteve para se desfazer da guitarra. Que interesse tinha mantê-la? Não era pessoa de acumular tralha, memorabilia. Desconfiava até que havia qualquer coisa de mórbido em conservar aquele instrumento de uma vida anterior, quase como guardar as relíquias de um morto. Censurava-se a inércia, a falta de coragem, perguntava-se se não devia temer a possibilidade de um objecto assim trazer má-sorte.
Depois os mercados entraram em pânico ou ficaram de mau humor, uma destas coisas, e K. deu consigo a pegar na guitarra. Inicialmente apenas a encostou ao peito, transmitindo os seus batimentos cardíacos à madeira. Chegava a casa, sentava-se e punha-a sobre as pernas, apoiando o tórax nela. Mais tarde, fez soar as primeiras notas. Quando deu por si, tinha deixado crescer as unhas da mão direita, voltaram os harpejos, os dedilhados, as melodias comoventes e lúgubres que saíam do nada.

K. nunca tinha tocado no metro. Agora que o fazia, perguntava-se se devia estar contente por ainda ter a guitarra ou se devia amaldiçoar-se por a ter conservado. Talvez a velha Ibañez se tivesse cansado do silêncio ou do uso indevido e tivesse exigido de volta a vida poética de antigamente. Talvez tivesse simplesmente atraído azar — mais do que atraía moedas para o chapéu.

A vida de K. (2)

sábado, 17 de dezembro de 2011

A relíquia

O Público tem na sua última página dois colunistas e uma relíquia. Infelizmente, não segue a política dos museus nacionais de fechar a página ao fim-de-semana. Mas devia. Se a ideia é ter naquele espaço representantes da direita e da esquerda, o Pedro Lomba e o Rui Tavares cumprem-na com distinção. O tipo que que entra de serviço à sexta desequilibra o arranjo. Mas não exactamente por favorecer um dos pratos da balança: antes porque acrescenta uma dimensão bizarra às coisas. No Público, há a realidade, há as interpretações da esquerda e da direita e há a visão do Vasco. É um pouco como se diz dos ingleses: bem comportadinhos nos dias úteis e bêbados ao fim-de-semana. É divertido, claro, ler-se a última página do Público de sexta a domingo, mas, como a cerveja, não traz proveito à vidinha que nos espera na segunda. Só que, instituído como está o Vasquito ao fim-de-semana, prescindir agora o Público da sua prosa seria como a New Yorker abdicar do flâneur e da borboleta. (Ou só da borboleta, pronto.)

Tendo em conta a crise da imprensa, talvez o Público pudesse proletarizar-se um pouco e ir buscar ao JN o Manuel António Pina. Ganhava-se a classe média e ganhava-se em pontaria, é certo, mas prejudicava-se a decoração da casa. Os dois são escribas sucintos, mas têm utilidades diferentes: Manuel António escreve pouco e acerta muito; os textitos do Vasco vão bem com o grafismo e as cortinas da Redacção. No dia em que acabem com ele (salvo seja) repetir-se-á o avassalador drama ocorrido quando o Público mudou de logótipo: lágrimas e ranho por uma ou duas infindáveis semanas.

Claro que se o Público dispensasse o Vasco a ERC poderia intervir. Quer dizer, talvez não a ERC — o Instituto dos Museus e da Conservação. Ou o Instituto de Arqueologia*. Uma dessas entidades tão absolutamente caras ao novo poder decerto sairia em defesa da sua relíquia queirosiana.


* Como é evidente, o Governo decidiu fundir o IMC e o IGESPAR apenas para estragar a piada.


[Nota: texto revisto e com pequenos acrescentos.]

Rosso

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Planos de vida

K. tem um objectivo de vida: acumular suficientes livros para a meia-idade (não conta ter velhice, diz que a vida não está para luxos desses). K. acredita que, nas noites ao relento, os livros dão melhor forragem do que os jornais, é preciso saber escolhê-los volumosos e de capas maleáveis. Há um livro que K. procura mais do que todos: A Guerra do Fogo. É uma demanda com razões afectivas, mas com um sentido prático, se se podem colocar as coisas assim. Em novo, K. leu grande parte do livro de J.-H. Rosny numa noite de tempestade à luz da vela e o que recorda são camadas sobrepostas de prazer: a leitura saborosa, a luz intimista, o calor aconchegante do fogão a lenha, o frio e a chuva e o vento na rua a lembrarem como é bom (e suficiente) ter abrigo e lume. Não lhe serve qualquer edição. K. precisa de uma antiga, com páginas amarelas e o cheiro certo, aquele que possa só por si evocar a história de uma infância feliz. K. acha que vai precisar desse género de sortilégios quando as noites forem mesmo frias e não houver luz para ler, ou ele não esteja com disposição para isso — K. imagina que não há muita disposição para ler quando se é um sem-abrigo. É esta a vantagem do livro impresso, pensa ironicamente, se não o podemos ler, continuamos a poder cheirá-lo e ter assim o nosso lume e a nossa noite aconchegada. (Façam isso com o kindle e o seu cheiro neo-liberal a máquina de calcular made in China, diz K., um pouco agastado.)

A vida de K. (1)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Homo Sapiens Sapiens

Aos escritores, aos editores e aos jornais pede-se-lhes que se reinventem. Aos artistas de palco pede-se-lhes pouco, talvez que se deixem extinguir sem demasiado ruído. Ao público nada se lhe pede. O público é soberano. Um dia o público vai determinar que só os urros são literatura ou música ou notícia e aos escritores ser-lhes-á pedido que grafem onomatopeias, aos músicos que sejam minimais e repetitivos, aos editores que descubram formas de embalar e vender grunhidos e aos jornalistas que nada perguntem, apenas segurem no microfone.

Como as artes, os livros e os jornais estão condenados à irrelevância ou à imbecilidade. Parece não haver público para as produções do intelecto. Não é certo, por isso, que haja um estádio para a humanidade acima do Homo Sapiens Sapiens. Mesmo que o mundo continue, a probabilidade é que os deuses nos retirem a dupla adjectivação, como as agências de rating retiram AA aos países e às empresas.

*A direita achará tudo isto inevitável e acusará a esquerda e os keynesianos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O espantalho

Fez a sua aparição numa curva da A24, na zona de Viseu. Empoleirou-se na laje de betão que serve de telhado a um barraco de apoio à agricultura — o terreno à margem da estrada é produtivo e é cultivado. O espantalho alçou-se ali, presume-se, para afastar a passarada. No entanto, há dois anos que ele fita é o trânsito, saúda-o. Na primeira passagem, a sua antropomorfia talvez assustasse o condutor desprevenido, mas com a repetição da viagem criava-se uma empatia. O espantalho era simpático, talvez até para os irmãos pássaros, um seguidor de Francisco de Assis. Provavelmente não era um espantalho, mas um totem místico, o padroeiro dos motoristas — não se vêem marcas de acidentes naquela curva.
Há meia dúzia de meses, arranjou companhia. Foi agradável vê-lo partilhar o horizonte com alguém da sua espécie, o mesmo ar négligé, a mesma forma original de combinar peças de roupa, a mesma barriguita de palha. Talvez o novo indivíduo seja uma senhora-espantalho, e, nesse caso, podemos imaginá-los por vezes a fazerem gazeta à função protectora e a olharem o pôr-do-sol nos montes (ou no mar, a imaginação não tem limites). Alguém deveria subir ali e colocar o braço de um sobre o ombro de outro.
Na verdade, talvez o tenham feito já, num fim de tarde auspicioso ou numa noite de lua cheia: na passada quinta-feira foi detectado um terceiro espantalho no mesmo telhado. A condução atenta não permitiu discernir pormenores, mas não custa aventar que se trata de descendência; o período de gestação de um espantalhinho não tem necessariamente de ser de nove meses.
Em pouco tempo, a curva da A24 ganhou uma tríade protectora, como dita o Livro. Passa-se ali e adquire-se um sorriso instantâneo — o sorriso que nos tinha sido tirado ao cruzar o pórtico das portagens, instituídas na mesma quinta-feira.
Viajar no interior do país pode ter ficado mais caro, mas há felizmente alguém que zela pelo bom humor dos viajantes, se o Governo não tem vocação para isso. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sofisma (Requiem)

Os amigos andavam-lhe a dizer que estava a compor melhor do que nunca. Tinha uma página no Myspace e fazia para ali upload das peças que criava ao piano no estúdio caseiro. No entanto, a crise acabara com os concertos, e os discos há muito não se vendiam. Gostava de compor, mas gostava mais que o ouvissem, de preferência em directo, em clubes de jazz. E os clubes de jazz também fechavam as portas, falta de clientela. Estava a compor melhor que nunca, mas estava também mais deprimido do que nunca. Estar deprimido era importante, crucial — a música saía-lhe do sofrimento, da melancolia, do desespero. Mas isso costumava ser suportável, porque a ideia de tocar ao vivo num ambiente de penumbra e fumo (também tinham acabado com o fumo) mantinha-o vivo, a expectativa de umas horas de felicidade relegava os dias de chumbo.
Numa primeira fase, pediram-lhe sem subtilezas que encurtasse as actuações, a maior parte da gente já não ia pela música, as despesas de funcionamento tinham aumentado, era preciso estimular o consumo dos clientes, facilitar o trabalho dos empregados que sobraram. Quer dizer, a música ainda era importante, fazia a diferença, mas três quartos de hora bastavam para cumprir o ritual, não era? Meia hora. Decerto não lhe interessava tocar se não o ouviam, e nos últimos tempos era notório que as pessoas se davam menos conta do que acontecia no palco. Não era também verdade que já nem os melómanos estavam para as quatro horas da ópera? Riam-se. Mais tarde decretaram em cartel regras que proibiam encores (a sua desculpa para prolongar as actuações), mesmo se algumas mesas esquecidas da linha da frente ainda os pediam.
O circuito de clubes, que em tempos fora a espinha dorsal da noite, estava agora reduzido a meia dúzia de apêndices obsoletos, em processo de reorientação, onde pernoitavam os saudosistas e os neuróticos. Bons consumidores, mas com dívidas e em número decrescente ano após ano. Morriam sem que fossem substituídos. Pertenciam a um povo que não se renovava. O circuito era agora um bas-fond sem charme.
De modo que estava a compor melhor que nunca, mas na verdade havia meses que não compunha, salvo uns adágios, uns esboços de tema, talvez promissores, inspirados, mas sem aprofundamento, continuidade. Sentia-se derreado de tristeza e frustração — o que normalmente o fazia correr para o piano —, mas sem um palco no horizonte achava supérfluo o exercício. Morria aos poucos do esforço. Recentemente eram mais as vezes que ficava na audiência a assistir ao afundamento do meio do que aquelas em que se sentava ele mesmo ao piano. Já nem tamborilava na mesa.

Quando na última noite consultou as estatísticas no contador de acessos da sua página, ficou a olhar para o gráfico de uma empresa em bancarrota. Descobriu que em dois meses, os últimos, ninguém sequer visitara o site, as mais recentes composições não tinham sido postas a tocar nem uma vez. A não ser que houvesse avaria no servidor, tinha de concluir que os próprios elogios dos amigos eram só uma tentativa educada, instintiva, de o animar.
Antes de pendurar a corda, ainda teve um pensamento optimista: o divórcio do público libertava-o do seu compromisso com a música — e, sem razões para compor, não tinha afinal necessidade de ficar deprimido.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O povo, pois, o povo

Envelhecer traz problemas, não só aos ossos e à tripalhada. De repente damos por nós a transbordar de bons sentimentos, a mancar para a esquerda. Havendo barricadas, saltamos para o lado do povo. Infelizmente, certos acontecimentos obrigam-nos a reconhecer o erro. Não há em Portugal um povo que mereça ser salvo. No dilúvio talvez se enchesse um bote, não mais do que isso. Os nossos bons sentimentos carecem de um objecto que os justifique. Podemos criticar com razão a direita por fazer pagar o justo pelo pecador, mas talvez seja também verdade que as nossas medidas para poupar os justos salvam uma quantidade insuportável de pecadores.
Isto, contudo, não absolve Passos Coelho — obriga-o a consultar-me caso a caso.

Domingo desportivo II

Tord Gustavsen Ensemble + Kristin Asbjornsen.
Veja também Kristin Asbjornsen + Pedro Mexia (4:53)

Domingo desportivo I


O terceiro tabuleiro*

«Seria revoltante, sendo Portugal o segundo país mais desigual da Europa, não ir concertando as coisas de modo a tornar o país mais justo.»
Perante uma evidência que ele próprio enuncia e reconhece, Passos Coelho promete ser mais rigoroso com… a atribuição do rendimento social de inserção. A julgar pela sua entrevista ao Público, é assim que ele pretende, digamos, tornar o país mais justo.
Rimos ou choramos?

* Os três tabuleiros de Passos Coelho: «contas públicas em ordem»; «tornar o país mais competitivo» e, digamos, «tornar o país mais justo». Riam, riam.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pré-coito

Ela faz as despesas da conversa. Ele solta uns monossílabos, muito de vez em quando, como o ajudante de maquinista punha carvão na fornalha da locomotiva quando ela circulava sem pressas em terreno plano — displicente e sem encher a pá, o grosso do tempo encostado ao cabo. No caso, é o garfo que fica frequentemente na vertical sobre o prato, ao jeito das crianças em luta com as couves, embora ele não recoste a cabeça rapada na mão. A aposta fácil é a de que o tipo, grandalhudo, se aborrece, escolheram a sala sem TV. Para beber, uma garrafa de tinto. Na frente dele, uma parede cujo branco já viu melhores dias; na dela, a três mesas de distância, alguém lê o jornal e na mudança de página espreita os comensais.

Magra, frágil, defende-se erguendo uma barreira de palavras. Ou, não a subestimemos, ataca como pode, com uma salva de artilharia que tenta confundir o inimigo. As molduras na parede são de súbito o motivo da conversa e ele é obrigado por momentos a abandonar a sua pose egípcia para se revelar tridimensional, mas fá-lo ainda em silêncio, aparentemente desinteressado, talvez a recapitular os últimos resultados da champions league.

À passagem para as páginas internacionais, ouve-se a voz dela, um ou dois decibéis acima do discurso ininterrupto de antes. Alta o suficiente para se sobrepor aos últimos trambolhões do euro. «Aborreces-me!», diz ela. O tipo do jornal levanta a cabeça e tenciona chamar o funcionário: alguém mexeu na decoração sem pré-aviso, ou mudaram de canal sem o consultar. Acha que tem uma palavra a dizer no que toca à escolha dos programas — mesmo que afinal não haja televisão. Mas logo esquece isso para se maravilhar com a natureza humana. O cenário que tinha dado por adquirido a três mesas de distância sublevou-se e o que pode observar agora é um gajo careca e tímido que tenta segurar nas mãos e beijar os dedos finos da amada. E uma tipa magra com ar de megera que sonega a osculice do imbecil que aceitou ter por conviva. Ela esbofeteia-o depois repetidas vezes com as pontas dos dedos. Não o quer ferir, não fisicamente. Mas não se importa de o humilhar perante o tipo que se debate ruidosamente com o jornal. E o parceiro fala, por fim, solta umas palavras em voz fina, trémula, uma voz que lhe reduz o corpanzil ao recheio de um peluche: «Môr...»

Por alturas do editorial, que no Público vem nas últimas páginas, como se sabe, o que se vê é a cabeça dela entre as mãos dele, a cabeça dele sobre a cabeça dela, tudo em cima da mesa, rebolando, mas sem semelhanças com o judo ou o sumo — uma ronronice de felinos em pré-coito. A garrafa está vazia.

Osso Vaidoso


A crise e a naftalina de turno devolverão a província à sua condição subalterna e atávica — é esse o plano. A que a província aliás não se opõe. No entanto, por um hiato a província foi um local decente para habitar. Um post do Luís no Rebuçado de Mentol fez-me recordá-lo. Dezembro do ano passado. Osso Vaidoso: Ana Deus e Alexandre Soares em concerto. Um de tantos momentos inesperados. Os textos de Regina Guimarães. Também para o Teatro de Ferro. Que já agora me recorda a Circolando. E o Teatro de Marionetas do Porto. E… As harpias e os assessores de serviço farão o seu serviço obliterador, claro que sim, mas talvez a memória seja um osso duro de roer. Um osso vaidoso.

Momento Asimov II


















Roubada aqui.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O remorso de Valter Hugo Mãe

Abel Barros Baptista escreve na Ler uma crónica sobre o caso Valter Hugo Mãe e as minúsculas. Parece que alguns daqueles que antes lhe grafavam o nome como o próprio, em minúsculas, passaram a usar as maiúsculas desde que o autor se converteu à normalidade (talvez vencido pelos remorsos). Há quem dance conforme a música. É divertido. E seria ainda mais se no próximo livro Valter resolvesse baralhar de novo, por exemplo escrevendo apenas minúsculas no início das palavras. vALTER hUGO mÃE. Segui-lo-iam?

Referida assim, a questão até parece do domínio do capricho. E é. Que mais se pode chamar às opções de Valter Hugo? O uso exclusivo das minúsculas só era uma questão de estilo no sentido que a moda emprestou à palavra: oco, fútil, efémero (como aliás parece agora provado). Na literatura, o estilo não tem exactamente que ver com a forma como o escritor utiliza a tipografia. (Se assim fosse, o autor que usasse sempre a fonte Avant Garde seria talvez de imediato um vanguardista.) O estilo de Saramago, por exemplo, não se define pela escassa utilização de pontos finais e sua substituição por vírgulas, embora isso seja fulcral na obra. A pontuação usada como ele a usava estava ao serviço do ritmo, da sonoridade, da forma de pensar e narrar. Com Valter Hugo Mãe e as minúsculas não era isso que acontecia.

Creio ter lido algures uma entrevista onde o autor referiu que não usava maiúsculas porque queria que a leitura fosse mais torrencial, sem se deter muito, sem tropeçar nas maiúsculas, portanto. Ora, o que determina o ritmo da leitura é a narrativa, o enredo, a construção das frases e a pontuação, não a forma como se utilizam as maiúsculas. Tanto quanto posso julgar pelo único livro de Valter Hugo que li, a sua prosa (que tinha personalidade, mas por outras razões) não se distinguia por uma pontuação particular. Pelo contrário, lembro-me de que em certas passagens havia uma boa quantidade de vírgulas a ceifar, ali postas à maneira clássica. Se o objectivo era acelerar, o escritor rejeitara oportunidades de aliviar os travões. E a ausência de maiúsculas, sendo inesperada e contrária aos automatismos da prática da leitura, até atrasava.

Embora descobrisse no processo que não era o meu género de literatura, passei uma tarde agradável com O Remorso de Baltazar Serapião, mas cheguei ao fim a achar que o próprio escritor devia sentir remorsos por se envaidecer de tão obstinada e fútil originalidade.

Como em Saramago (ou em Lobo Antunes), o leitor despreconceituoso, ao fim de algumas páginas de leitura persistente, entra naquele universo e vai progressivamente dançando ao som da música do autor (neste contexto a dança é legítima). Mas a questão é se vale a pena o esforço. Talvez se descubra que sim, que vale a pena, mas não é certamente pelas minúsculas — inúteis, contraproducentes, caprichosas e alheias à literatura como os piercings de José Luís Peixoto.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O sentido do fim



Se vista da serra, a cidade adormece imergida num mar de nuvens. O noctâmbulo caminha nas suas ruas como se a terra fosse outra, tal a acção do nevoeiro nos objectos, nas formas, na luz, na arquitectura, na atmosfera. Puxa as golas do casaco para proteger o pescoço do frio. O dia amanhecerá gelado; a temperatura desceu e aquele manto branco, que não pretende levantar acampamento, não vai deixar entrar um raio de sol. É quase inconcebível evocar o Verão em tais circunstâncias, mas era isso que o caminhante pensava fazer, o Verão como marco miliário na distância, ponto de fuga da tela onde ele é figurante, éden cíclico aguardado com devoção religiosa. Se a revista conhecida lhe perguntasse como gostaria de morrer diria ligeiramente bêbado à beira de uma piscina. Contudo, pensa no corpo nu sob o astro e não é daí que lhe vem o conforto agora, mas da ténue protecção do casaco, da energia da caminhada vigorosa, do silêncio e da solidão extrema que um banco de nevoeiro pode proporcionar. Os carros e os transeuntes ficam em casa, tementes da humidade silenciosa, ameaça cinematográfica, e os adolescentes deixam a parvoeira para outra altura da semana, não apetece grunhir nem partir garrafas na rua em noites assim. Alguém acendeu uma lareira rústica algures, talvez um fumeiro nostálgico num anexo ou garagem, custa a crer que o lume ou o fumo tenham aquele cheiro na cidade. Decerto lenha trazida da aldeia, depois de uma temporada no alpendre, sabiamente cagada pelas galinhas e pelos gatos e pelos pássaros, curtida pelo sol e pelo vento que se esgueira entre friestas de muros de hortas e lameiros e paredes de combarros. Não, o Verão não permite este alheamento, esta deslocalização, este passear a alma por paisagens distantes sem abandonar a geografia do quotidiano. Não quando se está sóbrio, pelo menos. Pensa que talvez possa descrer do Verão sem cometer heresia. Afinal, tem de recordar que também gosta da chuva quando ela cai em Novembro, gosta de se abrigar como no útero a escutá-la com atenção, ou de levar com as suas pingas enquanto corre, o cabelo empastado e o poliéster do casaco permissivo. E gosta da geada, que deixa o céu todo à mostra, o universo primordial à vista desarmada. Da neve, luzente e também silenciosa, excepto quando estala debaixo dos pés. Não, não é o Verão — são os elementos todos. Isto não é bem uma conversão, embora seja uma epifania: o noctâmbulo é afinal devoto da intempérie como do tempo favorável. Aceita a tormenta e a bonança. Um progresso ou um prenúncio de união panteísta? Lembrança que o pó ao pó volta? A felicidade não mora assim tão longe da melancolia.

*Não, não tem a ver com o (muito recomendável) livro cuja capa e título usurpa.

Recado ao artista quando jovem

O candidato a escritor que vive a tentar equilibrar o trabalho de fundo com a diarística de um blogue um dia descobrirá que há vertentes incompatíveis na escrita. Um post de cinco linhas impede uma página de romance. Inversamente, o trabalho de fôlego faz hibernar blogues por um longo período.
A declinação das editoras surge então como convite a voltar ao trabalho, tem esta faceta positiva. É quando chega a carta com a fórmula amável que o escriba retoma o verdadeiro ofício. Uma recusa é um aviso de que o recreio acabou, já não é sério viver à sombra da obra feita. Porque não existe obra, di-lo a fatídica missiva.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Teatro Nacional

Quando Vasco Pulido Valente, a propósito do Dona Maria, insiste no «fracasso» da dramaturgia nacional como uma das duas razões para no seu entender se extinguir a instituição, dir-se-ia que na sua cabeça está um Teatro Nacionalista, não um Teatro Nacional. Não é estranho que à época da sua instituição o TNDM II pretendesse criar um repertório nacional, mas seria estúpido que mais de cento e cinquenta anos depois essa permanecesse a única ideia ou a ideia fundamental (quando, aliás, Shakespeare entrou naquela casa logo no século XIX). Ainda que aceitássemos nada se ter escrito no domínio dramatúrgico em Portugal que valesse a pena, caberia contudo explicar porque não se justifica um Teatro que apresente peças estrangeiras. O chauvinismo não parece ser razão séria — e é talvez pouco respeitável alguém que defenda um Portugal fechado sobre si mesmo.

A outra razão que VPV aponta é a inexistência de público para o teatro em Portugal. Este argumento não é de todo destituído e, apresentado na sua forma simplória, colhe em vários círculos pensantes e decisores. Poder-se-ia argumentar que, por exemplo, as Finanças em Portugal também não têm uma audiência fácil, mas nem por isso deixam de tentar existir. A resposta é que as Finanças são fundamentais para a sobrevivência do país, o teatro não. É verdade. Mas de que país estamos a falar?
Um país que dispensa o teatro com este argumento dispensa, por coerência, todas as manifestações culturais “eruditas” (ou não comerciais). Não significa isto que os utentes são necessariamente os mesmos, significa que — do teatro à literatura, da dança à história, das artes plásticas à filosofia, da cultura clássica à mais contemporânea — são todos minorias, pouco relevantes, se avaliados por uma estatística cega.
Ora, um dos deveres democráticos de um Estado é assegurar uma sobrevivência digna às suas minorias — mesmo que antropologicamente, se quiserem. Depois, se pretender integrar uma certa ideia de civilização, poderá tentar fazer mais alguma coisa.
É claro que muitos convivem bem com ideia de choldra, até para poderem continuar a usar a sua gramaticazinha queirosiana. Mas não parece ser essa a função de um Governo.

Excedeu-se o Estado português neste seu labor de assegurar a “alternativa democrática” na área da cultura? Com um orçamento significativamente inferior a 1% do OE não parece ser o caso. Tanto mais que o investimento público na área do entretenimento, da festa pura e dura, do pimba, é superior. Mas isto, mesmo que inútil, é popular, concorrido — e, enfim, não se intromete no quintal do cronista.

domingo, 27 de novembro de 2011

Plural majestático

No snack-bar, o empregado usa por sistema a terceira pessoa do plural com os clientes, ainda que estejam sozinhos. «O que ides comer?» «Já tendes a conta?» «Como quereis o prego?» «Ainda não vos trouxeram o fino?» «Ora aqui está o vosso troco.» Talvez o faça para não ter de pensar na formulação correcta quando por exemplo pergunta a um cliente se já encomendou: no contexto das suas intervenções, «já pedistes?» nunca é erro.
Infelizmente, o serviço nem sempre corresponde ao tratamento. Somos majestades para as suas palavras, mas não para a sua prestação, sofrível. E quando de repente o ouvimos perguntar «já acabaste?» sentimo-nos incomodados. As suas palavras não soam apenas a súbita intimidade, mas a verdadeira impertinência, desaforo. Um tipo habitua-se a ser tratado como merece e depois ressente-se.

Ulan Bator

Guimarães Jazz 2011. O crítico Nuno Catarino viaja a convite da organização do festival. Na abertura do seu texto declara que o evento é um caso de sucesso «apesar da sua localização condicionante». É um elogio, claro. Mas é também a habitual menorização de tudo o que não é Lisboa. (Exercício para o qual, aliás, os próprios provincianos geralmente concorrem.) Lisboa estranha casos de sucesso em terras inóspitas. Lisboa, a Lisboa jornalista, a maior parte das vezes só viaja para locais assim «a convite», como quando vai a Ulan Bator. O seu âmbito é o do termo da aldeia capital, e não apenas por uma questão de orçamento. Se alguém tem a ideia peregrina de fazer coisas a mais de uma légua, prepare-se para «convidar» os jornais se quiser ter reportagens e críticas. E mesmo assim é preciso que ao jornalista apeteça a estafante viagem.

Sobre a inutilidade do debate online

Who cares, idiots arguing on the internet. What’s the worst you can do? CAPS LOCK EACH OTHER TO DEATH?

Freqeist, no Youtube, comentando uma discussão sobre a cover dos Radiohead do tema “Wonderwall” (Oasis).

Escroques

Se os escroques permanecem, porque passou a palavra de moda?

Fernando Gouveia, algures em Portugal

Prove que é humano

Uma operação na Internet pede-me a dada altura: «Prove que é humano». Fico a olhar para aquilo, perplexo. É um pedido e pêras, para uma hora tão matutina. É um pedido exigente em qualquer altura, aliás, sobretudo tendo em conta que o espaço que me é dado para escrever é ridiculamente minúsculo. Eu já estou a pé (mais ou menos), mas ainda tenho de ir acordar a Filosofia. Ou ir bater ali à porta do meu amigo Zé. Inequívoco e conciso, eis o que me é pedido que seja. Ensaio duas ou três ideias, mas nenhuma cabe em tão apertada caixa. É então que me dou conta que o que se me pede é que copie duas palavras aleatórias escritas com letras manhosas logo acima do espaço da resposta*. Só isso. Para ser humano basta saber copiar. A que ponto baixaram a bitola. E eu que estava a ser estúpido — talvez nem precisasse de transcrever as letras para provar a minha humanidade.

* Captcha.

sábado, 26 de novembro de 2011

O funcionamento do mundo

O indivíduo espreita os seus e-mails e, sabe o diabo porquê, detém-se num que alerta para determinado perigo, certo esquema criminoso ameaçador para a bolsa privada e a saúde pública. Por vezes o filtro deixa escapar algumas destas mensagens. E outras que prometem aumentar o pénis ou depilar sem dor. (Depois do susto, percebe-se que pénis e depilar são felizmente palavras sem um radical comum.) Resolvido a perder tempo, o indivíduo abre o e-mail em análise. A coisa, tantas vezes reencaminhada, tem múltiplos pontos de exclamação e um rasto que remonta a 2009. Neste momento o indivíduo fica fascinado e parte para o Google em safari. Antes de chegar à região dos Grandes Lagos, descobre um blogue que postou o mesmo alerta e foi alvo de uma centena e meia de comentários. As reacções são de susto e indignação. O texto interessa às pessoas, preocupa-as, assusta-as, como era seu objectivo. Elas têm opiniões sobre o assunto, teorias, denunciam possíveis conspirações. Não tarda Deus é invocado, os astros, o próprio demónio. A discussão na caixa de comentários divide-se em duas abordagens: a conspirativa e a esotérica. (Alguns intervenientes jogam nos dois tabuleiros.) Os insultos entre facções afloram. Lá para o trigésimo quinto comentário, um dia depois da postagem, uma alma intervém pela primeira vez e comunica que recebeu o e-mail, notou que havia nele um nome, uma instituição e um número de telefone que pretendiam credibilizá-lo. Ocorreu-lhe que ligar para aquele número poderia evitar alguns equívocos. Fê-lo. A pessoa e a instituição existiam, mas jamais tinham emitido tal alerta, aquilo era uma fraude, já a conheciam mas nada tinham podido fazer.
A caixa de comentários do blogue fica por instantes perplexa, nota-se uma pausa na cadência das intervenções. Depois os seus habitantes retomam a actividade normal, os místicos insistem na influência das forças ocultas e os crentes em conspirações aludem ao governo e a certas corporações. Nenhum se deixou perturbar pelo instante de sensatez que acometeu o funcionamento do mundo.

Por volta do centésimo comentário, o observador retira-se, confiante. O debate não voltara a distrair-se das questões essenciais e os insultos continuavam em crescendo. Dois anos depois ainda havia gente a reencaminhar a boa nova.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guarda-roupa

Brotando das cabeças onde se acoitam, as ideias e as ideologias determinam o visual do espécime, começando logo pelo corte de cabelo, cujas raízes, como se sabe, contactam com as sinapses. As rastas e os keffiyeh são exemplos sobejamente conhecidos em certa esquerda, mas nunca se fala suficientemente das opções estilísticas da direita. Não são muitas nem muito imaginativas, é verdade, mas há alguns aspectos amorosos. Como o fato british, com riscas mais ou menos subtis, os sapatos de vela e as parkas (mesmo que se esteja a milhas do mar), o cabelinho penteado para trás ou de risca ao lado (evidenciando muitas vezes a calva — que os portadores tomam por testa longa — como se evidenciasse um cérebro grande), cobrindo as orelhitas por causa da geada ou dos zunzuns, encaracolando na nuca, o gel à Zezé camarinha, a gravata a toda a hora como yes men ou caixas de bancos. Há uma utilidade nestas opções, como havia no tempo de Napoleão: na guerra, identifica-se bem o inimigo pelo uniforme. É disso que se trata, uniformes de facção, fardas de funcionários. E não custa imaginar os mais zelosos das respectivas causas a marcharem como idiotas em levas ordeiras, obedientes, ao som do tamborileiro que lhes calhe.
Não tenho a sorte destes funcionários. Durante anos, o meu pobre guarda-fatos parecia o armário de quatro ou cinco tipos diferentes. As minhas manhãs eram como as de certas mulheres, só que eu gastava o tempo a decidir, não a aprimorar a maquilhagem. Nunca tive lá calças afegãs nem fatos de riscado, é certo, mas havia dias em que ao sair de casa poderia ir acorrentar-me a uma central nuclear e outros em que me deixariam entrar no clube mais restrito. Bem sei, isto pode revelar alguma confusão mental, indefinição, indecisão, incerteza. É verdade. As minhas certezas são poucas, e nenhuma a respeito de fardas. Ou antes, sobre isto uma certeza: não visto.

Eu hoje acordei assim

O post anterior podia ter o título de uma rubrica célebre na blogosfera. Se tivesse saído cara.

Saiu coroa



A propósito disto.

A lógica machista

«Uma afegã de nome Gulnaz, de 21 anos,enfrenta um terrível dilema: ou permanece na prisão com uma filha pequena,cumprindo pena por ter sido violada por um homem casado, ou contrai matrimóniocom o agressor para poder sair da prisão.»

O “dominó democrático” de Bush falhou logo onde era para ter começado. Mas por cá não temos motivos para estar satisfeitos. A lógica machista ainda impera, e na sua versão mais aplicada deixa um rasto de sangue quotidiano. Não somos civilizados, não. Uma parte de nós continua besta como sempre. Talvez os filhos varões devessem ser educados com bonecas e aulas de ballet durante umas gerações. Ou postos de sopeira por uma temporada, como antes se mandavam para a tropa. São ideias.

A lógica cómica

Diz-se por aí no submundo (ou mundo real) das caixas de comentários que a greve é uma coisa da função pública. Os trabalhadores do sector privado têm medo de perder o emprego. Ora, isto que pela lógica pareceria uma crítica ao despotismo dos patrões, ao cerceio de direitos democráticos, é na verdade mais uma crítica ao “funcionalismo” público. É cómico, pronto.

Asimov, Isaac

O projecto de construção era optimista ou mal-informado, talvez info-excluído, por isso o supermercado abriu com mais de 20 caixas. Funcionaram umas doze nos picos consumistas dos primeiros anos e cedo a média se ficou pelas cinco ou seis. A seu tempo a tecnologia arribou, e as quatro caixas automáticas (ou self-service) instaladas reduziram as restantes a três. Nos melhores dias. Ontem estava bom para a leitura, caso os funcionários fossem adeptos ou estivessem autorizados a ocupar o tempo livre dessa forma.
Não é apenas a crise, a recessão, a baixa do consumo. É a tecnologia. E a terciarização da economia. E este é o momento Asimov do blogue.
A não ser que mantenham a todo o vapor máquinas absurdas como a da construção civil (manifestamente excessiva já na última década) ou que inventem novas necessidades consumistas (enquanto houver combustíveis e matérias-primas e clima favorável), os países ocidentais dificilmente conseguirão empregar a maioria dos seus cidadãos no futuro. Excepto, claro, se a globalização voltar atrás, se as importações forem altamente taxadas. Por isso, no futuro o trabalho será partilhado, as pessoas terão finalmente mais horas de ócio, assistiremos a uma melhor redistribuição da riqueza (não voluntária, evidentemente) para assegurar a viabilidade das sociedades. Ou então filmes como o Mad Max e livros como A Estrada serão a realidade sem que seja preciso rebentar uma só bomba nuclear.

Painel de… especialistas

Os especialistas que comentam (de véspera) a greve nos jornais fazem-no do fundo da trincheira. À esquerda, manifestam (sem utilizarem a palavra) esperança numa grande afluência e em resultados da acção. À direita, condescendem, pronto, com o direito constitucional mas não disfarçam o desprezo pelo conceito. Nada de novo na frente ocidental.

Pseudo

Há palavras fetiche. Pseudo não chega a ser uma palavra, mas é um elemento de adjectivação que muitos gostam de cometer. O seu uso mais frequente é como prefixo da palavra intelectual. Ninguém é intelectual hoje em dia, os que estão mais próximos disso são pseudo-intelectuais. Ora, tendo em conta o valor semântico actual do termo, tendo em conta que não é bem visto ser-se intelectual, chamarem pseudo-intelectual a alguém até pareceria uma demonstração de apreço. Contudo, a gramática leva ainda mais voltas, e se intelectual é já insulto, pseudo-intelectual é, do ponto de vista da intenção, duplamente insultuoso. Como doido-varrido. Ou besta-quadrada. No uso do vulgo, pseudo não qualifica de falso o termo que lhe sucede, com a intenção de negar a suposta virtude ao alvo, mas reforça a conotação pejorativa que a palavra tem na nova língua comum.
As ocorrências do fenómeno com que deparei mais recentemente relacionavam-se, é curioso, com a mesma pessoa. Um simpatizante do Secretário de Estado da Cultura classificava de «pseudo-críticos» os tipos que questionavam a actuação do Governo neste campo. Já uma subscritora da petição «As Artes e a Cultura para além da crise» (uma pseudo-crítica, portanto) apelidava Francisco José Viegas de «pseudo-escritor».

É divertido que utilizem a língua desta forma erudita pessoas que pretendem ter ideias para a Cultura.

Os posts são como as cerejas

Não era isto que devia estar a fazer. Um blogue é a maneira que a pessoa encontra de adiar o sono e os compromissos que tem consigo mesma. Não é voluntário, os posts são como as cerejas. Ou não é voluntário porque Alguém ou alguma coisa decide pela pessoa onde melhor deve perder o seu tempo. Talvez toda a iniciativa humana seja fútil e a vocação que um tipo julga ter não é necessariamente a vocação de que o mundo quer desfrutar. Um blogue é uma das muitas maneiras que temos de fracassar ou de falhar o destino.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Exactamente

http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/3757643.html

Medrar

Há não muito tempo, o que se ouvia cá em cima era uma flauta a tentar ser afinada e harmoniosa, às voltas com melodias populares ou obras clássicas para iniciantes. Nessa altura, a proverbial forma lusa de construir blocos de habitação não vinha ao caso. Pelo menos não a propósito desta faceta da vida íntima da vizinhança. De resto, o esforço divertia, evocava memórias, permitia acreditar na persistência da arte. Mas entretanto o rapaz cresceu, tornou-se pré-adolescente, largou a flauta. O seu repertório, atravessando as finas paredes e lajes ou subindo pela canalização do edifício, quase se resume agora a famosos hinos de estádio, entoados numa voz que quer (mas nem sempre consegue) ser grossa e façanhuda como as demais.

Bartleby ou o indivíduo e as suas estonterias

Muitas fotografias de escritores são feitas em frente às suas estantes. No seu caso, não tivesse falhado o destino por outras razões, havia uma decisão que o tinha livrado desse lugar-comum.
A última mudança de casa deixara para trás os livros acumulados. Como todas as mudanças, aquela era provisória, não havia urgência de empacotar a livralhada para a viagem. Além do mais, havia-lhe sido detectada uma certa tendência para deixar o lastro pelo caminho. Os livros ficavam, de qualquer modo, à guarda de um ente próximo, salvaguardava-se assim a possibilidade de um feliz reencontro (do indivíduo e dos livros).
Contudo, o contrato de arrendamento da morada anterior foi denunciado antes que houvesse progressos de carácter na nova morada. Havia que regressar e carregar as caixas, encher novas prateleiras. Ou talvez não. Poderia evitar-se o lugar-comum arranjando outro lugar para os livros. Em vez de recuperar a biblioteca e arriscar a possibilidade de um dia ser fotografado em frente a ela, o indivíduo podia doá-la. Afinal, sempre acreditara que a grande qualidade dos livros era poderem ser lidos por várias pessoas em vez de acumularem pó em estanterias burguesas.
A concretização do gesto expô-lo à possibilidade de passar por benemérito. Afastou o embaraço decretando que tinha sido a preguiça de carregar caixas e não a generosidade a movê-lo. Modéstia, disse a instituição agraciada, ninguém se livra assim de algumas centenas de livros. Modéstia, aceitou pensar de si próprio.
Anos depois descobre-se a contemplar uma fotografia do poeta sueco Tomas Tranströmer em frente às suas estantes. Não lhe é possível imaginar-se naquela posição. Não tem talento nem livros em quantidades suficientes. Algures no passado as suas decisões alienaram-nos (um homem é o resultado das suas opções). Mas não é sobre isto que reflecte. O que pergunta a si mesmo ao contemplar as lombadas do sueco é quem, da multidão que o habita, se desenvencilhou dos livros? O preguiçoso? Aquele que não gosta de viagens de regresso? O tipo que ambicionava morar em hotéis, sem memorabília? Ou o leitor desprendido e solidário?
Pensar nos equívocos convoca a melancolia. Resolve perguntar-se, espreitando por cima do ombro, se não está a crescer desmesuradamente a nova colecção de livros. Se não está, de novo, a expor-se ao risco de ser um cliché fotográfico. Enfim, se não está na altura de mudar de casa.

Governo contra os despedimentos e a favor das progressões na carreira

Se não tresleio a notícia do Correio da Manhã, a assessora de imprensa do Ministro da Economia foi considerada incompetente (falhou a missão de propaganda). Por isso foi…. Não, não foi despedida. A ex-jornalista do DN, depois de tornada a assessora mais bem paga do Governo, vai passar agora para a administração do Turismo de Portugal. Deve ser a crise.

A greve ou um manguito

Amanhã ou faço greve ou um manguito. Não por causa dos cortes nos salários e nos orçamentos. Mas para mandar para o raio que a parta a direitinha oportunista que se aproveita da crise para implementar a sua visão cinzenta e estreita do mundo. E os idiotas úteis que tendem a achar que sim, que com a crise a democracia se pode suspender. Suspendam isto!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sábado à noite

Morena, vestida de escuro, ar trágico. Senta-se e um dos empregados logo lhe traz a ementa. Ela recusa, delicada, espera mais alguém. Escolheu ficar de frente para a televisão. Fixa-a como se olhasse através da janela, nas pausas de espreitar por cima do ombro a entrada do restaurante. Os minutos passam. Um segundo empregado, de passagem pelo sector, repara nela. Amável, deixa a ementa que traz debaixo do braço. Ela recusa, diz num quase sorriso que espera mais alguém. O dono acaba de regressar do seu cigarro na rua, nota a cliente sem menu e imagina incompetência do pessoal. Num resmungo, ataca o móvel das entradas e, já simpático, pergunta se «é sozinha». Ela recusa mais uma vez a ementa, pede que recolha as entradas, ainda espera alguém.
Há uma quarta pessoa de serviço na sala. É probabilisticamente possível que lhe perguntem de novo, como se fosse a primeira vez, se está sozinha. Mas seria a sua quarta resposta, a quarta vez que negaria a si mesma a evidência. Levanta-se. Recusar a ementa não foi uma deferência para com quem haveria de vir. Foi um acto preventivo. Não tem nada a pagar. Pode sair sem enfrentar os olhares do pessoal.  

A Cultura, no imediato

João Carvalho, no Delito de Opinião, tem ideias sobre Cultura. A mais esclarecedora diz que «a Cultura não dá de comer no imediato a quem tem fome». É todo um programa.
Nesta, como noutras matérias, o blogger é feroz apoiante do Governo. Por alguma acção em concreto? Não. «A Cultura institucional está entregue a um homem de cultura que nada tem a provar para fazer currículo. Chega-me.»
O Secretário de Estado nada tem a provar, portanto. Em caso de dúvidas, basta-lhe abanar o currículo nas ventas dos críticos. (O que, sendo Verão, até ajudava a poupar no ar condicionado). Mas já que Carvalho se satisfaz com pouco (é mais um adepto da frugalidade) e chegando-lhe o perfil do Secretário de Estado, não estaria disposto a aceitar uma silhueta recortada em cartão? Ainda seria mais económico.

João Carvalho não apoia veleidades na área da Cultura porque, enquanto apreciador do Secretário de Estado, quer protegê-lo duma doença que afecta «a mais distinta intelectualidade da nossa praça». Parece que «os mais iluminados, quando se vêem a decidir, perdem depressa a imaginação criadora e a acção raramente ultrapassa a simples distribuição de verbas». Pelo sim, pelo não, abstenha-se a Secretaria de «ideias geniais». Talvez um diploma emoldurado na parede chegasse para o serviço que é necessário.

Mas será o cheque em branco de Carvalho uma apologia da inércia? Não, nada disso. Na verdade, há acções da Secretaria de Estado da Cultura que João Carvalho aplaude vigorosamente. O seu post, de resto, é espoletado por uma dessas acções: o despedimento de Diogo Infante. Claro que, em rigor, decisões do género (mesmo que correctas) não são exactamente medidas culturais, mas actos administrativos. Ora aqui é que bate o ponto: depois de um currículo, a opção de João Carvalho para a Secretaria era talvez um mangas-de-alpaca, alguém com jeito para subtracções e sem o perigo das ideias.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Irritações 2

Ignoro como seja Vasco Pulido Valente na sua existência real. Apenas conheço a persona que se projecta a partir dos textos que ele escreve. E esta por vezes* faz-me pensar em certos escritores que deixam de se interessar pelo seu tempo, pelo menos enquanto intervenientes, já só vivem para a posteridade. Perguntam-lhes por autores vivos que eles admirem e eles têm um gesto de enfado. Todos os que são dignos de louvor estão mortos e enterrados, não pertencem a esta época. Jovens promessas das letras? Não lêem, não acreditam, não têm tempo nem paciência. Quando não estão a escrever, relêem os mestres. De resto, já não crêem na literatura, os livros vão desaparecer. Talvez alguns grandes vultos sobrevivam. E, sim, admitem se instados, modestos, ficariam contentes se uma ou outra obra sua se incluísse no panteão.
Esta não é uma arrogância nova, repete-se a cada geração ao longo da história. Em certos espécimes envelhecidos, a falta de generosidade e o egotismo vencem o sentimento de pertença e a curiosidade. A urbe é a certa altura para estes pessimistas como as trezentas concubinas para o geronte Salomão de A Cidade e As Serras: um serralho «ridiculamente supérfluo». Mas, como diz Jacinto, não são exactamente as concubinas que se tornam imprestáveis.
Talvez a literatura acabe, mas será por falta de leitores, não de escritores. Se estes Schopenhauers (para nos mantermos na perspectiva do Jacinto queirosiano) não estivessem publicados, se não tivessem sido lidos, se mantivessem um mínimo de abertura e curiosidade em relação ao que se produz no seu tempo, talvez vissem o problema pelo lado certo. A época não tem falta de génio criativo — tem falta de público. Décadas antes, as pessoas eram postas no caminho das obras, literárias ou outras. Agora, com conivência geral, as obras são afastadas do caminho das pessoas, como obstáculos que impedem o avanço da carroça.
Estes jubilados podem já não ter ânimo para ir admirar ou agitar as artes — mas escusavam de ser tão prestimosos a promover o enterro delas. Escusavam de pôr o seu prestígio ao serviço da actividade funerária.

*Ver Público de sexta-feira.

Não há dinheiro…

É obscena a alegria mal reprimida com que alguns repetem «não há dinheiro». Nem sequer parecem pais a enxotar filhos chatos ou perdulários. O sentimento dos progenitores nestas situações pode ser tédio ou irritação. Mas decerto nenhum pai diz a um filho com alegria (ou sequer tédio ou irritação) que não há dinheiro para o médico, para os cadernos, para aquecer a casa, para o doce há muito augado. Os pais muitas vezes procuram, por necessidade estratégica, desvalorizar as dores e os anseios dos filhos, mas nunca ficam satisfeitos por os negar ou contrariar. Tristeza, manifesta ou contida, é o sentimento humano para estes casos. Alguns tutores particularmente pragmáticos podem arvorar uma certa indiferença — perdoa-se-lhes, é a forma de não permitirem que as emoções dificultem o que têm de fazer para a sobrevivência da família. Mas outros estados de espírito são inadequados. A alegria mal reprimida é bizarra. Faz desconfiar que há um sádico em casa, alguém com ressentimentos mal resolvidos.

…é uma alegria

Esta satisfação com a escassez do dinheiro tem nalguns casos uma razão conhecida. Há tipos que vivem mal com os interesses alheios. Se mandassem (e agora mandam, ou pelo menos mandam bitaites), a sociedade haveria de se reger pelos seus interesses particulares. O que eles não necessitam, não consomem, não frequentam, não utilizam ou não apreciam pode simplesmente acabar; por extensão do seu ego, não faz falta a ninguém. Até aqui, sentiam alguma dificuldade em convencer toda a gente de que aquele ponto de vista era racional. As pessoas não são sempre estúpidas, por vezes percebem quando estão a tentar decidir por elas. Contudo, a crise instalou-se, e com ela chegou por fim o argumento de que os tipos necessitavam: não há dinheiro. Agora podem abrir a boca e parecer sensatos. O argumento é real, as pessoas são sensíveis a ele. Os despotazinhos podem finalmente afunilar a sociedade ao seu critério que a intenção não é percebida por todos. E ei-los aos saltos, afogueados, a berrar a toda a hora e em todo o lado o seu mantra: Não há dinheiro, não há dinheiro, não há dinheiro. É uma alegria.

sábado, 19 de novembro de 2011

Bonnie and Clyde

Um casal passeia no parque, pisando as folhas coloridas do Outono. São muito novos, mas vestem como adultos, com uma elegância clássica. Ela tem um penteado de diva de cinema, louro, ondulado, enrolado nas pontas como em certas fotos de Marilyn Monroe. No rosto, a acne trai a idade. Ele penteia-se com uma perfeita risca ao lado e talvez um pouco de gel. Imberbe. São ambos esguios, altos, caminham como modelos numa foto-reportagem de exteriores. Agora detêm-se junto a uma árvore. Talvez seja a hora do beijo, Casablanca ou outro. Ela baixa a cabeça, mexe na carteira que traz ao ombro. Ele aguarda. Sabe o que vai sair da carteira, devem ter falado nisso. A pessoa aproxima-se no seu jogging, a espreitar a cena. Por instantes, imagina que a rapariga vai tirar um espelho oval, antigo, com uma pega, para retocar o penteado e talvez o batom. Mas nos headphones soam temas de Nick Cave, Murder Ballads — não dá para afastar o pressentimento de que da carteira sairá uma pistola, que Bonnie and Clyde se preparam para assaltar um pobre transeunte em calções. Por desfastio. Ou porque estão informados da descapitalização dos bancos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Irritações 1

Para Vasco Pulido Valente não há nada no país que valha realmente a pena. E nem vale realmente a pena tentar promover seja o que for. Por ele, o país fechava e deitava-se a chave fora. Vasco Pulido Valente é um velho resmungão, possivelmente misantropo. Escreve livros que a esmagadora maioria das pessoas ignora. No entanto, ninguém questiona o seu direito a escrevê-los e publicá-los. Durante anos, ninguém questionou o seu direito a investigar ao seu ritmo e ser pago para isso. Se aplicássemos à sua obra os critérios demagógicos que hoje vigoram e que ele aplaude, talvez lhe estivéssemos a pedir indeminizações.

Interessante

O Secretário de Estado da Cultura terá dito que as autarquias «asseguram já 60% da produção cultural». A notícia não desenvolve, mas seria interessante perceber como se relaciona esta afirmação com aqueloutra de tempos eleitorais em que Viegas dizia ser preciso acabar com o financiamento das autarquias à música pimba.

Moderação

«Passos fala em moderação salarial no privado». Naturalmente o primeiro-ministro não se refere aos salários dos gestores ou aos rendimentos dos accionistas. Mas não é esse o ponto deste post. É a escolha de palavras que desperta a imaginação. Haveria quem no lugar daquele termo usasse redução, rebaixamento, algo do género. Mas nós conseguimos ver Passos a hesitar entre parcimónia e frugalidade. Morigeração também ia bem com a sua mundividência. Na verdade, todos os oito sinónimos do Word ficam a matar quando está em causa um estrilo retro.

Flagelo

Quando lemos um post como este do Lathe Biosas perguntamo-nos o que aflige mais o autor. 

Caça às bruxas

Temos de nos resignar aos cortes, ninguém desencantou ainda uma alternativa milagrosa. E é na verdade bom que as instituições aprendam a cumprir orçamentos, mesmo que eles já fossem curtos antes dos cortes. Não é sensato nem legítimo agir de outra maneira. Mas o Governo e os escribas seus apoiantes tinham necessidade de transformar uma dieta numa caça às bruxas? Se há instituições que não vão ser fechadas (porque certamente os Governo as considera necessárias, queremos acreditar), custava manter um discurso positivo acerca delas em vez de cavalgar a onda populista que, mais um pouco, toma o freio nos dentes? É isto descontrolo, nervos à flor da pele, ou estratégia de terra queimada?

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Velhos amigos

A ida ao multibanco era para ser um instantinho, mas a senhora estava à frente e tinha contas para pagar, carregamentos a fazer, saldos a consultar. Ele esperou, fingindo que não espiava as operações para entreter a impaciência. Finalmente a senhora retirou-se e sorriu, em jeito de desculpa. Ele levantou o seu dinheiro e foi buscar o carro. À saída do parque de estacionamento alguém tinha parado uma viatura com os quatro piscas ligados, obstruindo o acesso à rua. Ele soltou uma imprecação e respirou fundo. Era preciso ter calma. O dia mal tinha começado. Aguardaria um ou dois minutos antes de começar a buzinar, detestava o som da buzina. Mas não vinha ninguém e teve de apitar, uma, duas, três vezes. Da agência bancária ali ao lado saiu uma senhora, a arrumar papéis na mala de mão. Era ela. Não confiou nos extractos que retirou do multibanco, pensou ele. A senhora sorriu, em jeito de desculpa.
Depois de meter gasolina, estava finalmente na estrada para o trabalho. O trânsito circulava lento, havia uma fila. Numa curva larga conseguiu ver a cabeça do pelotão e o carro pareceu-lhe familiar. Não pode ser ela, praguejou. Mas quando a estrada ganhou outra faixa e ele pôde ultrapassar, ela sorriu-lhe.
Ao chegar, decidiu que tomaria um café antes de subir para o escritório. Era algo paradoxal, mas estava a precisar. Depois chamou o elevador e ele não se movia, alguém o retinha no piso de cima, ouviam-se vozes. Ao fim do que a ele lhe pareceu uma eternidade, o elevador desceu e abriram-se as portas. Antes que ela sorrisse, ele desencorajou-a com um gesto e um olhar fulminador. Nessa altura eram já velhos amigos, ele não precisava de disfarçar a impaciência.